Orígenes de Alexandria (185-253).
Orígenes (em grego Ὠριγένης),
cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesaréia ou ainda Orígenes o
Cristão ( Alexandria, Egito, c. 185 - Cesareia, ou, mais provavelmente, Tiro,
253), foi um teólogo, filosófo neoplatônico patristico e é um dos Padres
gregos.
Um dos mais distintos pupilos de
Amônio de Alexandria [1], Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de grande
erudição, ligado à Escola Catequética de Alexandria, no período pré-niceno.
[2]
Inspirados em Orígenes e na Escola de
Alexandria, muitos escritores cristãos desenvolveram suas obras: Sexto
Júlio Africano, Dionísio de Alexandria, o Grande, Gregório
Taumaturgo, Firmiliano, bispo de Cesareia (Capadócia), Teognosto, Pedro de
Alexandria, Pânfilo e
Hesíquio.
Orígenes de Alexandria não deve ser
confundido com o filósofo Orígenes, o Pagão (210-280), mais jovem e também
integrante da Escola de Alexandria, porém discípulo de Plotino.
fonte: Wikipédia
Orígenes
DE
PRINCIPIIS
-
Introdução e Livro IV - (185 - 253 DC)
-
traduzido da versão latina do século V do monge Rufino constante na
Patrologia Grega de Migne vol. 11 pgs. 115-121 e 341-414 -
Introdução
1.
Todos os que crêem e estão certos de que a graça e a verdade vieram por meio de
Jesus Cristo (Jo. 1, 17) e que sabem Cristo ser a verdade, segundo o que Ele
próprio disse:
"Eu sou a
verdade", Jo. 14, 6
Buscam a ciência que exorta os homens a viver bem e
bem aventuradamente em nenhum outro lugar senão nas próprias palavras e
ensinamentos de Cristo.
Dizemos, porém, serem palavras
de Cristo não apenas aquelas que Ele ensinou ao fazer-se homem e vivido na
carne, pois, de fato, Cristo, o Verbo de Deus, estava em Moisés e nos profetas.
Pois, sem o Verbo de Deus, como poderiam ter profetizado de Cristo? Se não
fosse nossa intenção dar a esta obra toda a brevidade que lhe seja possível,
não seria difícil demonstrar esta afirmação assinalando, nas Divinas
Escrituras, como Moisés ou os profetas falaram ou fizeram tudo o que fizeram
cheios do Espírito de Cristo. Julgo, para tanto ser suficiente utilizar apenas
este testemunho de São Paulo, tirado da epístola que ele escreveu aos Hebreus,
em que ele diz:
"Pela fé
Moisés, depois de grande,negou ser filho da filha de Faraó,
escolhendo antes
ser afligido com o povo de Deus que gozar a delícia transitória do pecado, considerando
maior riqueza [os opróbrios] de Cristo que os tesouros dos egípcios". Heb. 11, 24-26
Paulo também nos indica que
Cristo, depois de sua ascensão aos céus, falou em seus apóstolos, quando nos
diz:
"Porventura
quereis por à prova Cristo, que fala em mim?"II
Cor. 13, 3
2. Entretanto, muitos daqueles
que declaram crer em Cristo discordam entre si não apenas em coisas pequenas e
mínimas como também em grandes e máximas. Discordam sobre Deus, sobre o Senhor
Jesus Cristo e sobre o Espírito Santo, e não só sobre estas coisas, como também
sobre as demais criaturas, como as santas dominações ou virtudes. Parece-nos
necessário, portanto, estabelecer primeiro uma linha certa e uma regra
manifesta para que em seguida possamos investigar também as demais coisas.
Embora haja muitos entre gregos e bárbaros que afirmem possuir a verdade,
depois que acreditamos que Cristo é o Filho de Deus, deixamos de procurá-la
entre aqueles que a sustentam por meio de falsas opiniões, por nos termos persuadido
que é do próprio Cristo que a devemos aprender. Já que muitos, porém, são os
que consideram serem de Cristo e que, apesar disto, entre eles mesmos há quem
pense diversamente dos que os antecederam, devemos observar a pregação da
Igreja que nos foi transmitida pela ordem de sucessão desde os Apóstolos e que
nela permanece até hoje, somente crendo naquela verdade que em nada discorde da
tradição eclesiástica e apostólica.
3.
Importa também saber que os santos apóstolos, ao pregar a fé de Cristo, creram
que algumas coisas fossem necessárias para todos, mesmo para os que parecessem
os mais preguiçosos para com a investigação da ciência divina. A estas no-las
quiseram transmitir de modo manifestíssimo, deixando, porém, as suas razões à
investigação daqueles que, pela sua excelência, tivessem merecido os dons do
Espírito, e principalmente aos que tivessem alcançado, pelo próprio Espírito
Santo, os dons da palavra, da sabedoria e da ciência. Quanto ao demais, porém,
mencionaram apenas a sua existência, silenciando sobre o seu modo e sobre a sua
origem, certamente para que os mais dedicados e amantes da sabedoria, quaisquer
que, entre os seus pósteros, estes viessem a ser, pudessem ter um exercício no
qual aplicassem o fruto de seu engenho, isto é, todos aqueles que se
preparassem para se tornarem dignos e capazes de acolherem a sabedoria.
4.
As coisas que nos foram transmitidas pela pregação apostólica de modo manifesto
são as seguintes.
Primeiramente, que há um só
Deus que tudo criou e ordenou e que, quando nada existia, fêz o Universo, Deus
desde a primeira criatura e fundação do mundo, Deus de todos os justos, de
Adão, de Abel, de Set, de Enós, de Enoc, de Noé, de Sem, de Abraão, de Isaac,
de Jacó, dos doze patriarcas, de Moisés e dos profetas. E que este Deus, nos
últimos dias, assim como havia prometido anteriormente pelos seus profetas,
enviou Nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro haveria de chamar a Israel,
depois também os gentios, após a perfídia do povo de Israel. Este Deus, justo e
bom, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi quem nos deu a Lei e os Profetas e o
próprio Evangelho, o qual é também o Deus dos apóstolos, assim como do Velho e
do Novo Testamento.
Em segundo lugar, que o
próprio Jesus Cristo que veio (ao mundo) foi gerado do Pai antes de toda a
criatura. Ele mesmo, que serviu ao Pai na criação de todas as coisas, e que por
meio dele todas as coisas foram feitas, humilhando-se a si mesmo nos últimos
tempos, encarnou-se feito homem. Sendo Deus, permaneceu sendo Deus ao fazer-se
homem. Assumiu um corpo semelhante ao nosso corpo, deste diferindo apenas por
ter nascido de uma virgem e pelo Espírito Santo. E também que este Jesus Cristo
nasceu e padeceu de verdade, e não sofreu a morte comum a todos apenas
imaginariamente, mas morrendo verdadeiramente. Verdadeiramente também
ressuscitou dos mortos e, depois da ressurreição, tendo convivido com os seus
discípulos, subiu aos céus.
Em terceiro lugar, os
apóstolos nos manifestaram o Espírito Santo, associado em honra e dignidade ao
Pai e ao Filho. Nisto, porém, já não se distingue manifestamente se o Espírito
Santo é gerado ou não gerado, ou se deve ser tido também ele mesmo como Filho
de Deus ou não. São estas coisas que devem ser investigadas com o melhor de
nossa capacidade através de uma cuidadosa busca a partir das Sagradas
Escrituras.
Prega-se também manifestamente
nas igrejas que este Espírito inspirou cada um dos santos, dos profetas e dos
apóstolos, e que não é outro o Espírito pelo qual foram inspirados os antigos e
aqueles que viveram no tempo do advento de Cristo.
5.
Depois disto foi-nos transmitido também que a alma, possuindo substância e vida
própria, ao abandonar este mundo, será remunerada de acordo com os seus
merecimentos, havendo de fruir a herança da vida eterna e da bem aventurança,
se a isto houver dirigido os seus atos, ou de ser entregue ao fogo e suplício
eternos, se a isto houver se curvado pela culpa de seus crimes. Haverá também
um tempo para a ressurreição dos mortos, quando este corpo que agora
"semeado na
corrupção,ressuscitará na incorrupção; semeado na ignomínia, ressuscitará na
glória". I Cor. 15, 42-43
Está também definido na
pregação da Igreja que toda alma racional possui vontade e livre arbítrio, e
que há também para ela uma luta a ser travada contra o demônio e seus anjos e
forças adversas, já que eles trabalham para onerá-la de pecados, enquanto que
nós, se vivermos retamente e com conselho, devemo-nos esforçar em nos
despojarmos deste jugo. Deve-se entender, por conseguinte, que ninguém de nós está
submetido à necessidade, de tal modo que, ainda que não queiramos, sejamos a
qualquer custo obrigados a fazer coisas boas ou más. Se, de fato, temos nosso
livre arbítrio, talvez algumas forças poderão impugnar-nos ao pecado, assim
como outras também poderão ajudar-nos à salvação; certamente, porém, não
seremos obrigados por necessidade a fazer o bem ou o mal, embora seja isto que
julguem que aconteça aqueles que dizem que o curso e o movimento das estrelas
seja a causa dos atos humanos, não apenas daqueles que ocorrem além da
liberdade do arbítrio, mas também daqueles submetidos ao nosso poder.
Se a alma, porém, no-la é
transmitida pelo sêmen, de tal modo que sua razão ou substância esteja contida
no próprio sêmen corporal, ou se tenha algum outro início, e se este início é
gerado ou não gerado, ou se é posto no corpo desde fora ou não, nenhuma destas
coisas é possível ser distingüida como suficientemente manifesta pela pregação.
6.
Quanto ao demônio, seus anjos e forças adversas, a pregação da Igreja ensina
que realmente existem. O que porém eles sejam, ou como sejam, não está
claramente exposto. Muitos, porém, são de opinião que o demônio havia sido um
anjo o qual, tornando-se apóstata, persuadiu uma multidão de anjos a caírem
consigo, os quais agora são chamados de seus anjos.
