CARTA ENCÍCLICA
«RERUM NOVARUM»
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA LEÃO XIII
A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS
E BISPOS DO ORBE CATÓLICO,
EM GRAÇA E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS
INTRODUÇÃO
1. A sede
de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa
agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a
esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da
indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações
entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno
número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que
os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem
falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito.
Por toda
a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por
si só basta pa ra mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta
situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o génio dos doutos, a
prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos
legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra
causa que impressione com tanta veemência o espírito humano.
É por
isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da
Igreja e da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a soberania
política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados (1) e
outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões
erróneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos,
falando-vos da Condição dos Operários. Já temos tocado esta matéria
muitas vezes, quando se Nos tem proporcionado o ensejo; mas a consciência do
Nosso cargo Apostólico impõe-Nos como um dever tratá-la nesta Encíclica mais
explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os
princípios duma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é
fácil de resolver, nem isento de perigos. E difícil, efectivamente, precisar
com exactidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza
e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado, o problema não é sem
perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram
desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar
desordens.
Causas do
conflito
2. Em
todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário,
com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes
inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de
infortúnio e de miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as substituir
por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma protecção; os
princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições
públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa,
têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos
e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais
o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser
praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável
ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis
de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de
opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos
proletários.
A solução
socialista
3. Os Socialistas,
para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem,
e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que
os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua
administração deve voltar para - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das
comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar
um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser
capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em
prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos
dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão
completa do edifício social.
A
propriedade particular
4. De
facto, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por
quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é
conquistar um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se
põe à disposição de outrem as suas forças e a sua indústria, não é,
evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua
sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só o
direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como
entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias,
e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo,
torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário
transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artista com o mesmo
título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente
nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim,
esta conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão
preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos
operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e
roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de
engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação.
5. Mas, e
isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com
a justiça, por-que a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de
direito natural. Há, efectivamente, sob este ponto de vista, uma grandíssima
diferença entre o homem e os animais destituídos de razão. Estes não se
governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza, mediante um
duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua actividade sempre viva e lhes
desenvolve as forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um
dos seus movimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à defesa da
sua própria vida; o segundo, à propagação da espécie; e este duplo resultado
obtêm-no facilmente pelo uso das coisas presentes e postas ao seu alcance. Por
outro lado, seriam incapazes de transpor esses limites, porque apenas são
movidos pelos sentidos e por cada objecto particular que os sentidos percebem.
Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em sua
perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não
menos que a esta, gozar dos objectos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva
mesmo que possuída em toda a sua plenitude, não só não abraça toda a natureza
humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lhe obedecer e ser-lhe sujeita.
O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue essencialmente do
animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa deve
reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas
ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo
uso, como as que permanecem depois de nos terem servido.
Uso comum
dos bens criados e propriedade particular deles
Uma
consideração mais profunda da natureza humana vai fazer sobressair melhor ainda
esta verdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objectos,
e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é
senhor das suas acções; também sob a direcção da lei eterna e sob o governo
universal da Providência divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e a
sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar
mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se
segue que deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a
própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua
fornecedora no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente:
satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto,
para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza
pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe
fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os
seus recursos sempre fecundos. E não se apele para a providência do Estado,
porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o
homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua
existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o
facto de que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque
Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos.
Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não
assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das
propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que
dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade
comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se
alimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de
maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio
universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno
próprio, quer em alguma parte lucrativa cuja remuneração, sai apenas dos
produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. De tudo isto resulta,
mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. A
terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a
conservação da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia
fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo
os recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar esses bens da
natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da natureza corpórea
que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, a ponto que,
com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será
lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.
A
propriedade sancionada pelas leis humanas e divinas
A força
destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos
partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem
dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas
recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em
que edificou, a porção da terra que cultivou. Não vêem, pois, que despojam
assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado
com arte pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem,
ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está
inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria
impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse então a
atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Da mesma forma que
o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao
trabalhador.
É, pois,
com razão, que a universalidade do género humano, sem se deixar mover pelas
opiniões contrárias dum pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a
natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens
e das propriedades particulares; foi com razão que o costume de todos os
séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do homem e à vida
tranquila e pacífica das sociedades. Por seu lado, as leis civis, que recebem o
seu valor(1), quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e
protegem-no pela força. Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhe o
seu selo, proibindo, sob perla gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence
aos outros: «Não desejarás a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu
campo, nem o seu boi, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
lhe pertença» (2) .
A família
e o Estado
6.
Entretanto, esses direitos, que são inatos a cada homem considerado
isoladamente, apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas
relações e na sua conexão com os deveres da vida doméstica. Ninguém põe em
dúvida que, na escolha dum género de vida, seja lícito cada um seguir o
conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laço conjugal.
Nenhuma lei humana poderia apagar de qualquer forma o direito natural e
primordial de todo o homem ao casamento, nem circunscrever o fim principal para
que ele foi estabelecido desde a origem: «Crescei e multiplicai-vos»(3). Eis,
pois, a família, isto é, a sociedade doméstica, sociedade muito pequena
certamente, mas real e anterior a toda a sociedade civil, à qual, desde logo,
será forçosamente necessário atribuir certos direitos e certos deveres
absolutamente independentes do Estado. Assim, este direito de propriedade que
Nós, em nome da natureza, reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora
transferi-lo para o homem constituído chefe de família. Isto não basta: passando
para a sociedade doméstica, este direito adquire aí tanto maior força quanto
mais extensão lá recebe a pessoa humana.
A
natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e
sustentar seus filhos; vai mais longe. Como os filhos reflectem a fisionomia de
seu pai e são uma espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza
inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dum património que os ajude a
defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas da má fortuna.
Mas, esse património poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de bens
permanentes e produtivos que possam transmitir-lhes por via de herança?
Assim
como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade
propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que
sempre indubitavelmente na esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela
goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem a sua conservação e o exercício
duma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da sociedade civil.
Pelo menos iguais, dizemos Nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a
sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real, de que participam
necessariamente os seus direitos e os seus deveres. E se os indivíduos e as
famílias, entrando na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo,
em vez de protecção, uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a
sociedade seria mais para se evitar do que para se procurar.
Querer,
pois, que o poder civil invada arbitrariamente o santuário da família, é um
erro grave e funesto. Certamente, se existe algures uma família que se encontre
numa situação desesperada, e que faça esforços vãos para sair dela, é justo
que, em tais extremos, o poder público venha em seu auxílio, porque cada
família é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar doméstico
que seja teatro de graves violações dos direitos mútuos, que o poder público
intervenha para restituir a cada um os seus direitos. Não é isto usurpar as
atribuições dos cidadãos, mas fortalecer os seus direitos, protegê-los e
defendê-los como convém. Todavia, a acção daqueles que presidem ao governo
público não deve ir mais além; a natureza proíbe-lhes ultrapassar esses
limites. A autoridade paterna não pode ser abolida, nem absorvida pelo Estado,
porque ela tem uma origem comum com a vida humana. «Os filhos são alguma coisa
de seu pai»; são de certa forma uma extensão da sua pessoa, e, para falar com
justiça, não é imediatamente por si que eles se agregam e se incorporam na
sociedade civil, mas por intermédio da sociedade doméstica em que nasceram.