7.
Faz parte também da pregação da Igreja que este mundo foi criado, que começou
em um determinado tempo e que há de acabar pela sua própria corrupção. O que
havia, porém, antes que este mundo existisse, ou o que haverá depois que este
mundo já não existir, isto já não é tido por muitos como coisa manifesta. Não
há palavra evidente sobre estas coisas na pregação da Igreja.
8.
Finalmente, também, que as Sagradas Escrituras foram escritas pelo Espírito de
Deus e que possuem um sentido que não é apenas o manifesto, mas também um outro
oculto para muitos. As coisas que foram escritas, de fato, são formas de certos
mistérios e imagens das coisas divinas. A este respeito há uma só sentença em
toda a Igreja, que toda a lei é espiritual e que as coisas que a lei
espiritualiza não são conhecidas por todos, mas apenas por aqueles aos quais a
graça do Espírito Santo é concedida na palavra de sabedoria e de ciência.
9.
A palavra `assomaton', isto é, `incorpóreo',
é inusitada e desconhecida não somente para muitos outros, como também para
nossas Escrituras. Se alguém no-la quiser apontar no livro que se chama "A
Doutrina de Pedro", onde o Salvador parece dizer aos discípulos:
"Não sou um
demônio incorpóreo",
deve-se-lhe responder, em
primeiro lugar, que este livro não é tido como pertencente aos livros da
Igreja, e deve-se-lhe mostrar que esta escritura não é nem de Pedro nem de
qualquer outro que tivesse sido inspirado pelo Espírito de Deus. Mas, ainda que
isto concedêssemos, o sentido da palavra `incorpóreo' neste
texto não é o mesmo que se depreende dos escritos dos autores gregos e gentios,
quando os filósofos disputam sobre a natureza incorpórea. Neste livro fala-se
de demônio incorpóreo no sentido em que, qualquer que seja o hábito ou o
invólucro do corpo do demônio, ele certamente não é semelhante a este nosso
corpo grosseiro e visível. Devemos ler o que está dito segundo o sentido de
quem compôs esta escritura, que é se um corpo como o que possuem os demônios é
naturalmente sutil e como uma tênue aura, e por isso mesmo considerado ou dito
incorpóreo por muitos, ou se se trata de um corpo sólido e palpável. De fato,
segundo o costume dos homens, tudo o que for daquele modo é chamado pelos mais
simples e imperitos de incorpóreo, como quando dizem que este ar que respiramos
é incorpóreo, por não ser um corpo que possa ser apalpado e guardado, ou que
possa oferecer resistência a quem o empurre.
Investigaremos, porém, se a
própria realidade que os filósofos gregos chamam de `assomaton',
isto é, incorpórea, se encontra nas Sagradas Escrituras com outro nome. Deve-se
investigar, também, como o próprio Deus deve ser entendido, se corpóreo e
dotado de alguma forma, ou se possuidor de outra natureza que não a dos corpos,
o que também em nossa pregação não é manifestamente assinalado. O mesmo também
deve ser investigado de Cristo e do Espírito Santo, mas não de toda alma e de
toda criatura racional.
10.
Pertence também à pregação da Igreja a existência de anjos de Deus e de boas forças
que o auxiliam para a consumação da salvação dos homens. Mas quando eles foram
criados, ou quais e como são, não é assinalado de modo completamente manifesto.
Quanto ao sol, à lua e às estrelas, se são animados ou destituídos de alma, não
no-lo é transmitido manifestamente.
Importa, portanto, que use
destas coisas como de elementos e fundamentos, segundo o mandamento que diz
"Iluminai-vos
pela luz da ciência", Os. 10, 2
todo aquele que deseje
construir uma série e um corpo de razões de todas estas coisas, para investigar
por meio de afirmações manifestas e necessárias o que haja de verdade em cada
uma delas, e edificar um corpo de exemplos e afirmações a partir do que tiver
encontrado nas Sagradas Escrituras ou que tiver alcançado em conseqüência de
sua própria investigação e método correto.
Livro IV
- Caps. 1-16 ,
19-27 -
Iª Parte
1.
Para tratar de tantas e tais coisas não basta confiar a sumidade deste assunto
aos sentidos humanos e à inteligência comum, discorrendo, por assim dizer,
visivelmente sobre as coisas invisíveis. Devemos tomar também, para a
demonstração das coisas de que falamos, os testemunhos das Divinas Escrituras.
No entanto, para que estes testemunhos possam oferecer-nos uma fé certa e
indubitável, tanto nas coisas que haveremos de dizer, como nas que já dissemos,
parece-nos ser necessário mostrar antes que as próprias Escrituras são divinas,
isto é, inspiradas pelo Espírito de Deus. Mostraremos, tão brevemente quanto pudermos,
o que as próprias Escrituras nos dizem a este respeito e que nos possa mover
competentemente. Falaremos, pois, de Moisés, o primeiro legislador do povo
hebreu, e das palavras de Jesus Cristo, autor e príncipe da religião e do dogma
dos cristãos.
Entre gregos e bárbaros. de
fato, existiram muitos legisladores e também inúmeros doutores e filósofos
afirmando oferecer a verdade. Não nos lembramos, porém, de nenhum legislador
que tenha podido produzir tal afeto e dedicação nas almas dos povos estrangeiros
a tal ponto que estes aceitassem livremente as suas leis ou com toda a alma
defendessem as suas intenções. Ninguém houve também que tenha podido sugerir ou
dar a conhecer aquilo que lhe pareceu ser a verdade, não digo a muitas nações
estrangeiras, mas nem mesmo sequer a um só povo, para que todos alcançassem a
sua ciência ou a sua fé. E, no entanto, não se pode duvidar que os legisladores
gostariam que suas leis fossem obedecidas por todos, se isto fosse possível, e
que os mestres apreciariam que aquilo que lhes pareceu ser a verdade fosse
também conhecido por todos. Sabendo, porém, que não seria de nenhum modo
possível que neles subsistisse tamanha virtude que fosse capaz de convidar as
nações estrangeiras à observância de suas leis ou de suas afirmações, nem
sequer ousaram começar a fazê-lo, para que não ficassem conhecidos como
imprudentes por semelhantes iniciativas ineficazes e inexecutáveis.
São, no entanto, multidões
inumeráveis, em toda a face da terra, em toda a Grécia e em todas as demais
nações estrangeiras, aqueles que, abandonando as leis de sua pátria e aqueles
que consideravam deuses, se entregaram à observância da lei de Moisés e ao
discipulado e ao culto de Cristo, e isto não sem um grande ódio levantado
contra si por parte daqueles que veneram os simulacros, a ponto de serem
freqüentemente atormentados por parte destes e algumas vezes inclusive
conduzidos à morte. Mesmo assim, abraçam e observam com todo o afeto a palavra
do ensinamento de Cristo.
2.
É verdadeiramente admirável como em tão breve tempo esta religião cresceu pelo
sofrimento e pelo martírio de seus seguidores, pela violência que lhes foi
feita e pela paciência com que toleraram todo gênero de suplícios. Mais
admirável ainda é que seus doutores não são nem eruditos nem numerosos e, no
entanto, esta palavra é pregada em toda a terra, de modo que gregos e bárbaros,
sábios e ignorantes, recebem a doutrina cristã. Não há dúvida de que isto não
se realiza por força ou obra humana. A palavra de Cristo Jesus se fortalece com
toda a fé e poder junto a todas as mentes e junto a todas as almas. Ademais, é
manifesto que todas estas coisas foram preditas e confirmadas por Ele, quando
disse em seus divinos oráculos:
"Por causa
de mim sereis conduzidos à presença de governadores e juízes, para dar
testemunho perante eles e perante as nações". Mt. 10, 18
E também:
"Este
evangelho será pregado em todas as nações". Mt.
24, 14
E novamente:
"Muitos me
dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, porventura não foi em teu nome que
caminhamos e bebemos, e em teu nome que expulsamos demônios?’
E eu lhes direi:
`Afastai-vos de mim, vós que operais a iniquidade, nunca vos conheci'". Mt. 7, 22-23
Se todas estas coisas tivessem
sido ditas por Ele, mas sem que se tivesse realizado o que havia sido predito,
pareceriam talvez menos verdadeiras, embora tivessem mesmo assim alguma
autoridade. Agora, porém, preditas com tanto poder e autoridade e tendo chegado
à sua realização, fica manifestissimamente declarado ser verdade que Ele, ao
fazer-se homem, veio trazer aos homens os preceitos da salvação.
3.
E o que deveremos dizer sobre o que, antes dEle, os profetas predisseram sobre
Ele? Estava escrito que não cessariam os príncipes de Judá, nem os soberanos de
seu meio, até que chegasse aquele a quem teria sido confiado o reino, e até que
viesse a expectação dos povos (Gen. 49, 10). Pelo que hoje pode observar-se,
tudo isto é mais do que manifesto pela própria história. Desde os tempos de
Cristo não há mais reis entre os judeus. Todas aquelas ambições judaicas nas
quais tantos se jactavam e se exaltavam, seja do decoro do Templo, seja dos
famosos altares, de todos aqueles aparatos sacerdotais e vestimentas
pontifícias, tudo isto foi destruído. Consumou-se assim a profecia que dizia:
"Os filhos
de Israel ficarão durante muitos dias sem reis e sem príncipes,
sem sacrifício e
sem altar, sem sacerdócio e sem respostas". Os.
3, 4
Utilizamos estes testemunhos
para aqueles que, no que diz respeito às coisas que foram ditas no Gênesis por
Jacó ao falar de Judá (Gen. 49, 10), parecem afirmar que ainda haveria um
príncipe da descendência de Judá, que seria aquele que é o príncipe de seu povo
e ao qual chamam de Patriarca, os quais afirmam também que não poderá faltar
alguém que permaneça de sua descendência até o advento do Cristo, conforme o
descrevem para si mesmos. Mas se é verdadeiro o que diz o Profeta, segundo quem
"por muitos
dias os filhos de Israel permanecerão sem rei e sem príncipe,
nem haverá
sacrifício, nem altar, nem sacerdócio",
e se, de fato, desde que foi
destruído o Templo, não se oferecem mais sacrifícios, nem se encontram altares,
e se consta também não haver sacerdócio, é mais do que certo que
"faltam os
príncipes de Judá",
assim como estava escrito,
"nem há
soberanos em seu meio, até que venha aquele a quem foi confiado o reino". Gen. 49, 10
Consta, porém, que já veio
Aquele a quem foi confiado, Aquele em que reside a expectação das nações, e que
tudo isto parece manifestamente consumado pela multidão daqueles que, de
diversas nações, por meio de Cristo, creram em Deus.
4.
Mas no Deuteronômio também nos é assinalado, por meio de uma profecia, que
pelos pecados do primeiro povo haveria a futura eleição de um povo insensato,
eleição esta que não é outra senão a que foi realizada por Cristo. Assim, de
fato, está escrito:
"Eles
provocaram-me com o que não era Deus, e irritaram-me com os seus simulacros; e
eu os provocarei em meu zelo, e os irritarei com um povo insensato". Dt. 32, 21
É bastante evidente que os
hebreus, dos quais se diz terem provocado a Deus com aqueles que não são deuses
e terem-no irritado com os seus simulacros, irritaram-se também eles em ciúmes
por um povo insensato, que Deus escolheu pelo advento de Jesus Cristo, e pelos
seus discípulos. De fato, assim diz o Apóstolo:
"Vede a
vossa vocação, irmãos, como entre vós não há muitos sábios segundo a carne, nem
muitos nobres, mas aqueles que são estultos para o mundo, estes Deus escolheu, e
os que não são, para destruir os que eram primeiro". I Cor. 1, 27-28
Não se glorie, portanto, o
Israel carnal. Assim é, de fato, que este é chamado pelo Apóstolo,
"para que
não se glorie a carne na presença de Deus". I
Cor. 1, 29
5.
O que se deverá dizer, também, do que é profetizado de Cristo nos Salmos,
principalmente naquele que levou o título de `Cântico pelo Amado',
onde se diz:
"Sua língua
é como a pena de um escriba que escreve velozmente;
ultrapassa em
formosura aos filhos dos homens, pois a graça derramou-se sobre os seus
lábios"? Salmo 44, 2-3
O sinal da graça derramada em
seus lábios é que, passado tão breve tempo, pois ensinou Ele por apenas um ano
e alguns poucos meses, toda a terra encheu-se com a doutrina e a fé da sua
piedade. Floresceu, portanto,
"em seus
dias a justiça, e a abundância da paz", Salmo
71, 7
que durará até o fim, fim este
que no salmo é designado como "até que a lua deixe de
existir" (Salmo 71, 7).
"E dominará
de mar a mar, e desde o rio até as extremidades da terra".
Salmo 71, 8
Foi dado também este sinal à
casa de Davi:
"Uma virgem
conceberá, e dará à luz a um filho, cujo nome será Emmanuel, que quer dizer
Deus conosco". Is. 7, 14
"Ajuntai-vos,
povos, e sereis vencidos" (Is. 8,
9). Fomos vencidos e superados, nós que somos dos gentios, e somos como que
despojos de sua vitória, nós que dobramos nosso pescoço à sua graça.
Mas também o lugar de seu
nascimento foi predito pelo profeta Miquéias, ao dizer:
"E tu,
Belém, terra de Judá, não és a menor entre as cidades de Judá.
De ti, de fato,
sairá o condutor que regerá o meu povo de Israel". Miq. 5, 2
Completaram-se também as
semanas de anos até o Cristo condutor que haviam sido preditas pelo profeta
Daniel. Está também presente aquele que em Jó é dito que haveria de vencer a
enorme besta, o qual também deu poder aos seus discípulos de
"calcar aos
pés serpentes e escorpiões, e todo o poder do inimigo, sem que nada lhes
fizesse dano". Lc. 10, 19
Se alguém considerar
igualmente os discursos dos apóstolos de Cristo, pelos quais estes pregaram o
Evangelho de Cristo por cada um dos lugares aos quais foram por Ele enviados,
encontrará que o que eles ousaram começar é algo sobrehumano e o que eles
puderam realizar provém de Deus. Se considerarmos como os homens os receberam,
ao ouvirem que eles lhes anunciavam uma nova doutrina; ou melhor, como
freqüentemente os homens, querendo fazer-lhes o mal, foram impedidos por uma
força divina que neles havia, veremos que nada nesta causa foi realizado por
forças humanas, mas tudo pelo poder e pela providência divina, o que sem
dúvida, por sinais e portentos evidentes, testemunha em favor de sua palavra e
de seus ensinamentos.
6.
Demostradas previamente estas coisas, isto é, a deidade de Jesus Cristo e a
realização de todas as coisas que dele foram profetizadas, julgo que com isto
provamos também que as próprias Escrituras que sobre Ele profetizaram são
divinamente inspiradas. Elas predisseram o seu advento, o poder de sua doutrina
e a assunção de todos os povos.
Devemos acrescentar também que
é principalmente pelo advento de Cristo ao mundo que ilumina-se e prova-se que
tanto os vaticínios dos profetas como a Lei de Moisés são divinos e divinamente
inspirados. Antes que se tivessem realizado as coisas que haviam sido por eles
preditas por eles, embora estes fossem verdadeiros e inspirados por Deus, não
podiam, todavia, ser mostrados como verdadeiros, pelo fato de que ainda não
podiam ser provados realizados. O advento de Cristo, porém, manifestou serem
verdadeiras e divinamente inspiradas as coisas que eles haviam dito, já que
antes era incerto se as coisas que haviam sido preditas seriam realizadas com
êxito.
Mesmo assim, porém, se alguém
considerar os escritos proféticos com toda a aplicação e reverência de que são
dignos, no próprio ato de lê-los e de examiná-los diligentemente, reconhecerá
certamente, tocado por alguma inspiração divina em sua mente e em seus
sentidos, que aquilo que lê não foi dito humanamente, mas que é palavra de
Deus. Sentirá por si mesmo que estes livros foram escritos não por uma arte
humana, nem por discurso de mortais, mas pela excelência de uma arte divina. O
esplendor do advento de Cristo, iluminando pelo fulgor da verdade a lei de
Moisés e retirando o véu que estava sobreposto à sua letra, descobriu a todos
os que crêem nEle toda a multidão de bens que o invólucro da palavra escondia.
7.
É algo verdadeiramente trabalhoso enumerar cada uma das coisas que outrora
foram ditas pelos profetas, e como e quando cada uma se realizou, para que por
elas vejamos confirmarem-se aqueles que duvidam. Para quem queira conhecê-las
mais diligentemente, será possível reunir abundantemente estas provas dos
próprios livros da verdade. Não se admirem, porém, se perceberem que as coisas
divinas são transmitidas ao homem com alguma lentidão, quando aos que são menos
eruditos nas disciplinas divinas não se lhes descobre imediatamente, logo na
primeira leitura, o sentido que está acima do homem. Tudo isto está tanto mais
encondido quanto mais incrédulo ou indigno for o homem.
É coisa certa que tudo o que
está ou se faz neste mundo é dispensado pela providência divina. Algumas,
porém, manifestam de modo bastante evidente serem governadas pela providência,
enquanto que outras têm uma explicação tão oculta e tão incompreensível que
nelas a razão da divina providência é-nos inteiramente oculta, e de tal modo
que às vezes alguns nem crêem que pertençam à providência. A razão pela qual,
por uma inefável arte, a obra da divina providência é dispensada, permanece
escondida; esta razão, todavia, não está igualmente oculta para todos. Entre os
homens ela é considerada por uns menos, por outros mais, e é mais conhecida
pelos que habitam no céu do que por todos os homens que habitam na terra. A
natureza dos corpos é clara para nós de modo diverso pelo qual no-la é a
natureza das árvores, dos animais e da alma. A maneira pela qual os diversos
movimentos das mentes racionais são dispensadas pela divina providência está
mais escondida para os homens do que para os anjos, embora também para eles
julgo que não o esteja pouco. No entanto, assim como a existência da divina
providência não é refutada por aqueles que estão certos de sua existência, mas
que não podem compreender sua obra e dispensação pelo engenho humano, assim
também nem a inspiração divina da Sagrada Escritura, que se estende através de
todo o seu corpo, pode ser considerada inexistente porque a enfermidade de
nossa inteligência não é capaz de investigar as sentenças ocultas e escondidas
em cada singular palavra. O tesouro da divina sabedoria está escondido nos
recipientes mais vis e grosseiros das palavras, como o próprio Apóstolo o
afirma, dizendo:
"Trazemos
este tesouro em vasos de barro". II
Cor. 4, 7
Não misturando nenhum
ornamento da eloqüência humana na verdade dos dogmas, mais resplandece com isto
a virtude da potência divina. Se, de fato, nossos livros tivessem sido escritos
de modo que levassem os homens a crer seduzindo-os pela astúcia filosófica ou
pela arte retórica, sem dúvida a nossa fé seria considerada estar fundamentada
na arte das palavras ou na sabedoria humana e não no poder de Deus. Agora,
porém, é conhecido por todos que a palavra desta pregação foi recebida
por muitos em todo o mundo de tal modo que os que creram entenderam que
ela se fundamenta não em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas na
demonstração da força e do espírito. Pelo que, conduzidos por uma celeste
virtude, ou até mais do que celeste, à fé e à aceitação pela qual adoramos
nosso Deus como o único Criador de todas as coisas, procuremos agora
esforçar-nos para que, abandonando a palavra dos inícios de Cristo que são os
primeiros princípios da ciência, sejamos conduzidos à perfeição, para que
aquela sabedoria, que é transmitida aos perfeitos, também no-la seja
transmitida. Assim, de fato, foi afirmado por aquele a quem foi confiada a
pregação desta sabedoria:
"No
entanto, é da sabedoria que falamos entre os perfeitos, não a sabedoria deste
mundo, nem dos príncipes deste mundo, que serão destruídos". I Cor. 2, 6
Ele nos mostra, com estas
palavras, que esta nossa sabedoria nada tem em comum, no que nos diz respeito à
beleza do fraseado, com a sabedoria deste mundo. Esta sabedoria será inscrita
mais clara e perfeitamente em nossos corações se nos for manifestada segundo a
revelação do mistério que ficou oculto desde os tempos eternos, e que no-lo foi
agora manifestado pelos escritos proféticos e pelo advento do Senhor e Salvador
nosso Jesus Cristo, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amén.