Porque os «filhos são naturalmente alguma coisa de seu pai... devem ficar sob a
tutela dos pais até que tenham adquirido o livre arbítrio» (4). Assim,
substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas
vão contra a justiça natural e quebram os laços da família.
O
comunismo, princípio de empobrecimento
7. Mas,
além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas
consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e
insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas,
a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade
privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas
estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a
igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que Nós acabamos de
dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade colectiva deve
absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer
socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as
funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem
assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem
sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular.
Expliquemos agora onde convém procurar o remédio tão desejado.
A Igreja
e a questão social
8. É com
toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso
direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não
apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma
solução eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão confiadas a
salvaguarda da religião e a dispensação do que é do domínio da Igreja,
calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever. Certamente uma
questão desta gravidade demanda ainda de outros a sua parte de actividade e de
esforços; isto é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios
operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que Nós afirmamos sem hesitação, é a
inanidade da sua acção fora da Igreja. E a Igreja, efectivamente, que haure no
Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar,
expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que se não
contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas também se esforça em
regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que,
por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a
sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as
classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão
operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a
autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com
prudência, a sua parte do consenso.
Não luta,
mas concórdia das classes
9. O
primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência
a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao
mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas
contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que
estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas;
diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força;
diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das
condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos,
tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um
organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os
homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença das suas
respectivas condições.
Pelo que
diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de
inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade
teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe
acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação:
«A terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que
alimentar-te todos os dias da vida» (5). O mesmo se dá com todas as outras
calamidades que caíram sobre o homem: neste mundo estas calamidades não terão
fim nem tréguas, porque os funestos frutos do pecado são amargos, acres,
acerbos, e acompanham necessariamente o homem até ao derradeiro suspiro. Sim, a
dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar
tudo, tudo tentar para os banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos
que empreguem e por maiores forças que para isso desenvolvam. Se há quem,
atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos
e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo
e lhe prepara laços, onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis
que as do presente. O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são,
e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar os nossos males.
O erro
capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma
da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem
mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário
colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no
corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente
uns aos outros, de modo que formam um todo exactamente proporcionado e que se
poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão
destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se
mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra:
não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.
A
concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo
só podem resultar confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e
cortar o mal na sua raiz, as Instituições possuem uma virtude admirável e
múltipla.
E,
primeiramente, toda a economia das verdades religiosas, de que a Igreja é
guarda e intérprete, é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os
pobres, lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, primeiro que todos
os outros, os que derivam da justiça.
Obrigações
dos operários e dos patrões
10. Entre
estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer
integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e
conforme à equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua
pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca
revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus
discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes
promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas.
Quanto
aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar
nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo,
pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto
de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua
vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos
de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O
cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses
espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que
a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à
sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de
família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos
seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a
sua idade ou o seu sexo.
Mas,
entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar,
o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida
do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral,
recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular
com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e
humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a
qualquer no preço dos seus labores: «Eis que o salário, que tendes extorquido
por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos
ouvidos do Deus dos Exércitos»(6). Enfim, os ricos devem precaver-se
religiosamente de todo o acto violento, toda a fraude, toda a manobra usurária
que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda,
porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem
de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado. A obediência a estas
leis — pergunta-mos Nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o
antagonismo e suprimir-lhe as causas?
11.
Todavia a Igreja, instruída e dirigida por Jesus Cristo, eleva o seu olhar
ainda para mais alto; propõe um conjunto de preceitos mais completo, porque
ambiciona estreitar a união das duas classes até as unir uma à outra por laços
de verdadeira amizade. Ninguém pode ter uma verdadeira compreensão da vida
mortal, nem estimá-la no seu devido valor, se não se eleva à consideração da
outra vida que é imortal. Suprimi esta, e imediatamente toda a forma e toda a
verdadeira noção de honestidade desaparecerá; mais ainda: todo o universo se
tornará um impenetrável mistério.
Quando
tivermos abandonado esta vida, só então começaremos a viver: esta verdade, que
a mesma natureza nos ensina, é um dogma cristão sobre o qual assenta, como
sobre o seu primeiro fundamento, toda a economia da religião.
Não, Deus
não nos fez para estas coisas frágeis e caducas, mas para as coisas celestes e
eternas; não nos deu esta terra como nossa morada fixa, mas como lugar de
exílio. Que abundeis em riquezas ou outros bens, chamados bens de fortuna, ou
que estejais privados deles, isto nada importa à eterna beatitude: o uso que
fizerdes deles é o que interessa.
Pela Sua
superabundante redenção, Jesus Cristo não suprimiu as aflições que formam quase
toda a trama da vida mortal; fez delas estímulos de virtude e fontes de mérito,
de sorte que não há homem que possa pretender as recompensas eternas, se não
caminhar sobre os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: «Se sofremos com Ele,
com Ele reinaremos»(7). Por outra parte, escolhendo Ele mesmo a cruz e os
tormentos, minorou-lhes singularmente o peso e a amargura, e, a fim de nos
tornar ainda mais suportável o sofrimento, ao exemplo acrescentou a Sua graça e
a promessa duma recompensa sem fim: «Porque o momento tão curto e tão ligeiro
das aflições, que sofremos nesta vida, produz em nós o peso eterno duma glória
soberana incomparável» (8).
Assim, os
afortunados deste mundo são advertidos de que as riquezas não os isentam da
dor; que elas não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um
obstáculo(9); que eles devem tremer diante das ameaças severas que Jesus Cristo
profere contra os ricos(10); que, enfim, virá um dia em que deverão prestar a
Deus, seu juiz, rigorosíssimas contas do uso que hajam feito da sua fortuna.
Posse e
uso das riquezas
12. Sobre
o uso das riquezas, já a pura filosofia pôde delinear alguns ensinamentos de
suma excelência e extrema importância; mas só a Igreja no-los pode dar na sua
perfeição, e fazê-los descer do conhecimento à prática. O fundamento dessa
doutrina está na distinção entre a justa posse das riquezas e o seu legítimo
uso.
A
propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de direito natural para o
homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem
vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária(11). Agora, se se
pergunta em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja
responderá sem hesitação: «A esse respeito o homem não deve ter as coisas
exteriores por particulares, mas sim por comuns, de tal sorte que facilmente dê
parte delas aos outros nas suas necessidades. É por isso que o Apóstolo disse:
«Ordena aos ricos do século... dar facilmente, comunicar as suas riquezas»
(12).
Ninguém
certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário ou do
de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências ou decência
Impõem à sua pessoa: «Ninguém com efeito deve viver contrariamente às
conveniências»(13). Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à
necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres: «Do
supérfluo dai esmolas» (14). É um dever, não de estrita justiça, excepto nos
casos de extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por
consequência, cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça
humana. Mas, acima dos juízos do homem e das leis, há a lei e o juízo de Jesus
Cristo, nosso Deus, que nos persuade de todas as maneiras a dar habitualmente
esmola: «É mais feliz», diz Ele, «aquele que dá do que aquele que recebe» (15),
e o Senhor terá como dada ou recusada a Si mesmo a esmola que se haja dado ou
recusado aos pobres: «Todas as vezes que tenhais dado esmola, a um de Meus
irmãos, é a Mim que a haveis dado» (16). Eis, aliás, em algumas palavras, o
resumo desta doutrina: Quem quer que tenha recebido da divina Bondade maior
abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da alma, recebeu-os
com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo,
como ministro da Providência, ao alívio dos outros. «E por isso, que quem tiver
o talento da palavra tome cuidado em se não calar; quem possuir superabundância
de bens, não deixe a misericórdia entumecer-se no fundo do seu coração; quem
tiver a arte de governar, aplique-se com cuidado a partilhar com seu irmão o
seu exercício e os seus frutos» (17).