IIª Parte
8.
Feito este breve comentário sobre a inspiração das Sagradas Escrituras pelo Espírito
Santo, parece-nos agora necessário explicar por que motivo alguns, ignorando o
caminho pelo qual se alcança o entendimento das letras divinas, não as lendo
corretamente, caíram em tantos erros.
Os judeus, pela dureza de seu
coração, querendo parecer sábios diante de si mesmos, julgando que as coisas
que foram ditas de Cristo deviam ser entendidas segundo a letra, não creram em
nosso Senhor e Salvador. Julgaram que Ele pregaria a libertação aos cativos de
modo sensível e visível, que deveria antes edificar a cidade que
verdadeiramente consideram a cidade de Deus, exterminando simultaneamente as
carroças de Efraim e os cavalos de Jerusalém (Zc. 9, 10), e que comeria
manteiga e mel para que, antes que soubesse rejeitar o mal, escolhesse o bem
(Is. 7, 15). Também julgaram ter sido profetizado que, quando do advento de
Cristo, o lobo, este animal quadrúpede, seria apascentado com os cordeiros, que
o leopardo repousaria com os cabritos, que o bezerro e o touro se alimentariam
junto com os leões e que seriam conduzidos ao pasto por uma criança pequena;
que o boi e o urso descansariam juntos nas pastagens e que suas crias seriam
alimentadas igualmente; que os leões freqüentariam as mesmas manjedouras que os
bois e se alimentariam de palha (Is. 11, 6-9). Vendo que nenhuma destas coisas
que foram profetizadas se realizaram segundo a história, coisas que,
consideravam eles, seriam os principais sinais que se observariam quando do
advento de Cristo, não quiseram aceitar a presença de nosso Senhor Jesus
Cristo. Ao contrário, como se ele, contra o direito e o lícito, isto é, contra
a fé da profecia, tivesse assumido para si o nome de Cristo, o crucificaram.
Os hereges, por outro lado,
lendo o que está escrito na Lei:
"O fogo de
meu furor se acendeu"; Jer. 15, 14
e também:
"Eu sou o
Senhor teu Deus forte e zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos até
à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam";
Ex. 20, 5
"Arrependo-me
de ter ungido rei a Saul"; I Sam. 15, 11
"Eu sou o
Senhor, que faço a paz, e que crio os males"; Is. 45, 7
"Haverá
algum mal na cidade que não tenha sido feito por Deus?" Amós 3, 6
"Desceram
do Senhor os males sobre as portas de Jerusalém"; Miq. 1, 12
"O espírito
maligno, mandado por Deus, sufocava Saul"; I
Sam. 18, 10
e muitas outras coisas
passagens semelhantes a estas, não ousaram dizer que elas não fossem escrituras
de Deus, mas as julgaram que fossem daquele Deus criador que os judeus cultuam,
do qual afirmaram que seria apenas justo, não, porém, bom. Julgaram dever crer
também que o Salvador teria vindo para anunciar-nos um Deus mais perfeito, que
negam ser o criador do mundo, havendo, porém, entre eles, até mesmo a este
respeito, diversas opiniões discordantes. Uma vez que, afastando-se da fé do
Deus criador que o é de todas as coisas, na medida em que a fantasia e a
vaidade de suas almas lhos sugeria, entregaram-se a diversas fábulas e ficções
e disseram que algumas coisas seriam visíveis e criadas por um Deus, enquanto
que outras seriam invisíveis e criadas por outro. Alguns, entretanto, dos mais
simples entre eles, os quais parecem manter-se dentro da fé da Igreja, julgam
que não há nenhum Deus maior do que o Criador, conservando a este respeito uma
reta e sadia sentença; julgam, porém, coisas tais sobre este Deus que não
poderiam ser julgadas sequer de um homem extremamente injusto e cruel.
9.
A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte daqueles a quem
mencionamos acima não é outra senão que a Sagrada Escritura não é por eles
entendida segundo o sentido espiritual, mas segundo o som da letra. Por isso
nos esforçaremos em demonstrar, segundo a pequenez do nosso sentir, aos que
crêem que as Sagradas Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas
redigidas por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós por
vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o que a nós parece
ser a reta via dos que observam a inteligência, aquela regra e disciplina
transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos os quais, por sucessão, a
transmitiram também aos seus pósteros que haveriam de ensinar a santa Igreja.
Todos, conforme penso, até
mesmo os mais simples dos fiéis, crêem que há certas dispensações místicas
assinaladas pela Sagrada Escritura. Quais sejam estas, porém, ou o que são,
quem possuir reta mente e não for oprimido pelo vício da jactância será
religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo.
Se alguém, por exemplo, nos
questionar sobre as filhas de Ló, que contra o direito se aproximaram
carnalmente do pai, ou sobre as duas esposas de Abraão, ou sobre as duas irmãs
que se casaram com Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram a
numerosidade dos filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas
coisas são certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós todavia
ignoramos quais sejam?
Quando lemos sobre a
construção do tabernáculo, temos como certo também que estas coisas que são
escritas são figuras de outras coisas ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu
modo e abrir e dissertar sobre cada uma delas, considero ser coisa imensamente
difícil, para não dizer impossível.
Todavia, conforme disse, é
algo que não escapa até mesmo da inteligência comum que aquela descrição é
repleta de mistérios. Todas aquelas narrativas que parecem terem sido escritas sobre
núpcias, sobre procriação de filhos, sobre guerras diversas ou quaisquer outras
histórias, que outra coisa devemos crer que sejam senão formas e figuras de
coisas ocultas e sagradas? Todavia, devido ao fato de que os homens usam de tão
pouca aplicação para exercitar o engenho e que, antes que aprendam, já
consideram que sabem, decorre que nunca começam a saber. No entanto, se não
faltar o estudo nem o mestre, e se estas coisas forem buscadas como divinas,
isto é, religiosa e piamente, com autêntica esperança de que muitas sejam
abertas pelo Deus que revela, ainda que para o entendimento humano sejam
imensamente difíceis e ocultas, talvez quem assim as busque facilmente
encontrará o que é lícito buscar.
10.
Mas para que não se julgue que a dificuldade esteja apenas nos discursos
proféticos, já que para todos é certo que o estilo profético está semeado de
figuras e enigmas, o que deveremos dizer quando nos aproximamos do Evangelho?
Não se esconde ali também um sentido interior, como que um sentido divino, que
somente é revelado por aquela graça que a recebeu aquele que dizia:
"Nós,
porém, temos o pensamento de Cristo, para que conheçamos as coisas que por Deus
nos foram dadas. Falamos não com palavras
aprendidas de
humana sabedoria, mas na doutrina do Espírito". I Cor. 2, 16-12-4
E quanto às coisas que foram
reveladas a João, como não se admirará, quem as ler, de que haja ali ocultos
tantos inefáveis mistérios, nos quais tão manifestamente também aqueles que não
podem entender o que neles se esconde, entendem todavia que algo se esconde?
Também as cartas dos apóstolos, as quais a alguns parecem que sejam mais
fáceis, não estão elas igualmente repletas de sentidos tão profundos que, para
aqueles que podem entender o sentido da sabedoria divina, parece que se lhes
infunde, por um pequeno receptáculo, a claridade de uma luz imensa?
Já que estas coisas são assim
e há tantos que erram nesta vida, julgo que não é coisa destituída de perigo
que se declare facilmente que alguém as conhece ou as entende. Tratam-se de
coisas que, para que possam ser abertas, é preciso usar a chave da ciência,
chave que o Salvador dizia estar com os doutores da lei. Embora estejamos nos
desviando de nosso tema, considero que deveria ser assunto de reflexão para
aqueles que dizem que antes do advento do Salvador não havia verdade junto aos
que eram versados na Lei, como é possível que Jesus Cristo, Nosso Senhor, diga
que as chaves da ciência estejam junto aos que tinham os livros dos profetas e
da Lei em suas mãos? De fato, é assim que ele diz:
"Ai de vós,
doutores da Lei, que usurpastes a chave da ciência, e nem entrastes vós, nem
deixastes entrar os que queriam entrar". Lc.
11, 52
11.
Retornando, porém, ao nosso assunto, conforme começávamos a dizer, julgamos que
a via que nos parece ser reta para entender as Escrituras e buscar o seu
sentido é aquela que no-la é ensinada pela própria Escritura quando esta nos
mostra como devemos sentir sobre ela mesma.
No livro de Provérbios
encontramos Salomão ter preceituado o seguinte sobre a consideração da Sagrada
Escritura:
"E
tu",
diz ele,
"descreve
para ti estas coisas três vezes, em conselho e ciência, para que respondas as
palavras da verdade aos que as propuserem a ti". Pr. 22, 20-21
Cada um, portanto, deve
descrever três vezes em sua alma a inteligência das letras divinas.
Deve fazê-lo, primeiro, para
que os mais simples sejam edificados pelo próprio corpo das Escrituras, por
assim dizer. É deste modo que chamamos ao entendimento comum e histórico.
Se, porém, eles já começam a
adiantar-se um pouco, de tal modo que possam entender algo mais profundamente,
que sejam edificados também pela própria alma das Escrituras.
Quanto aos que, porém, forem
perfeitos e semelhantes àqueles de quem diz o Apóstolo:
"Não
obstante, é a sabedoria que pregamos entre os perfeitos; não, porém, uma
sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo,
que serão
destruídos; mas falamos da sabedoria de Deus encoberta no mistério, e que Deus
predestinou antes dos séculos para a nossa glória";
I Cor. 2, 6-7
que sejam estes edificados,
como que pelo seu espírito, pela própria lei espiritual que possui a sombra dos
bens futuros.
Assim como o homem é dito ser
constituído de corpo, alma e espírito, assim também o é a Sagrada Escritura que
pela liberalidade divina foi concedida para a salvação dos homens.
Tudo isto pode ser visto
assinalado também no livro chamado "O Pastor", que
parece ser desprezado por alguns. Nele, com as seguintes palavras, está escrito
ter sido ordenado a Hermas que escreva dois livros, e que depois anuncie aos
presbíteros da Igreja aquilo que aprendeu pelo Espírito:
"Escreve",
diz o livro,
"dois
livros, e darás um a Clemente, e outro a Grapte. Que Grapte advirta as viúvas e
os órfãos. Clemente seja enviado por todas as cidades de fora. Tu, porém, as
anunciarás aos presbíteros da Igreja". L.
1 Vis. 2,4
Grapte, ao qual se ordena que
advirta os órfãos e as viúvas, é o puro entendimento da própria letra, pela
qual são advertidas as almas infantis que ainda não mereceram ter Deus como
pai, e que por causa disso são chamados de órfãs. Já as viúvas são aquelas que
se separaram do homem iníquo ao qual foram unidas contra a Lei, permanecendo,
todavia, viúvas, pelo fato de ainda não se terem unido ao esposo celeste.
A Clemente ordena-se que envie
as coisas que foram ditas às cidades de fora, que são aqueles que já se afastam
da letra, aquelas almas que começaram a ser edificadas fora dos cuidados do
corpo e além dos desejos carnais.
Aquilo que, porém, Hermas
aprendeu do Espírito Santo, não por letras, nem por livros, mas por viva voz,
é-lhe ordenado que o anuncie aos presbíteros da Igreja de Cristo, isto é, aos
que possuem um maduro sentido da prudência capaz da doutrina espiritual.
12.
Não se deve, todavia, ignorar que há algumas coisas nas Escrituras em que nem
sempre pode ser encontrado o que chamamos de corpo, isto é, o que se segue ao
entendimento da história, nas quais, conforme demonstraremos a seguir, somente
deverão ser entendidas as coisas às quais chamamos de alma ou espírito.
Penso que isto no-lo é
apontado também no Evangelho, quando este diz que haviam sido postas para a
purificação dos judeus seis talhas de pedra, nas quais cabiam, cada uma, duas
ou três metretas (Jo. 2, 6). Nesta passagem a palavra evangélica parece
referir-se aos que são chamados pelo Apóstolo de judeus que o são em oculto, os
quais se purificam pela palavra da Escritura, contendo às vezes duas metretas,
isto é, recebendo o entendimento da alma ou do espírito, contendo outras vezes
três metretas, quando a leitura pode conter, para a edificação, também o
entendimento corporal, que é a história. As seis talhas de pedra, por
conseguinte, se referem aos que, colocados neste mundo, buscam a purificação.
De fato, lemos ter-se consumado em seis dias, que é número perfeito, este mundo
e tudo o que nele existe. A multidão de todos os fiéis testemunha quanta
utilidade há neste primeiro entendimento que chamamos de histórico, o qual pode
ser suficientemente crido com fidelidade e simplicidade sem necessidade de
muitas explicações, conforme é bastante evidente para todos.
Quanto à inteligência da qual
dissemos acima ser como que a alma da Sagrada Escritura, o apóstolo Paulo dela
nos deu numerosíssimos exemplos, como quando escreve na Primeira Epístola aos
Coríntios:
"Está
escrito na Lei de Moisés: `Não amordaçarás o boi que tritura o grão'". I Cor. 9, 9
Em seguida, explicando como
este preceito deveria ser entendido, acrescenta dizendo:
"Porventura
Deus tem cuidado dos bois? Não é antes por nós mesmos
que Ele diz
isto? Sim, é por causa de nós que isto foi escrito, porque o que lavra deve
lavrar com esperança, e o que debulha deve-o fazer
com esperança de
participar dos frutos". I Cor. 9, 10
Assim também uma multidão de
outras coisas que são assim interpretadas da Lei conferem aos ouvintes
muitíssimo entendimento.
13.
Quanto à explicação espiritual, esta é aquela pela qual alguém pode mostrar
quais são as coisas celestes às quais os que são judeus segundo a carne servem
como imagens e sombras, coisas futuras das quais a Lei é sombra, e outras
tantas semelhantes que se encontram nas Santas Escrituras. A inteligência
espiritual é também aquela pela qual buscamos qual seja a sabedoria escondida
no mistério
"que Deus
predestinou antes dos séculos para a nossa glória e nenhum dos príncipes deste
século conheceu". I Cor. 2, 7
É também aquela a que se
refere o próprio Apóstolo quando usa de alguns exemplos de Êxodo ou de Números
e diz que
"estas
coisas lhes aconteciam em figura, mas foram escritas por causa de nós, para
quem o fim dos séculos chegou", I
Cor. 10, 11
oferecendo-nos ocasião à
inteligência para que possamos entender do que estas coisas que lhes aconteciam
eram figuras, quando nos diz também que
"bebiam da
pedra espiritual que os seguia, e esta pedra era Cristo". I Cor. 10, 4
Quanto ao tabernáculo, o mesmo
apóstolo nos lembra em outra epístola aquelas palavras que foram preceituadas a
Moisés:
"Farás
todas as coisas segundo a forma que te foi mostrada no monte".
Heb. 8, 5
Escrevendo aos Gálatas, e
repreendendo pela palavra a alguns que a si mesmos pareciam que liam a Lei mas,
por ignorarem haver alegorias nas coisas que foram escritas, não a entendiam,
assim lhes diz com uma certa repreensão:
"Dizei-me
vós, os que credes estar debaixo da Lei, não lestes a Lei? De fato, está
escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre. Mas aquele
que nasceu da escrava, nasceu segundo a carne; aquele, porém, que nasceu da
livre, nasceu segundo a promessa. Estas coisas são alegorias. De fato, estes
são os dois testamentos". Gal. 4, 21-24
Nisto deve-se também
considerar o quão cautelosamente o Apóstolo falou, ao dizer:
"Vós, que
estais sob a Lei, não ouvistes a Lei?"
`Ouvistes', isto é, `entendestes e conhecestes'.
E também, na Epístola aos Colossenses, abraçando e resumindo brevemente o
sentido de toda a Lei:
"Ninguém,
pois, me condene pelo comer e pelo beber, ou pelos dias solenes, ou pelas neomênias, ou pelo sábado, que
são sombra de coisas futuras". Col.
2, 16-17
É ele também que, escrevendo
aos Hebreus e aos que são da circuncisão, diz:
"Eles que
servem à imagem e à sombra das coisas celestes". Heb. 8, 5
Tudo isto talvez não parecerá
matéria de dúvida, para aqueles que recebem os escritos do Apóstolo como
sentenças divinas, no que diz respeito aos cinco livros de Moisés. Mas se
investigarmos o que se refere à história restante, veremos que mesmo as coisas
que ali estão contidas deverão também ser ditas terem acontecido em figura para
aqueles dos quais são escritas. É o que se encontra escrito na Epístola aos
Romanos, quando o Apóstolo coloca um exemplo tirado do Terceiro Livro dos Reis,
dizendo:
"Eu
reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos
diante de
Baal". Rom. 11, 4
Paulo toma estas palavras como
ditas figurativamente daqueles que são chamados israelitas segundo a eleição,
para que fosse mostrado que o advento de Cristo não aproveita somente agora aos
gentios, mas a muitos outros chamados à salvação também da descendência de
Israel.
IIIª Parte
14.
Tudo isto sendo assim, esboçaremos, como exemplo e forma, conforme nos ocorrer,
de que modo deve ser entendida, sobre cada uma destas coisas, a divina
Escritura.
Repetiremos e mostraremos
primeiro que o Espírito Santo, pela providência e vontade de Deus e pela
virtude de seu Verbo unigênito, que era no princípio Deus junto de Deus,
iluminava os ministros da verdade, os profetas e apóstolos, para que
conhecessem os mistérios daquelas coisas ou causas que aconteciam entre os
homens ou com os homens. Chamo aqui de homens as almas colocadas nos corpos
que, ao narrar ações humanas ou transmitir preceitos e observâncias, descreviam
figuradamente os mistérios que lhes eram conhecidos e revelados por Cristo, não
para que qualquer um que os quisesse conculcar aos pés as tivesse explicadas,
mas para que os que se entregassem ao seu estudo com toda a pureza, sobriedade
e vigílias pudessem investigar profundamente o sentido escondido do Espírito de
Deus e pudessem, pela narrativa costumeira do discurso, contemplar um outro
contexto mais elevado, tornando-se desta maneira sócios da ciência e do
Espírito e participantes do conselho divino. De fato, não há nenhuma outra
maneira pela qual a alma pode alcançar a perfeição da ciência se não pela
inspiração da verdade da sabedoria divina.
Estes homens, portanto,
repletos do espírito divino, trataram principalmente de Deus, isto é, do Pai,
do Filho e do Espírito Santo. Falaram também, conforme dissemos, repletos do
espírito divino, dos mistérios do Filho de Deus, de como o Verbo se fêz carne e
por qual causa veio a tomar a forma de servo. Pela palavra divina, em seguida,
ensinaram aos mortais, sobre as criaturas racionais, tanto as celestes quanto
as mais felizes entre as terrenas, sobre a diferença das almas e sobre a origem
destas diferenças, e sobre o que é este mundo, por que foi feito e de onde
provém a existência de tanta e tamanha malícia sobre a terra. Quanto à questão
sobre se esta malícia existe somente na terra ou também é encontrada em outros
lugares, isto será necessário que o aprendamos a partir dos discursos divinos.