Dignidade
do trabalho
13.
Quanto aos deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do
próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio e que não se deve corar por ter de
ganhar o pão com o suor do seu rosto. É o que Jesus Cristo Nosso Senhor
confirmou com o Seu exemplo. Ele, que «de muito rico que era, Se fez indigente»
(18) para a salvação dos homens; que, Filho de Deus e Deus Ele mesmo, quis
passar aos olhos do mundo por filho dum artesão; que chegou até a consumir uma
grande parte da Sua vida em trabalho mercenário: «Não é Ele o carpinteiro, o
Filho de Maria?» (19). Quem tiver na sua frente o modelo divino, compreenderá
mais facilmente o que Nós vamos dizer: que a verdadeira dignidade do homem e a
sua excelência reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude
é o património comum dos mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e dos
grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for a
pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais
ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece
inclinar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados (20): convida
com amor a virem a Ele, a fim de consolar a todos os que sofrem e que
choram(21); abraça com caridade mais terna os pequenos e os oprimidos. Estas
doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma altiva do rico
e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e
inspirar-lhes resignação. Com elas se acharia diminuído um abismo causado pelo
orgulho, e se obteria sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e
as vontades se unissem na mesma amizade.
Comunhão
de bens de natureza e de graça
14. Mas é
ainda demasiado pouco a simples amizade: se se obedecer aos preceitos do
cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. Duma parte e doutra
se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente nascidos de
Deus, seu Pai comum; que Deus é o seu único e comum fim, que só Ele é capaz de
comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta; que todos
eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos por Ele na
sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de fraternidade
os une,-quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor, que é «o primogénito de
muitos irmãos»(22). Eles saberão, enfim, que todos os bens da natureza, todos
os tesouros da graça, pertencem em comum e indistintamente a todo o género
humano e que só os indignos é que são deserdados dos bens celestes: «Se vós
sois filhos, sois também herdeiros, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Jesus
Cristo» (23) .
Tal é a
economia dos direitos e dos deveres que ensina a filosofia cristã. Não se veria
em breve prazo estabelecer-se a pacificação, se estes ensinamentos pudessem vir
a prevalecer nas sociedades?
Exemplo e
magistério da Igreja
15.
Entretanto, a Igreja não se contenta com indicar o caminho que leva à salvação;
ela conduz a esta e com a sua própria mão aplica ao mal o conveniente remédio.
Ela dedica-se toda a instruir e a educar os homens segundo os seus princípios e
a sua doutrina, cujas águas vivificantes ela tem o cuidado de espalhar, tão
longe e tão largamente quanto lhe é possível, pelo ministério dos Bispos e do
Clero. Depois, esforça-se por penetrar nas almas e por obter das vontades que
se deixem conduzir e governar pela regra dos preceitos divinos. Este ponto é
capital e de grandíssima importância, porque encerra como que o resumo de todos
os interesses .que estão em litígio, e aqui a acção da Igreja é soberana. Os
instrumentos de que ela dispõe para tocar as almas, recebeu-os, para este fim,
de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia duma virtude divina. São os únicos
aptos para penetrar até às profundezas do coração humano, que são capazes de
levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar as suas paixões, a
amar a Deus e ao seu próximo com uma caridade sem limites, a ultrapassar
corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na estrada da
virtude.
Neste
ponto, basta passar ligeiramente em revista pelo pensamento os exemplos da
antiguidade. As coisas e factos que vamos lembrar estão isentos de
controvérsia. Assim, não é duvidoso que a sociedade civil foi essencialmente
renovada pelas instituições cristãs, que esta renovação teve por efeito elevar
o nível do género humano, ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida, e
guindá-lo a um alto grau de perfeição, como se não viu semelhante nem antes nem
depois, e não se verá jamais em todo o decurso dos séculos. Que, enfim, destes
benefícios foi Jesus Cristo o princípio e deve ser o seu fim: porque, assim
como tudo partiu d'Ele, assim também tudo Lhe deve ser referido. Quando, pois,
o Evangelho raiou no mundo, quando os povos tiveram conhecimento do grande
mistério da encarnação do Verbo e da redenção dos homens, a vida de Jesus
Cristo, Deus e homem, invadiu as sociedades e impregnou-as inteiramente com a
Sua fé, com as Suas máximas e com as Suas leis. E por isso que, se a sociedade
humana deve ser curada, não o será senão pelo regresso à vida e às instituições
do cristianismo.
A quem
quer regenerar uma sociedade qualquer em decadência, se prescreve com razão que
a reconduza às suas origens (24). Porque a perfeição de toda a sociedade
consiste em prosseguir e atingir o fim para o qual foi fundada, de modo que
todos os movimentos e todos os actos da vida social nasçam do mesmo princípio
de onde nasceu a sociedade. Por isso, afastar-se do fim é caminhar para a
morte, e voltar a ele é readquirir a vida. E o que Nós-dizemos de todo o corpo
social aplica-se igualmente a essa classe de cidadãos que vivem do seu trabalho
e que formam a grandíssima maioria.
Nem se
pense que a Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que
põe de parte o que se relaciona com a vida terrestre e mortal. Pelo que em
particular diz respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços
para os arrancar à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor. E, certamente, não
é um fraco apoio que ela dá a esta obra só pelo facto de trabalhar, por
palavras e actos, para reconduzir os homens à virtude.
Os
costumes cristãos, desde que entram em acção, exercem naturalmente sobre a
prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência; porque eles atraem o
favor de Deus, princípio e fonte de todo o bem; reduzem o desejo excessivo das
riquezas e a sede dos prazeres, esses dois flagelos que frequentes vezes lançam
a amargura e o desgosto no próprio seio da opulência(25); contentam-se enfim
com uma vida e alimentação frugal, e suprem pela economia a modicidade do
rendimento, longe desses vícios que consomem não só as pequenas, mas as grandes
fortunas, e dissipam os maiores patrimónios.
A Igreja
e a caridade durante os séculos
16. A
Igreja, além disso, provê também directamente à felicidade das classes
deserdadas, pela fundação e sustentação de instituições que ela julga próprias
para aliviar a sua miséria; e, mesmo neste género de benefícios, ela tem
sobressaído de tal modo, que os seus próprios inimigos lhe fizeram o seu
elogio. Assim, entre os primeiros cristãos, era tal a virtude da caridade
mútua, que não raro se viam os mais ricos despojarem--se do seu património em
favor dos pobres. Por isso, a indigência não era conhecida entre eles(26); os
Apóstolos tinham confiado aos Diáconos, cuja ordem fora especialmente
instituída para esse fim, a distribuição quotidiana das esmolas, e o próprio S.