A intenção do Espírito Santo
era iluminar primeiramente estas santas almas e outras a elas semelhantes que
haviam se consagrado ao ministério da verdade. Em seguida, conforme já
dissemos, por causa daqueles que não pudessem ou não quisessem entregar-se ao
trabalho e à indústria pela qual mereceriam que lhes fossem ensinadas ou
viessem a conhecer tantas e tais coisas, havia a perspectiva de ocultar os
mistérios envoltos em discursos costumeiros, sob o pretexto de alguma história
ou da descrição de coisas visíveis.
Foi deste modo que se
introduziu a narração da criação e da formação da criatura visível e do
primeiro homem, à qual se seguiu a da sua descendência, fazendo-se referência a
algumas coisas realizadas por alguns justos e também relembrando-se alguns de
seus delitos como de homens. Foi daqui que foram escritas algumas ações
impúdicas e iníquas dos ímpios. De um modo admirável, encontram-se também
narrações de batalhas realizadas e a descrição da diversidade ora dos que
vencem, ora dos vencidos, pelas quais coisas se declaram, aos que sabem
investigar tais ditos, certos mistérios inefáveis. À Escritura legal, pela
admirável disciplina da sabedoria, é inserida a Lei da verdade e também dos profetas;
e com todas estas coisas foram tecidas pela divina arte da sabedoria como que
um certo indumento e véu dos sentidos espirituais. É a isto que chamamos de
corpo da Sagrada Escritura, e é deste modo que, pelo que chamamos de
revestimento da letra, tecido pela arte da sabedoria, muitos, que não o
poderiam de outro modo, podem ser edificados e adiantar-se.
15.
No entanto, se em todas as coisas desta roupagem, isto é, se em tudo o que se
encontra na história da lei, fossem guardadas as conseqüências e conservada a
ordem, de tal modo que nela a inteligência pudesse conservar um curso contínuo
de entendimento, não acreditaríamos que pudesse haver mais nada inserido mais
profundamente nas Sagradas Escrituras do que isto que nos é manifestado na sua
superfície. A sabedoria divina procurou, por este motivo, colocar certos
estorvos ou interrupções ao entendimento histórico, inserindo em sua narrativa
certas impossibilidades e inconveniências, para que as próprias interrupções da
narração oferecessem resistência ao leitor como se fossem obstáculos pelos
quais se nega caminho ou passagem ao entendimento vulgar. Assim excluídos e
repelidos, somos conduzidos ao início de uma outra via, de tal modo que, pelo
ingresso de uma passagem estreita para um caminho mais elevado e mais eminente,
se manifeste a imensa grandeza da ciência divina.
Devemos considerar que o
principal objetivo do Espírito Santo foi o de guardar a conseqüência da
inteligência espiritual, tanto nas coisas que devem ser feitas como nas coisas
que já se fizeram. Assim, onde o Espírito Santo encontrou que as coisas que se
fizeram segundo a história podiam ser adaptadas à inteligência espiritual,
compôs a ordem de ambos os textos em um só discurso narrativo, escondendo
sempre o sentido oculto mais elevado. Onde, porém, não pôde convir a
conseqüência espiritual à história das coisas realizadas, inseriu algumas
coisas que foram feitas menos ou que não poderiam ter sido feitas de nenhum
modo, ou às vezes também que poderiam ter sido feitas, mas que não o foram. Em
alguns discursos nos quais, segundo a inteligência corporal, não parece que
possa ser guardada a verdade, isto é feito com muitas inserções, o que
principalmente costuma acontecer na legislação, onde há muitas coisas que nos
próprios preceitos corporais é manifesto que sejam úteis, embora haja outras
nas quais não se manifesta nenhuma razão de utilidade e às vezes até mesmo se
observam impossibilidades.
Tudo isto, conforme dissemos,
o Espírito Santo buscou para que, na medida em que o que está na superfície não
possa ser verdadeiro ou útil, rapidamente fôssemos chamados à busca de uma
verdade mais alta e procurássemos nas Escrituras, que cremos inspiradas por
Deus, um sentido digno de Deus.
16.
O Espírito Santo, porém, não cuidou apenas das coisas que foram escritas até o
advento de Cristo mas, como um só e mesmo Espírito procedente de um só Deus,
fêz também o mesmo nos evangelistas e apóstolos. Também aquelas narrações que
inspirou por meio destes foram tecidas pela arte de sua sabedoria que expusemos
acima.
Também nelas misturou coisas
nada pequenas pelas quais, interpolada ou interrompida pela sua impossibilidade
a ordem histórica da narrativa, dobrasse e chamasse a intenção do leitor ao
exame da inteligência interior.
Mas, para que o que dizemos
seja conhecido pelos próprias coisas, consultemos as próprias passagens das
Escrituras.
A quem, pergunto, que tenha
senso, parecerá ser dito coerentemente que o primeiro, o segundo e o terceiro
dia, nos quais se nomeiam tardes e manhãs, foram sem Sol, sem Lua e sem
estrelas, e o primeiro dia sem céu?
Quem será encontrado tão
idiota que julgue que Deus, como um homem qualquer do campo, tenha plantado
árvores no paraíso, no Éden voltadas para o Oriente, e nele tenha plantado a
árvore da vida, isto é, uma árvore visível e palpável, e de tal maneira que
alguém comendo desta árvore com seus dentes corporais alcançasse a vida e,
comendo de outra árvore, obtivesse a ciência do bem e do mal?
Quando se diz que Deus
caminhava no paraíso após o meio dia, e que Adão se escondia debaixo da árvore,
não tenho dúvida de que com isto a Escritura profere uma expressão figurativa,
na qual se indicam certos mistérios.
Caim, tendo-se retirado da
face de Deus (Gen. 4, 16) manifestamente induz o leitor prudente a que se pergunte
o que é a face de Deus, e como alguém poderá retirar-se dela.
Para não ampliar a obra que
temos em mãos mais do que o justo, será muito fácil, para quem o quiser, reunir
das santas escrituras muitas coisas que, apesar de terem sido escritas como fatos,
não podem ser cridas competente e razoavelmente que se tenham realizado segundo
a história.
Este modo de escrever pode ser
encontrado abundante e copiosamente também nos livros evangélicos, quando se
diz, por exemplo, que o demônio transportou Jesus para um elevado monte (Mt. 4,
8) para que dali lhe mostrasse todos os reinos do mundo e a sua glória. Como
parecerá que tenha se podido fazer com que Jesus tivesse sido conduzido pelo
demônio a um alto monte, ou também que se lhe tivesse sido mostrado aos seus
olhos carnais, junto a um só monte, todos os reinos do mundo, isto é, o reino
dos Persas, dos Scítios e dos Índios, ou também como os seus reis são
glorificados pelos homens? Muitíssimas outras coisas semelhantes a estas
encontrará no Evangelho quem o ler mais atentamente, e poderá notar que nestas
narrativas que parecem enunciadas segundo a letra, há inseridas e
simultaneamente tecidas coisas que a história não recebe, mas que, todavia,
possuem uma inteligência espiritual.
19.
Não queremos que ninguém suspeite que julgamos que não haja história alguma nas
Escrituras porque dissemos que algumas destas coisas não foram feitas, nem que
nenhum preceito da Lei deva ser entendido segundo a letra porque consideramos
que em alguns deles a razão ou a possibilidade não admite que sejam entendidos
segundo a letra. Não é nosso pensamento também que as coisas que foram escritas
do Salvador não se tenham cumprido de modo sensível, nem que os seus preceitos
não devam ser observados segundo a letra. Ao contrário, o que se nos mostra de
modo evidente é que em muitas passagens da Escritura não só pode como também
deve ser observada a verdade da história.
Quem poderá negar que Abraão
foi sepultado em uma caverna dupla em Hebron (Gen. 25, 10), assim como também
Isaaque e Jacó, juntamente com suas esposas (Gen. 49, 31; 50, 13)?
Ou quem duvidará que Siquém
foi dada como porção a José (Jos. 24, 32)?
Ou que Jerusalém é metrópole
da Judéia, na qual foi construído o templo de Deus por Salomão?
E, assim como ocorre com estas
passagens, o mesmo pode ser dito de uma multidão inumerável de outras.
Muitas mais, de fato, são as
passagens que constam deverem ser entendidas segundo a história do que aquelas
que contém um aberto sentido espiritual. Quem não afirmará que o mandamento que
preceitua:
"Honra teu
pai e tua mãe, para que haja bem para ti", Ex.
20, 13
seja suficiente sem nenhuma
interpretação espiritual, e que seja necessário aos que o observam? E isto
principalmente quando consideramos que Paulo, repetindo as mesmas palavras,
confirma o mesmo preceito (Ef. 6, 2-3). E o que deveremos dizer do que está
escrito:
"Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho", Ex. 20, 13-16
e outras muitas passagens como
estas? E quanto às coisas que são ordenadas no Evangelho, quem poderá duvidar
que muitas devem ser observadas segundo a letra, como quando se diz:
"Eu, porém,
vos digo, não jureis de modo algum"? Mt.
5, 34
E também quando se diz:
"Quem olhar
para uma mulher para desejá-la, já adulterou com ela
em seu
coração". Mt. 5, 14
O mesmo se deve dizer de Paulo
apóstolo quando preceitua:
"Corrijais
os inquietos, consoleis os pusilânimes, sustentai os fracos,
sede pacientes
com todos", I. Tes. 5, 14
e de muitos outros preceitos
que a estes se assemelham.
Todavia, se alguém ler mais
atentamente, estou certo que em muitos lugares duvidará se esta ou aquela
história deve ser considerada verdadeira ou menos verdadeira segundo a letra; e
se algum determinado preceito deva ser observado segundo a letra ou não. Para
isto é necessário que nos esforcemos com muito estudo e trabalho, entendendo
com a maior reverência que as coisas que são colocadas nos livros santos são
palavras divinas e não humanas.
20.