Paulo, apesar de absorvido por uma solicitude que abraçava todas as Igrejas,
não hesitava em empreender penosas viagens para ir em pessoa levar socorros aos
cristãos indigentes. Socorros do mesmo género eram espontaneamente oferecidos
pelos fiéis em cada uma das suas assembleias: o que Tertuliano chama os
«depósitos da piedade», porque eram empregados «em sustentar e sepultar as
pessoas indigentes, os órfãos pobres de ambos os sexos, os domésticos velhos,
as vítimas de naufrágio» (27).
Eis como
pouco a pouco se formou esse património, que a Igreja sempre guardou com
religioso cuidado como um bem próprio da família dos pobres. Ela chegou até a
assegurar socorros aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de estender a mão;
porque esta mãe comum dos ricos e dos pobres, aproveitando maravilhosamente
rasgos de caridade que ela havia provocado por toda a parte, fundou sociedades
religiosas e uma multidão doutras instituições úteis que, pouco tempo depois,
não deviam deixar sem alívio nenhum género de miséria.
Há hoje,
sem dúvida, um certo número de homens que, fiéis ecos dos pagãos de outrora,
chegam a fazer, mesmo dessa caridade tão maravilhosa, uma arma para atacar a
Igreja; e viu-se uma beneficência estabelecida pelas leis civis substituir-se à
caridade cristã; mas esta caridade, que se dedica toda e sem pensamento
reservado à utilidade do próximo, não pode ser suprida por nenhuma invenção
humana. Só a Igreja possui essa virtude, porque não se pode haurir senão no
Sagrado Coração de Jesus Cristo, e é errar longe de Jesus Cristo estar afastado
da Sua Igreja.
O
concurso do Estado
17.
Todavia não há dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é de mais
recorrer aos meios humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz respeito,
devem visar ao mesmo fim e trabalhar de harmonia cada um na sua esfera. Nisto
há como que uma imagem da Providência governando o mundo: porque nós vemos de
ordinário que os factos e os acontecimentos que dependem de causas diversas são
a resultante da sua acção comum.
Ora, que
parte de acção e de remédio temos nós o direito de esperar do Estado? Diremos,
primeiro, que por Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre
tal povo em particular, mas todo o governo que corresponde aos preceitos da
razão natural e dos ensinamentos divinos, ensinamentos que Nós todos expusemos,
especialmente na Nossa Carta Encíclica sobre a constituição cristã das
sociedades (28).
Origem da
prosperidade nacional
18. O que
se pede aos governantes é um curso de ordem geral, que consiste em toda a
economia das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo
que da mesma organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem
esforço a prosperidade, tanto pública como particular. Tal é, com efeito, o
ofício da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam. Ora
o que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas
sobre bases de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma
imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o
progresso da indústria e, do comércio, uma agricultura florescente e outros
elementos, se os há, do mesmo género: todas as coisas que se não podem
aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos.
Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil às outras
classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e
isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência;
porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum.
E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta
acção de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros
expedientes para remediar a condição dos trabalhadores.
Mas há
outra consideração que atinge mais profundamente ainda o nosso assunto. A razão
formal de toda a sociedade é só uma e é comum a todos os seus membros, grandes
e pequenos. Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito
natural, cidadãos; isto é, pertencem ao número das partes vivas de que se
compõe, por intermédio das famílias, o corpo inteiro da Nação, para não dizer
que em todas as cidades são o grande número.
Como,
pois, seria desrazoável prover a uma classe de cidadãos e negligenciar outra,
torna-se evidente que a autoridade pública deve também tomar as medidas
necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se
ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o
que lhe é devido. A esse respeito S. Tomás diz muito sabiamente: «Assim como a
parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao to-do
pertence de alguma sorte a cada parte» (29). E por isso que, entre os graves e
numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao público, o
principal dever, que domina lodos os outros, consiste em cuidar igualmente de
todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça,
chamada distributiva.
Mas,
ainda que todos os cidadãos, sem excepção, devam contribuir para a massa dos
bens comuns, os quais, aliás, por um giro natural, se repartem de novo entre os
indivíduos, todavia as constituições respectivas não podem ser nem as mesmas,
nem de igual medida. Quaisquer que sejam as vicissitudes pelas quais as formas
do governo são chamadas a passar, haverá sempre entre os cidadãos essas
desigualdades de condições, sem as quais uma sociedade não pode existir nem
conceber-se. Sem dúvida são necessários homens que governem, que façam leis,
que administrem justiça, que, enfim, por seus conselhos ou por via da
autoridade, administrem os negócios da paz e as coisas da guerra. Que estes
homens devem ter a proeminência em toda a sociedade e ocupar nela o primeiro lugar,
ninguém o pode duvidar, pois eles trabalham directamente para o bem comum e
duma maneira tão excelente.
Os homens
que, pelo contrário, se aplicam às coisas da indústria, não podem concorrer
para este bem comum nem na mesma medida, nem pelas mesmas vias; mas,
entretanto, também eles, ainda que de maneira menos directa, servem muitíssimo
os interesses da sociedade. Sem dúvida alguma, o bem comum, cuja aquisição deve
ter por efeito aperfeiçoar os homens, é principalmente um bem moral.
Mas numa
sociedade regularmente constituída deve encontrar-se ainda uma certa abundância
de bens exteriores «cujo uso é reclamado para exercício da virtude»(30). Ora, a
fonte fecunda e necessária de todos estes bens é principalmente o trabalho do
operário, o trabalho dos campos ou da oficina. Mais ainda: nesta ordem de
coisas, o trabalho tem uma tal fecundidade e tal eficácia, que se pode afirmar,
sem receio de engano, que ele é a fonte única de onde procede a riqueza das
nações. A equidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores,
e proceda de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhes
seja dada uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à
custa de menos trabalho e privações (31). De onde resulta que o Estado deve
favorecer tudo o que, de perto ou de longe, pareça de natureza a melhorar-lhes
a sorte. Esta solicitude, longe de prejudicar alguém, tornar-se-á, ao
contrário, em proveito de todos, porque importa soberanamente à nação que
homens, que são para ela o princípio de bens tão indispensáveis, não se
encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria.
O Governo
é para os governados e não vice-versa
19.
Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo
Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de
proceder com liberdade, contando que não atentem contra o bem geral, e não
prejudiquem ninguém. Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade
e as suas partes: a comunidade, porque a natureza confiou a sua conservação ao
poder soberano, de modo que a salvação pública não é somente aqui a lei
suprema, mas é a própria a causa e a razão de ser do principado; as partes,
porque, de direito natural, o governo não deve visar só os interesses daqueles
que têm o poder nas mãos, mas ainda o bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o
ensino da filosofia, não menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade
vem de Deus e é uma participação da Sua autoridade suprema; desde então,
aqueles que são os depositários dela devem exercê-la à imitação de Deus, cuja
paternal solicitude se não estende menos a cada uma das criaturas em particular
do que a todo o seu conjunto. Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse
duma classe em particular, se encontram ou lesa-dós ou simplesmente ameaçados,
e se não for possível remediar ou obviar a isso doutro modo, é de toda a
necessidade recorrer à autoridade pública.
Obrigações
e limites da intervenção do Estado
20. Ora,
importa à salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda a
parte; que toda a economia da vida doméstica seja regulada segundo os
mandamentos de Deus e os princípios da lei natural; que a religião seja honrada
e observada; que se vejam florescer os costumes públicos e particulares; que a justiça
seja religiosamente graduada, e que nunca uma classe possa oprimir impunemente
a outra; que cresçam robustas gerações, capazes de ser o sustentáculo, e, se
necessário for, o baluarte da Pátria. É por isso que os operários, abandonando
o trabalho ou suspendendo-o por greves, ameaçam a tranquilidade pública; que os
laços naturais da família afrouxam entre os trabalhadores; que se calca aos pés
a religião dos operários, não lhes facilitando o cumprimento dos seus deveres
para com Deus; que a promiscuidade dos sexos e outras excitações ao vício
constituem nas oficinas um perigo para a moralidade; que os patrões esmagam os
trabalhadores sob o peso de exigências iníquas, ou desonram neles a pessoa
humana por condições indignas e degradantes; que atentam contra a sua saúde por
um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em todos estes
casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força e autoridade
das leis. Esses limites serão determinados pelo mesmo fim que reclama o socorro
das leis, isto é, que eles não devem avançar nem empreender nada além do que
for necessário para reprimir os abusos e afastar os perigos.
Os
direitos, em que eles se encontram, devem ser religiosamente respeitados e o
Estado deve assegurá-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando a sua
violação. Todavia, na protecção dos direitos particulares, deve preocupar-se,
de maneira especial, dos fracos e dos indigentes. A classe rica faz das suas
riquezas uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A
classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das
injustiças, conta principalmente com a protecção do Estado. Que o Estado se
faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores,
que em geral pertencem à classe pobre(32).
O Estado
deve proteger a propriedade particular
21. Mas,
é conveniente descer expressamente a algumas particularidades. É um dever
principalíssimo dos governos o assegurar a propriedade particular por meio de
leis sábias. Hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças
desenfreadas, é preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a
justiça lhe concede o direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem
a justiça nem o bem público consentem que danifiquem alguém na sua fazenda nem
que se invadam os direitos alheios sob pretexto de não que igualdade. Por certo
que a maior parte dos operários quereriam melhorar de condição por meios
honestos sem prejudicar a ninguém; todavia, não poucos há que, embebidos de
máximas falsas e desejosos de novidade, procuram a todo o custo excitar e
impelir os outros a violências. Intervenha portanto a autoridade do Estado, e,
reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os
legítimos patrões de serem despojados do que é seu.
Impedir
as greves
22. O
trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas
vezes, aos operários ocasião de greves. E preciso que o Estado ponha cobro a
esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos
patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns;
e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem
muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta
parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e
impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão--de
nascer os conflitos entre os operários e os patrões.
Proteger
os bens da alma
23.
Muitas outras coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário, e em
primeiro lugar os bens da alma. A vida temporal, posto que boa e desejável, não
é o fim para que fomos criados; mas é a via e o meio para aperfeiçoar, com o
conhecimento da verdade e com a prática do bem, a vida do espírito. O espírito
é o que tem em si impressa a semelhança divina, e no qual reside aquele
principado em virtude do qual foi dado ao homem o direito de dominar as
criaturas inferiores e de fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o mar:
«Enchei a terra e tornai-vo-la sujeita, dominai sobre os peixes do mar e sobre
as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra»(33). Nisto
todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres,
patrões e criados, monarcas e súbditos, «porque é o mesmo o Senhor de
todos»(34). A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual
Deus mesmo dispõe, com grande reverência, nem pôr-lhe impedimentos, para que
ele siga o caminho daquele aperfeiçoamento que é ordenado para o conseguimento
da vida interna; pois, nem mesmo por eleição livre, o homem pode renunciar a
ser tratado segundo a sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque
não se trata de direitos cujo exercício seja livre, mas de deveres para com
Deus que são absolutamente invioláveis.
24. Daqui
vem, como consequência, a necessidade do repouso festivo. Isto, porém, não quer
dizer que se deve estar em ócio por mais largo espaço de tempo, e muito menos
significa uma inacção total, como muitos desejam, e que é a fonte de vícios e
ocasião de dissipação; mas um repouso consagrado à religião. Unido à religião,
o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o
chamar ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina.
Eis aqui a principal natureza e fim do repouso festivo que Deus, com lei
especial, prescreveu ao homem no Antigo Testamento, dizendo-lhe: «Recorda-te de
santificar o sábado» (35); e que ensinou com o Seu exemplo, quando no sétimo
dia, de-pois de criado o homem, repousou: «Repousou no sétimo dia .de todas as
Suas obras que tinha feito» (36).
Protecção
do trabalho dos operários, das mulheres e das crianças
25. No
que diz respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é um dever
da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade de ávidos
especuladores, que abusam, sem nenhuma descrição, tanto das pessoas como das
coisas. Não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer
pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo.
A
actividade do homem, restrita como a sua natureza, tem limites que se não podem
ultrapassar. O exercício e o uso aperfeiçoam-na, mas é preciso que de quando em
quando se suspenda para dar lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho
prolongar-se por mais tempo do que as forças permitem. Assim, o número de horas
de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade
de repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do
tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários. O trabalho, por exemplo,
de extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra,
sendo mais pesa-do e nocivo à saúde, deve ser compensado com uma duração mais
curta. Deve-se também atender às estações, porque não poucas vezes um trabalho
que facilmente se suportaria numa estação, noutra é de facto insuportável ou
somente se vence com dificuldade.
26.
Enfim, o que um homem válido e na força da idade pode fazer, não será
equitativo exigi-lo duma mulher ou duma criança. Especialmente a infância — e
isto deve ser estritamente observado — não deve entrar na oficina senão quando
a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas,
intelectuais e morais: de contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á
murchar com um trabalho demasiado precoce, e dar-se-á cabo da sua educação.
Trabalhos há também quê se não adaptam tanto à mulher, a qual a natureza
destina de preferência aos arranjos domésticos, que, por outro lado,
salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e correspondem melhor, pela
sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e a prosperidade da
família. Em geral, a duração do descanso deve medir-se pelo dispêndio das
forças que ele deve restituir. O direito ao descanso de cada dia assim como à
cessação do trabalho no dia do Senhor, deve ser a condição expressa ou tácita
de todo o contrato feito entre patrões e operários. Onde esta condição não
entrar, o contrato não será justo, pois ninguém pode exigir ou prometer a
violação dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo.
O
quantitativo do salário dos operários
27.
Passemos agora a outro ponto da questão e de não menor importância, que, para
evitar os extremos, demanda uma definição precisa. Referimo-nos à fixação do
salário. Uma vez livremente aceite o salário por uma e outra parte, assim se
raciocina, o patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o pague e não é
obrigado a mais nada. Em tal hipótese, a justiça só seria lesada, se ele se
recusasse a saldar a dívida ou o operário a concluir todo o seu trabalho, e a
satisfazer as suas condições; e neste último caso, com exclusão de qualquer
outro, é que o poder público teria que intervir para fazer valer o direito de
qual quer deles.