Nós, portanto, consideramos que este é o entendimento que deve ser guardado,
digna e conseqüentemente, nas Sagradas Escrituras.
As sagradas letras pregam
haver um povo sobre a terra escolhido por Deus, o qual foi chamado com vários
nomes. Às vezes todo este povo é dito Israel, às vezes Jacó. De um modo especial,
depois que este povo foi dividido por Jeroboão filho de Nadab em duas partes
(1Reis 12), as dez tribos que permaneceram sob seu domínio foram chamadas de
Israel, enquanto que as outras duas, junto com as quais também estava a tribo
de Levi, e das quais uma era aquela de cuja estirpe real descendia Davi, foi
chamada de Judá. Todo o lugar que este povo possuía e que o havia recebido de
Deus era chamado Judéia, do qual a metrópole era Jerusalém. Chama-se metrópole
aquela cidade que é dita como que a mãe de muitas cidades. Os nomes destas
cidades, separadamente, são citados com muita freqüência nos diversos livros
divinos; são enumerados, porém, todos simultaneamente, no livro de Josué, filho
de Num.
21. Tudo
isto sendo coisa certa, querendo o Apóstolo de algum modo elevar a nossa
inteligência da terra, diz ele em algum lugar:
"Considerai
Israel segundo a carne". I Cor. 10, 18
Com isto ele nos ensina que,
na verdade, há um outro Israel que não é segundo a carne, mas segundo o
espírito. E, novamente, afirma em outro lugar:
"Porque nem
todos os que descendem de Israel são israelitas". Rom. 9, 6
22.
Se, portanto, aprendemos por meio do Apóstolo que há um Israel segundo a carne
e outro segundo o espírito, quando o Salvador nos diz que
"Eu não fui
enviado senão às ovelhas desgarradas da casa de Israel",
Mt. 15, 24
não mais podemos entender esta
passagem como aqueles que só conhecem o que é terreno, isto é, como por exemplo
os Ebionitas, os quais também são chamados de pobres pelo mesmo nome. Ebion, de
fato, significa pobre entre os hebreus. Devemos entender que há um outro gênero
de almas que são também chamadas de Israel, segundo o significado de seu
próprio nome, pois Israel significa `a mente que vê a Deus',
ou `o homem que vê a Deus'.
O Apóstolo revela igualmente
coisas deste mesmo gênero sobre Jerusalém quando nos diz que
"aquela
Jerusalém, que é de cima, é livre e é nossa mãe". Gal. 4, 26
Sobre Jerusalém, em outra de
suas epístolas, nos diz também o seguinte:
"Vós,
porém, aproximaste-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo,
da Jerusalém
celeste e da multidão de muitos milhares de anjos, e da Igreja dos
primogênitos, que estão inscritos no céu". Heb.
12, 22-23
Se, portanto, há algumas almas
neste mundo que são chamadas de Israel, e no céu há uma cidade que é chamada de
Jerusalém, seguir-se-á que estas cidades que são ditas do povo de Israel tenham
como metrópole a Jerusalém celeste e que deste modo também entendamos de toda
Judá. É delas que consideramos que os profetas falaram quando, através de
místicas narrativas, profetizaram algo da Judéia ou de Jerusalém, ou quando
algumas santas histórias relatam ter acontecido este ou aquele gênero de
invasão na Judéia ou em Jerusalém.
Tudo, portanto, o que é
narrado ou profetizado de Jerusalém e de todos os lugares ou cidades que são
ditos cidades da terra santa, cuja metrópole é Jerusalém, se escutarmos as
palavras de Paulo como sendo palavras do Cristo que, segundo a sentença do
próprio Apóstolo, nele fala, devemos entende-lo como referindo-se àquela cidade
que ele chama de Jerusalém celeste.
Deve-se considerar que o
Salvador nos queria estimular a uma inteligência mais elevada destas mesmas
cidades quando prometeu, aos que tivessem dispensado bem o dinheiro que lhes
havia sido confiado, que teriam poder sobre dez cidades (Lc. 19, 17), ou sobre
cinco cidades (Lc. 19, 19).
Se, portanto, as profecias que
foram feitas sobre Judá e Jerusalém, e também sobre Judá, Israel e Jacó, quando
não as entendemos carnalmente, significam mistérios divinos, conseqüentemente
também aquelas profecias que foram proferidas sobre o Egito ou sobre os
egípcios, sobre Babilônia ou sobre os babilônios ou sobre Sidônia e os
sidonitas não devem ser entendidas como profetizadas deste Egito, desta
Babilônia, deste Tiro, ou desta Sidônia que estão colocados na terra. As coisas
que o profeta Ezequiel profetizou de Faraó rei do Egito (Ez. 29-32) não podem
convir a nenhum homem que pudesse ter reinado no Egito, assim como
manifestamente o indica o próprio texto da leitura. Semelhantemente, as coisas
que são ditas do príncipe de Tiro não podem ser entendidas terem sido ditas de
algum homem ou rei de Tiro. E quanto a Nabucodonosor, as coisas que nas
Sagradas Escrituras dele estão escritas em muitos lugares, principalmente em Isaías,
como será possível que as entendamos como ditas de um homem? Não pode ser um
homem aquele do qual se diz
"ter caído
do céu, luzeiro resplandecente, que brilhava ao nascer do dia".
Is. 14, 12
E as coisas que são ditas em
Ezequiel sobre o Egito, como aquela segundo a qual esta nação seria exterminada
durante quarenta anos de tal maneira que nela não se encontraria pé de homem
(Ez. 29, 11), e que seria expugnada a tal ponto que por toda a sua terra o
sangue humano ter-se-ia elevado até os joelhos, não sei se alguém que tenha
inteligência poderia entendê-lo como referindo-se a esta terra do Egito
adjacente à Etiópia.
Deve-se, portanto, examinar se
é possível entender com mais dignidade que, assim como existe a Jerusalém e a
Judéia celeste e, sem dúvida, também um povo que habita nela, que é dito
Israel, assim também será possível que vizinhos a estes lugares haja outros que
pareçam chamar-se Egito, Babilônia, Tiro ou Sidônia, e que os príncipes destes
lugares e as almas que neles habitam possam ser chamados de egípcios, tirenses
e sidônios. E que, segundo a vida que ali conduzem, será um cativeiro aquele
pelo qual dizemos a Judéia ter descido à Babilônia ou ao Egito como que
proveniente de lugares melhores e superiores, ou ter sido dispersa entre outros
povos.
23b. Todas
estas coisas, conforme dissemos, estão escondidas e seladas nas histórias da
Sagrada Escritura, porque
"o reino do
céu é semelhante a um tesouro escondido no campo, o qual, quando um homem o
acha, esconde-o e, pela alegria que sente de o achar, vai, vende tudo o que tem, e compra
aquele campo". Mt. 13, 44
Deve-se considerar mais
diligentemente, nesta passagem, se nela não se indica que somente a própria
superfície, por assim dizer, da Escritura, isto é, aquilo que se lê conforme a
letra, é um campo repleto e florescente de todo gênero de plantas, mas também
aquele entendimento espiritual mais elevado e profundo que são os tesouros de
sabedoria e ciência escondidos aos quais o Espírito Santo, por meio de Isaías,
chama de tesouros obscuros, invisíveis e escondidos (Is. 45, 3). Para que estes
tesouros possam ser encontrados é necessário o auxílio divino, o único que
poderá quebrar as portas de bronze (Is. 45, 2) em que foram fechados e
escondidos que poderá arrombar as travas de ferro (Is. 45, 2) com as quais se
fecha o caminho pelo qual se chega às coisas que no Gênese foram escritas e
seladas sobre os diversos gêneros de almas, às descendências e gerações que
pela proximidade pertencem a Israel ou que são separadas mais longe de sua estirpe,
ao que é aquela descida ao Egito das setenta almas (Gn. 46, 27) que foram no
Egito como astros do céu em meio à multidão. Não são todos os que descenderam
destes, porém, que foram luz deste mundo:
"Nem todos,
de fato, os que descendem de Israel, são israelitas". Rom. 9, 6
Os descendentes destas setenta
almas, de fato, se tornaram como a areia inumerável que está à beira do mar.
24.
A descida dos santos padres ao Egito pode ser considerada como tendo se
realizado a este mundo, concedida pela providência divina para a iluminação e a
instrução do gênero humano. Por meio deles seriam ajudadas as demais almas
iluminadas, e foi a eles que foi concedida em primeiro lugar a palavra de Deus.
Somente este, ademais, é o povo que é dito ver a Deus, que é o que significa o
nome de Israel quando traduzido.
É, portanto, conseqüente que
adaptemos e interpretemos segundo este entendimento o castigo do Egito com as
dez pragas para que permitisse a saída do povo de Deus, assim como os
acontecimentos com o povo no deserto, a construção do tabernáculo pela
congregação de todo o povo, a urdidura das vestimentas sacerdotais e o demais
que se diz das vestes do ministério. Verdadeiramente, conforme foi escrito,
estas coisas contém em si a sombra e a forma das coisas celestes. Paulo, de um
modo manifesto, afirma dos que são do povo de Israel que eles
"servem à
sombra e à imagem das coisas celestes". Heb.
8, 5
Na própria Lei encontram-se as
leis e as instituições pelas quais deve-se viver na terra santa. São também
feitas ameaças aos que tiverem prevaricado da mesma e colocam-se diversos
gêneros de purificação aos que necessitam de purificação ou aos que mais
freqüentemente se maculam. Por meio destas purificações podem alcançar aquela
única purificação depois da qual não é mais lícito macular-se.
Este povo é recenseado, mas
não todos. O preceito divino estabelece que as almas infantis ainda não estão
no tempo de serem recenseadas (Num 1, 2-3); não o estão também aquelas almas
que são súditas de outras como à sua cabeça, as quais são chamadas de mulheres.