Semelhante
raciocínio não encontrará um juiz equitativo que consinta em o abraçar sem
reserva, pois não abrange todos os lados da questão e omite um deveras
importante. Trabalhar é exercer a actividade com o fim de procurar o que
requerem as diversas necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da
própria vida. «Comerás o teu pão com o suor do teu rosto» (37). Eis a razão por
que o trabalho recebeu da natureza como que um duplo cunho: é pessoal, porque a
força activa é inerente à pessoa, e porque a propriedade daquele que a exerce e
a recebeu para sua utilidade; e é necessário, porque o homem
precisa da sua existência, e porque a deve conservar para obedecer às ordens
incontestáveis da natureza. Ora, se não se encarar o trabalho senão pelo seu
lado pessoal , não há dúvida de que o operário pode a seu
bel-prazer restringir a taxa do salário. A mesma vontade que dá o trabalho pode
contentar-se com uma pequena remuneração ou mesmo não exigir nenhuma. Mas já é
outra coisa, se ao carácter de personalidade se juntar o de necessidade, que o
pensamento pode abstrair, mas que na realidade não se pode separar.
Efectivamente, conservar a existência é um dever imposto a todos os homens e ao
qual se não podem subtrair sem crime. Deste dever nasce necessariamente o
direito de procurar as coisas necessárias à subsistência, e que o pobre as não
procure senão mediante o salário do seu trabalho.
Façam,
pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem,
inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está
uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário
não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e
honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal
maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido
recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do
trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.
Mas,
sendo de temer que nestes casos e em outros análogos, como no que diz respeito
às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, a intervenção dos poderes
públicos seja importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias,
dos témpos e dos lugares, será preferível que a solução seja confiada às
corporações ou sindicatos de que falaremos, mais adiante, ou que se recorra a
outros meios de defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e
apoio do Estado, se a questão o reclamar(38).
A
economia como meio de conciliação das classes
28. O operário
que receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas
necessidades e às da sua família, se for prudente, seguirá o conselho que
parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de
forma que, com. prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe
permita chegar um dia a adquirir um modesto património. Já vimos que a presente
questão não podia receber solução verdadeiramente eficaz, se se não começasse
por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da propriedade
particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o
reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas populares.
Uma vez
obtido, este resultado seria a fonte dos mais preciosos benefícios, e em
primeiro lugar duma repartição dos bens certamente mais equitativa. A violência
das revoluções políticas dividiu o corpo social em duas classes e cavou entre
elas um imenso abismo. Dum lado, a omnipotência na opulência: uma facção que,
senhora absoluta da indústria e do comércio, desvia o curso das riquezas e faz
correr para o seu lado todos os mananciais; facção que aliás tem na sua mão
mais dum motor da administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência:
uma multidão com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem. Ah,
estimule-se a industriosa actividade do povo com a perspectiva da sua
participação na prosperidade do solo, e ver-se-á nivelar pouco a pouco o abismo
que separa a opulência da miséria, o operar-se a aproximação das duas classes.
Demais, a terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é assim feito:
o pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu ardor e a sua
aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo cultivou, que
lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas ainda uma
certa fartura. Não há quem não descubra sem esforço os efeitos desta duplicação
da actividade sobre a fecundidade da terra e sobre a riqueza das nações. A
terceira utilidade será a suspensão do movimento de emigração; ninguém, com
efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra
natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável.
Mas uma
condição indispensável para que todas estas vantagens se convertam em
realidades, é que a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de
encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o
direito de propriedade individual; a autoridade pública não o pode pois abolir;
o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum. É por isso
que ela age contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de
impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares.
Benefício
das corporações
29. Em
último lugar, diremos que os próprios patrões e operários podem singularmente
auxiliar a solução, por meio de todas as obras capazes de aliviar eficazmente a
indigência e de operar uma aproximação entre as duas classes. Pertencem a este
número as associações de socorros mútuos; as diversas instituições, devidas à
iniciativa particular, que têm por fim socorrer os operários, bem como as suas
viúvas e órfãos, em caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; os
patronatos que exercem uma protecção benéfica para com as crianças dos dois
sexos, os adolescentes e os homens feitos. Mas o primeiro lugar pertence às
corporações operárias, que abrangem quase todas as outras. Os nossos
antepassados experimentaram por muito tempo a benéfica influência destas
associações. Ao mesmo tempo que os artistas encontravam nelas inapreciáveis
vantagens, as artes receberam delas novo brilho e nova vida, como o proclama
grande quantidade de monumentos. Sendo hoje mais cultas as gerações, mais
polidos os costumes, mais numerosas as exigências da vida quotidiana, é fora de
dúvida que se não podia deixar de adaptar as associações a estas novas
condições. Assim, com prazer vemos Nós irem-se formando por toda a parte
sociedades deste género, quer compostas só de operários, quer mistas, reunindo
ao mesmo tempo operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua acção.
Conquanto nos tenhamos ocupado delas mais duma vez (39), queremos expor aqui a
sua oportunidade e o seu direito de existência e indicar como devem
organizar-se é qual deve ser o seu programa de acção.
As
associações particulares e o Estado
30. A
experiência que o homem adquire todos os dias da exiguidade das suas forças,
obriga-o e impele-o a agregar-se a uma cooperação estranha.
É nas
Sagradas Letras que se lê esta máxima: «Mais valem dois juntos que um só, pois
tiram vantagem da sua associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado do
homem só, pois; quando cair, não terá ninguém que o levante» (40). E estoutra:
«O irmão que é ajudado por seu irmão, é como uma cidade forte» (41). Desta propensão
natural, como dum único germe, nasce, primeiro, a sociedade civil; depois, no
próprio seio desta, outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas,
não deixam de ser sociedades verdadeiras.
Entre as
pequenas sociedades e a grande, há profundas diferenças, que resultam do seu
fim próximo. O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos,
pois este fim está no bem comum, isto é, num bem do qual todos e cada um têm o
direito de participar em medida proporcional. Por isso se chama público, porque
«reúne os homens para formarem uma nação»(42). Ao contrário, as sociedades que
se constituem no seu seio são frágeis, porque são particulares, e o são com
efeito, pois a sua razão de ser imediata é a utilidade particular e exclusiva
dos seus membros: «A sociedade particular é aquela que se forma com um fim
particular, como quando dois ou três indivíduos se associam para exercerem em
comum o comércio» (43). Ora, pelo facto de as sociedades particulares não terem
existência senão no seio da sociedade civil, da qual são como outras tantas
partes, não se segue, falando em geral e considerando apenas a sua natureza,
que o Estado possa negar-lhes a existência. O direito de existência foi-lhes
outorgado pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída para
proteger o direito natural, não para o aniquilar. Por esta razão, uma sociedade
civil que proibisse as sociedades públicas e particulares, atacar-se-ia a si
mesma, pois todas as sociedades públicas e particulares tiram a sua origem dum mesmo
princípio: a natural sociabilidade do homem. Certamente se dão conjunturas que
autorizam as leis a opor-se à fundação duma sociedade deste género.
Se uma
sociedade, em virtude mesmo dos seus estatutos orgânicos, trabalhasse para um
fim em oposição flagrante com a probidade, com a justiça, com a segurança do
Estado, os poderes públicos teriam o direito de lhe impedir a formação, ou o
direito de a dissolver, se já estivesse formada. Mas deviam em tudo isto
proceder com grande circunspecção para evitar usurpação dos direitos dos
cidadãos, e para não determinar, sob a cor da utilidade pública, alguma coisa
que a razão houvesse de desaprovar. Pois uma lei não merece obediência, senão
enquanto é conforme com a recta razão e a lei eterna de Deus(44).
31. Aqui,
apresentam-se ao Nosso espírito as confrarias, as congregações e as ordens
religiosas de todo o género, nascidas da autoridade da Igreja e da piedade dos
fiéis. Quais foram os seus frutos de salvação para o género humano até aos
nossos dias, a História o diz suficientemente. Considerando simplesmente o
ponto de vista da razão, estas sociedades aparecem como fundadas com um fim
honesto, e, consequentemente, sob os auspícios do direito natural: no que elas
têm de relativo à religião, não dependem senão da Igreja. Os poderes públicos
não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas,
atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las,
protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las. Justamente o contrário é o
que Nós temos sido condenados a ver, principalmente nestes últimos tempos. Em
não poucos países, o Estado tem deitado a mão a estas sociedades, e tem
acumulado a este respeito injustiça sobre injustiça: sujeição às leis civis,
privações do direito legítimo de personalidade, espoliação dos bens. Sobre
estes bens, a Igreja tinha todavia os seus direitos: cada um dos membros tinha
os seus; os doadores, que lhe haviam dado uma aplicação, e aqueles, enfim, que
delas auferiam socorros e alívio, tinham os seus. Assim não podemos deixar de
deplorar amargamente espoliações tão iníquas e tão funestas; tanto mais que se
ferem de proscrição as sociedades católicas na mesma ocasião em que se afirma a
legalidade das sociedades particulares, e que, aquilo que se recusa a homens
pacíficos e que não têm em vista senão a utilidade pública, se concede, e por
certo muito amplamente, a homens que meditam planos funestos para a religião e
também para o Estado.
As
associações operárias católicas
32.
Certamente em nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade de
associações de todo o género, principalmente de associações operárias. Não é,
porém, aqui, o lugar para investigar qual é a origem de muitas delas, qual o
seu fim e quais os meios com que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada
por numerosos indícios, que elas são ordinariamente governadas por chefes
ocultos, e que obedecem a uma palavra de ordem igualmente hostil ao nome
cristão e à segurança das nações: que, depois de terem açambarcado todas as
empresas, se há operários que recusam entrar em seu seio, elas fazem-lhe expiar
a sua recusa pela miséria. Neste estado de coisas, os operários cristãos não
têm remédio senão escolher entre estes dois partidos: ou darem os seus nomes a
sociedades de que a religião tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios
e unirem as suas forças para poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto
e tão intolerável. Haverá homens, verdadeiramente empenhados em arrancar o
supremo bem da humanidade a um perigo iminente, que possam ter a menor dúvida
de que é necessário optar por esse último partido?
É
altamente louvável o zelo de grande número dos nossos, que, conhecendo
perfeitamente as necessidades da hora presente, sondam cuidadosamente o
terreno, para aí descobrirem uma vereda honesta que conduz à reabilitação da
classe operária. Constituindo-se protectores das pessoas dedicadas ao trabalho,
esforçam-se por aumentar a sua prosperidade, tanto doméstica como individual, e
regular com equidade as relações recíprocas dos patrões e dos operários; por
manter e enraizar nuns e noutros a lembrança dos seus deveres e a observância
dos preceitos que, conduzindo o homem à moderação e coordenando todos os
excessos, mantêm nas nações, e entre elementos tão diversos de pessoas e de
coisas, a concórdia e a harmonia mais perfeita. Sob a inspiração dos mesmos
pensamentos, homens de grande mérito se reúnem em congresso, para comunicarem
mutuamente as ideias, unirem as suas forças, ordenarem programas de acção.
Outros ocupam-se em fundar corporações adequadas às diversas profissões e em
fazer entrar nelas os artistas: coadjuvam-nos com os seus conselhos e a sua
fortuna, e providenciam para que lhes não falte nunca um trabalho honrado e
proveitoso. Os Bispos, por seu lado, animam estes esforços e colocam-nos sob a
sua protecção: por sua autoridade e sob os seus auspícios, membros do clero
tanto secular como regular se dedicam, em grande número, aos interesses
espirituais das corporações. Finalmente, não faltam católicos que, possuidores
de abundantes riquezas, convertidos de algum modo em companheiros voluntários
dos trabalhadores, não olham a despesas para fundar e propagar sociedades, onde
estas possam encontrar, a par com certa abastança para o presente, a promessa
de honroso descanso para o futuro. Tanto zelo, tantos e tão engenhosos esforços
têm já feito entre os povos um bem muito considerável, e demasiado conhecido
para que seja necessário falar deles mais nitidamente. É a nossos olhos feliz
prognóstico para o futuro, e esperamos destas corporações os mais benéficos
frutos, conquanto que continuem a desenvolver-se e que a prudência presida à
sua organização. Proteja o Estado estas sociedades fundadas segundo o direito;
mas não se intrometa no seu governo interior e não toque nas molas íntimas que
lhes dão vida; pois o movimento vital procede essencialmente dum princípio
interno, e extingue-se facilmente sob a acção duma causa externa.
Disciplina
e finalidade destas associações
33.
Precisam evidentemente estas corporações, para que nelas haja unidade de acção
e acordo de vontades, duma sábia e prudente disciplina. Se, pois, como é certo,
os cidadãos são livres de se associarem, devem sê-lo igualmente de se dotarem
com os estatutos e regulamentos que lhes pareçam mais apropriados ao fim que
visam. Quais devem ser estes estatutos e regulamentos? Não cremos que se possam
dar regras certas e precisas para lhes determinar os pormenores; tudo depende
do génio de cada nação, das tentativas feitas e da experiência adquirida, do
género de trabalho, da expansão do comércio e doutras circunstâncias de coisas
e de tempos que se devem pesar com ponderação. Tudo quanto se pode dizer em
geral é que se deve tomar como regra universal e constante o organizar e
governar por tal forma as cooperações que proporcionem a cada um dos seus
membros os meios aptos para lhes fazerem atingir, pelo caminho mais cómodo e
mais curto, o fim que eles se propõem, e que consiste no maior aumento possível
dos bens do corpo, do espírito e da fortuna.
Mas é
evidente que se deve visar antes de tudo o objecto principal, que'é o
aperfeiçoamento moral e religioso. E principalmente este fim que deve regular
toda a economia destas sociedades; doutro modo, elas degenerariam bem depressa
e cairiam, por pouco que fosse, na linha das sociedades em que não tem lugar a
religião. Ora, de que serviria ao artista ter encontrado no seio da corporação
a abundância material, se a falta de alimentos espirituais pusesse em perigo a
salvação da sua alma? «Que vale ao homem possuir o universo inteiro, se vier a
perder a sua alma?»(45). Eis o carácter com que Nosso Senhor Jesus Cristo quis
que se distinguisse o cristão do pagão: «Os pagãos procuram todas estas
coisas... procurai primeiro o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão
dadas por acréscimo»(46). Assim, pois, tomando a Deus por ponto de partida,
dê-se amplo lugar à instrução religiosa a fim de que todos conheçam os seus
deveres para com Ele; o que é necessário crer, o que é necessário esperar, o
que é necessário fazer para obter a salvação eterna, tudo isto lhes deve ser
cuidadosamente recomendado; premunam-se com particular solicitude contra as
opiniões erróneas e contra todas as variedades do vício.
Guie-se o
operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se
principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a
amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer aos
seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos, que são fontes divinas onde a
alma se purifica das suas manchas e bebe a santidade.