Numeram-se somente os homens, as mulheres não sendo contadas no número que é
ordenado por Deus que seja recenseado. Porém fica também manifesto que elas não
podem ser numeradas extrinsecamente, mas que estão incluídas no número daqueles
que são chamados de homens. São principalmente os que são aptos para lutar nas
guerras israelíticas os que são incluídos no santo número, aqueles que podem
guerrear contra os adversários e inimigos que o Pai submeteu ao seu Filho
sentado à sua direita para que destrua todo principado e potestade. Este número
é o dos seus soldados que, militando para Deus e não se misturando nos negócios
seculares, vencem os adversários do Reino. São aqueles que, revestidos pelo
escudo da fé, vibram a lança da sabedoria, aqueles nos quais brilha o elmo da
esperança e da salvação e por cuja armadura da caridade Deus defende todo o
peito. Parece-me que os que Deus preceitua nos livros divinos que sejam
recenseados sejam soldados que se preparam para tais guerras. Destes, porém,
são apontados como muito mais resplandecentes e perfeitos aqueles dos quais se
diz que até os cabelos de suas cabeças são numerados (Mt. 10, 30). Quanto aos
que foram punidos pelos pecados e cujos corpos caíram no deserto, estes parecem
ter semelhança com os que, tendo-se adiantado não pouco, no fim não puderam
alcançar a perfeição por diversas causas. Diz-se deles que murmuraram,
cultuaram os ídolos, fornicaram ou fizeram outras coisas que não é lícito à
mente conceber.
Não considero também vazio de
mistério que alguns, tendo muito gado e animais, se adiantaram e arrebataram
antecipadamente um lugar apto ao pasto e à alimentação de seus animais, os
quais lutaram nas guerras de Israel antes que todos. Pedindo eles mesmos este
lugar a Moisés, foram separados dos demais além do Jordão e segregados da
possessão da terra santa (Num. 32). O Jordão pode ser visto, segundo a forma
das coisas celestes, regar e inundar as almas sedentas e os sentidos que lhes
são adjacentes.
Não me parece ocioso também
que o próprio Moisés tenha ouvido de Deus as coisas que são descritas no
Levítico, enquanto que no Deuteronômio o povo torna-se ouvinte de Moisés, dele
aprendendo as coisas que não pôde ouvir de Deus. Por este motivo o Deuteronômio
é dito segunda lei, o que a alguns parece significar que, cessando a primeira
Lei que havia sido dada a Moisés, tivesse se formado uma segunda Lei, entregue
de um modo especial por Moisés a Josué seu sucessor, o qual cremos ser a forma
de nosso Salvador, por cuja segunda lei, que são os preceitos evangélicos,
todas as coisas são conduzidas à perfeição.
25. Devemos
examinar ademais se isto não parece indicar que assim como no Deuteronômio se
declara uma legislação mais evidente e mais manifesta do que a que havia sido
escrita antes, assim também não se indica que ao primeiro advento do Salvador
que se realizou na humildade quando assumiu a forma de servo não se sucederá
aquele segundo mais resplandecente e glorioso na glória do Pai, nisto se
plenificando a forma do Deuteronômio, quando no reino dos céus todos os santos
viverem das leis daquele evangelho eterno. Deste mesmo modo. como Cristo agora,
pelo seu primeiro advento, plenifica a lei que contém a sombra dos bens
futuros, assim também pelo seu segundo e glorioso advento, plenificará e
conduzirá à perfeição a sombra deste seu primeiro advento. Foi assim que,
efetivamente, disse dele o profeta:
"O sopro de
nossa boca, ó Cristo Senhor, foi preso em nossos pecados, a quem dissemos: Na
tua sombra viveremos entre as nações", Lam.
4, 20
quando todos os santos forem
transferidos do evangelho temporal ao mais digno evangelho eterno, segundo
no-lo é assinalado sobre o Evangelho eterno por João no Apocalipse (Ap. 14, 6).
26.
Seja para nós suficiente em tudo isto adequar o nosso senso à regra da piedade
e sentir das palavras do Espírito Santo que não constituem um discurso escrito
segundo a fragilidade da linguagem humana. De fato, está escrito que
"toda a
glória do rei provém do interior". Salmo
44, 14
É deste modo também que o
tesouro dos sentidos divinos está escondido, encerrado nos frágeis vasos da vil
letra. Se alguém, no entanto, busca mais curiosamente a explicação de cada uma
destas coisas, venha e, junto conosco, ouça como Paulo apóstolo, por meio do
Espírito Santo, o qual perscruta até as profundezas de Deus, investiga a
elevação da sabedoria e da ciência divina e, não chegando nem ao fim e nem, por
assim dizer, podendo chegar a um íntimo conhecimento, em desespero e admiração
de causa, clama e diz:
"Ó altitude
das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus!" Rom. 11, 33
E que ele proclamou isto
desesperando de uma perfeita compreensão, podemos ouvi-lo dizendo:
"Quão
incompreensíveis são os seus juízos, e impenetráveis os seus caminhos!" Rom.
11, 33
De fato, ele não diz quão
dificilmente podem ser compreendidos os juízos de Deus, mas que não o podem
completamente; nem disse que dificilmente podem ser perscrutados os seus
caminhos, mas que não podem ser perscrutados. Quanto mais alguém crescer na
investigação e mais se adiantar no estudo interior, e quanto mais for ajudado
pela graça de Deus e iluminado em seu entendimento, mais não poderá chegar ao
perfeito fim daquelas coisas que são buscadas, nem nenhuma mente que foi criada
terá possibilidade de compreendê-las de modo algum. Antes, para encontrar
algumas das coisas que busca, verá outras mais que terá que buscar. E se também
a estas alcançar, verá muitíssimas outras que deverão ser buscadas. Foi por
este motivo que o sapientíssimo Salomão, compreendendo pela sabedoria a
natureza das coisas, disse:
"Eu disse:
far-me-ei sábio, e a sabedoria retirou-se para longe de mim,
muito mais do
que antes estava. A sua profundidade é grande, quem a poderá sondar?" Ec. 7, 24
Também Isaías, sabendo que o
início das coisas não poderia ser encontrado pela natureza mortal, nem tampouco
por aquelas naturezas que, embora sejam mais divinas do que a humana, foram,
todavia, elas próprias feitas e são, portanto, também criaturas, e sabendo,
portanto, que por nenhuma destas, nem o início nem o fim pode ser encontrado,
diz:
"Dizei as
coisas que foram no início, e saberemos que sois deuses; ou anunciai as últimas
que serão, e então veremos que sois deuses". Is.
41, 22-23
Por isto também o doutor
hebreu colocava que, como o início ou o fim de todas as coisas não pode ser
compreendido por ninguém, senão somente pelo Senhor Jesus Cristo e pelo
Espírito Santo, Isaías teria dito pela figura da visão haver somente dois
serafins que com duas asas cobriam a face diante de Deus, com duas os pés, e
com duas voavam, clamando mutuamente e dizendo:
"Santo,
santo, santo, é o Senhor Deus dos Exércitos, toda a terra está cheia de sua
glória". Is. 6, 1-3
Porque, portanto, somente os
serafins tinham ambas as suas asas cobrindo-lhes as faces diante de Deus e os
seus pés, devemos ousar declarar que nem o exército dos santos anjos, nem os
santos tronos, nem as dominações, nem os principados, nem as potestades podem
conhecer integralmente o início e o fim de todas as coisas. Deve-se, porém,
entender que estes santos que foram enumerados como sendo espíritos e virtudes
próximas aos próprios inícios tenham alcançado mais do que os restantes puderam
conseguir. De tudo aquilo que, porém, revelando-o o Filho de Deus e o Espírito
Santo, tiverem aprendido estas virtudes, muito estes outros puderam alcançar e
muito mais os primeiros do que os inferiores. Tudo, porém, mesmo para elas é
impossível que o compreendam, porque está escrito:
"Muitas
obras de Deus são ocultas". Ec. 16, 22
De onde que é desejável que
cada um, segundo a medida de suas forças, sempre queira arrojar-se para o que
está adiante, esquecendo-se do que fica para trás, tanto para as obras melhores
como também para o senso e o entendimento mais puro, por Jesus Cristo, nosso
Salvador, ao qual é a glória pelos séculos dos séculos.
27.
Todos, portanto, os que se ocupam com a verdade, pouco se preocupem com nomes e
palavras, porque cada povo tem diversos costumes de palavras. Preocupem-se em
buscar mais o que significa, do que com quais palavras se significa,
principalmente em coisas tão grandes e tão difíceis, como quando se busca, por
exemplo, se há alguma substância que não possa ser entendida nem pela cor, nem
pelo hábito, nem pelo tato, nem pelo tamanho, mas que seja apenas visível pela
mente, seja a qual nomeada como se o queira. Os gregos a chamam de"assomaton",
isto é, incorpóreo, as divinas Escrituras a chamam de invisível, como quando
Paulo diz Cristo ser a imagem invisível do Pai (Col. 1, 15), para pouco depois
dizer que por Cristo foram criadas todas as coisas, as visíveis e as invisíveis
(Col. 1, 17). Vemos, assim, que que Paulo declara haver também entre as
criaturas algumas que são invisíveis segundo a propriedade de suas substâncias.
Estas, porém, embora não sejam corporais, usam, todavia, os corpos, ainda que
eles mesmos sejam, segundo a substância, melhores do que os corpos. A
substância da Trindade, porém, que é princípio e causa de todas as coisas, da
qual são todas, por qual são todas e na qual são todas, não se pode crer que
seja nem corpo, nem em corpo, mas que seja de todo incorpórea.
Exortados assim brevemente
pela própria lógica e coerência do assunto, embora nos tenhamos estendido um
pouco, seja suficiente o que dissemos para mostrar que há algumas coisas cuja
significação não pode ser explicada por nenhum discurso da língua humana, mas
que são declaradas por uma inteligência mais simples do que as propriedades de
quaisquer palavras. A esta regra deve ater-se também a inteligência das letras
divinas, e considere-se o que se diz não pela vileza da palavra, mas pela
divindade do Santo Espírito que inspirou quem as escreveu.
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br
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