Constituída
assim a religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil
determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e
a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas da
maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a
desigualdade não prejudique a concórdia.
Importa
grandemente que os encargos sejam distribuídos com inteligência, e claramente
definidos, a fim de que ninguém sofra injustiça. Que a massa comum seja administrada
com integridade, e que se de-termine previamente, pelo grau de indigência de
cada um dos membros, a quantidade de auxílio que deve ser concedido; que os
direitos e os deveres dos patrões sejam perfeitamente conciliados com os
direitos e deveres dos operários.
A fim de
atender às reclamações eventuais que se levantem numa ou noutra classe a
respeito dos direitos lesados, seria muito para desejar que os próprios
estatutos encarregassem homens prudentes e íntegros, tirados do seu seio, para
regularem o litígio na qualidade de árbitros.
Convite
para os operários católicos se associarem
34. É
necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho
ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente
aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas
ainda à doença, à velhice e aos reveses da fortuna.
Estas
leis, contanto que sejam aceites de boa vontade, bastam para assegurar aos
fracos a subsistência e um certo bem-estar; mas as corporações católicas são
chamadas ainda a prestar os seus bons serviços à prosperidade geral.
Pelo
passado podemos sem temeridade julgar o futuro. Uma época cede o lugar a outra;
mas o curso das coisas apresenta maravilhosas semelhanças, preparadas por essa
Providência que tudo dirige e faz convergir para o fim que Deus se propôs ao
criar a humanidade. Sabemos que nas primeiras idades da Igreja lhe imputavam
como crime a indigência dos seus membros, condenados a viver de esmolas ou do
trabalho: Mas, despidos como estavam de riquezas e de poder, souberam conciliar
o favor dos ricos e a protecção dos poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos,
modelos de justiça e principalmente de caridade. Com o espectáculo duma vida
tão perfeita e de costumes tão puros, todos os preconceitos se dissiparam, o
sarcasmo caiu e as ficções duma superstição inveterada desvaneceram-se pouco a
pouco ante a verdade cristã.
A sorte
da classe operária, tal é a questão de que hoje se trata, será resolvida pela
razão ou sem ela e não pode ser indiferente às nações quer o seja dum modo ou
doutro. Os operários cristãos resolvê-la-ão facilmente pela razão, se, unidos
em sociedades e obedecendo a uma direcção prudente, entrarem no caminho em que
os seus antepassados encontraram o seu bem e o dos povos.
Qualquer
que seja nos homens a força dos preconceitos e das paixões, se uma vontade
pervertida não afogou ainda inteiramente o sentido do que é justo e honesto,
será indispensável que, cedo ou tarde, a benevolência pública se volte para
esses operários, que se tenham visto activos e modestos, pondo a equidade acima
da ganância, e preferindo a tudo a religião do dever. Daqui, resultará esta
outra vantagem: que a esperança de salvação e grandes facilidades para a
atingir, serão oferecidas a esses operários que vivem no desprezo da fé cristã,
ou nos hábitos que ela reprova. Compreendem, geralmente, esses operários que
têm sido joguete de esperanças enganosas e de aparências mentirosas. Pois
sentem, pelo tratamento desumano que recebem dos seus patrões, que quase não
são avaliados senão pelo peso do ouro produzido pelo seu trabalho; quanto às
sociedades que os aliciaram, eles bem vêem que, em lugar da caridade e do amor,
não encontram nelas senão discórdias intestinas, companheiras inseparáveis da
pobreza insolente e incrédula. A alma embotada, o corpo extenuado, quanto não
desejariam sacudir um jugo tão humilhante! Mas, ou por causa do respeito humano
ou pelo receio da indigência, não ousam fazê-lo. Ah, para todos esses operários
podem as sociedades católicas ser de maravilhosa utilidade, se convidarem os
hesitantes a vir procurar no seu seio um remédio para todos os males, e
acolherem pressurosas os arrependidos e lhes assegurarem defesa e protecção.
Solução
definitiva: a caridade
35. Vede,
Veneráveis Irmãos, por quem e por que meios esta questão tão difícil demanda
ser tratada e resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto sem
demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se tome incurável o mal, já
de si tão grave.
Façam os
governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições;
lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja
sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a
religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz,
lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes
cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana
serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua
acção jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais
livremente se possa desenvolver.
Nós
desejamos que compreendam isto sobretudo aqueles cuja missão é velar pelo bem
público. Em-preguem neste ponto os Ministros do Santuário toda a energia da sua
alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso
exemplo, Veneráveis Irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da
sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance
para salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos
grandes e nos pequenos a caridade, senhora e rainha de todas as virtudes.
Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o fruto duma grande
efusão de caridade, queremos dizer, daquela caridade que compendia em si todo o
Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais
seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. Desta virtude, descreveu S.
Paulo as feições características com as seguintes palavras: «A caridade é
paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; a tudo se
resigna»(47).
Como
sinal dos favores celestes e penhor da Nossa benevolência, a cada um de vós,
Veneráveis Irmãos, ao vosso Clero e ao vosso Povo, com grande afecto no Senhor,
concedemos a Bênção Apostólica.
Dada em
Roma, junto de S. Pedro, a 15 de Maio de 1891, no décimo quarto ano do Nosso
Pontificado.
PAPA LEÃO XIII
Notas
1. Veja-se S. Tomás, Sum. Teol., I-II, q. 95, a. 4.
2. Dt 5,21.
3. Gn 1,28.
4. S. Tomás, Sum. Teol., 11-II, q. 10, a. 12.
5. Gn 3,17.
6. Tg 5,4.
7. 2 Tm 2,12.
8. 2 Cor 4,7.
9. Mt 19,23-24.
10. Lc 6,24-25.
11. S. Tomás, Sum. Teol., II-II, q. 66, a. 2.
12. Ibidem,
q. 65, a. 2.
13. S. Tomás, Sum. Teol., 11-11, q. 32, a. 6.
14. Lc 11,41.
15. Act 20,35.
16. Mt 25,40.
17. S.
Gregório Magno, in Evang., Hom.
IX, n. 7.
18. 2
Cor 8,9.
19. Mc 6,3.
20. Mt 5,3.
21. Ibidem,
11,18.
22. Rm 8,29.
23. Ibidem,
VIII, 17.
24. Também Maquiavel, Discorsi, III, 1, afirma este princípio.
25. 1
Tm 6,10.
26. Act 4,34.
27. Apolog.,
II, 39.
29. S.
Tomás, Sum. Teol., II-II,
q. 61, a. 1 ad 2.
30. S. Tomás, De regimine princ. I, 15.
31. Veja-se o n. 12 desta Encíclica: Posse e uso das riquezas.
32. Veja-se o n. 17 e segs. desta Encíclica.
33. Gn 1,28.
34. Rm 10,12.
35. Ex 20,8.
36. Gn 2,2.
37. Gn 3,19.
38. Veja-se o n. 29 e segs.
39. Veja-se a Encíclica Libertas.
40. Eclo 4,9-12.
41. Pr 18,19.
42. S. Tomás, Contra impugn. Dei cultum et relig., II, 8.
43. Ibidem.
44. S. Tomás Sum. Teol., I-II, q. 93, a. 3 ad 2.
45. Mt 16,26.
46. Mt 6,32-33.
47. 1
Cor 13,4-7.
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