Procurando salvar o homem não pelo reconhecimento e submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela "ciência do bem e do mal", a gnose ao mesmo tempo é um ateísmo prático e uma forma de racionalismo. "Concretamente, escreve o prof. Drago Romano, o gnosticismo que contaminou nossa civilização é uma forma herética do Cristianismo. Os gnósticos tinham conhecimento do dado revelado mas dele serviam-se como matéria a ser informada pela racionalidade e até pela imaginação para [...] produzir cosmologias e antropologias fantasiosas".
Modernamente a gnose explode no racionalismo militante do Iluminismo. O dado revelado vê-se subordinado à razão que, no dizer de Spinoza, é "a revelação permanente e profunda da essência divina". Na Alemanha, propõe a Aufklärung que "a Filosofia substitua a Religião, abrindo assim caminho para outros substitutos: a Política, a Ciência e a Técnica". "Em nome do saber absoluto — escreve ainda o prof. Drago Romano — conhecimento superior ao da fé, como possuíam os "pneumáticos" da primeira gnose, (Hegel) propõe... a assimilação da religião pela filosofia... "No seu sistema, a filosofia se converte numa revelação de Deus, mas de um Deus imanente à história e cujos atributos os materialistas, como Feuerbach e Marx, transferirão para a matéria, que "passa a ser eterna e a evoluir em constante progressão dialética, atingindo no homem sua forma consciente". Daí por diante, os novos detentores "pneumáticos" ou iluminados da ciência gnóstica do bem e do mal serão os hierarcas do partido comunista.
Ressurge agora o gnosticismo, em plena heresia Progressista, na doutrina de um Teilhard de Chardin, com a sua cosmologia fantasiosa, a sua "consciência cósmica" e a sua fé no mundo, a preparar a definitiva "secularização" do Cristianismo.
* * *
Como "doutrina que nega a existência de um Deus pessoal"1 define Fabro o ateísmo. Atéias considera ele "todas as filosofias e religiões nas quais o conceito de Deus contradiz as exigências de sua natureza".2 Para Clemente de Alexandria, porém, "ateu é o que afirma não existir Deus".3
Poderá preferir alguém esta afirmação, consciente de ser possuidor de uma certeza? Quem ousaria sustentar sua evidência? (Nem mesmo Sartre que se intitula representante do existencialismo ateu, pois, para justificar uma escolha já a priori feita, pretende demonstrar ser a noção de Deus contraditória usando a premissa "Deus se existe é contingente" e argumentos que envolvem petição de princípio).4 Quem algum dia a demonstrou?
Uma coisa é pronunciar-se uma sentença, outra é conceder-lhe a inteligência assentimento. Se impossível é assegurar a veracidade do enunciado "Deus não existe", o ateísmo resulta principalmente de uma opção doutrinária. Essa opção conduzirá a ser Deus substituído por um falso absoluto5.
O ateísmo representa, para G. van des Leeuw, "o movimento negativo no desenvolvimento da consciência, momento que só pode surgir e vigorar enquanto supõe o momento precedente, o afirmativo da religião como culto de um Deus, senhor do homem e de seu destino"6. É "uma religião de fuga diante de Deus, [...] angústia de Deus, quando se recusa à fé para recair no demoníaco"7.
O caso de Sartre é elucidativo: "Não parece que tenha ele deixado de crer em Deus; na melhor hipótese se trata de uma adesão verdadeiramente pessoal. Não fez senão tomar consciência de uma opção que precedeu todas as razões e que, mais exatamente, as produziu. Sartre disto não faz mistério. Uma passagem de "Situations" claramente o testemunha: "O ateísmo de M. Naville não é o resultado de uma descoberta progressiva. É uma tomada de posição nítida e apriorística sobre um problema que infinitamente ultrapassa nossa experiência". Essa posição (acresce ele) é a minha"8.
Em "De coelo et mundo" ensina-nos Aristóteles que "todos os homens têm alguma concepção relativa à natureza dos deuses"9.
O ateísmo não tem consistência; torna incoerente qualquer sistema filosófico e impraticável a ação e a vida. Entretanto, a opressiva e ofuscante realidade é a ameaça do ateísmo vivido e institucionalizada. Ou será ele também uma expressão meramente verbal que envolve e oculta efetivos modos de rejeitar a Divindade?
Não crucificaram a Jesus os ateus; Sua morte, pediram-na os judeus infiéis e não tementes a Deus, nunca esperando Rei e Reino que não fosse deste mundo; não a impediram os pagãos idólatras e tementes a César, sempre servido rei e reino deste mundo.
Não suportaram, outrora, judeus e pagãos, o convívio com Deus vivo e verdadeiro. Deram-lhe morte, morte de cruz. Da mesma "insuportável presença" quer também livrar-se a moderna cultura. A seu reino é anteposta a promessa de um paraíso terrestre gerado pela revolução, pelo desenvolvimentismo e pela tecnocracia10. Não disse estar Ele em sua Igreja, presente nela e até a consumação dos séculos? Pretendem pois aniquilá-la, querendo-a infiel e idólatra: no mundo e do mundo; e, como supremo, final, satânico objetivo atingir pelo "cristianismo secularizado" o que chamam a "morte de Deus". (A fim de poupar aos justos abreviaria os dias a Trombeta do Anjo?)
Deixemos a digressão. Onde se radica a possibilidade do ateísmo? — Parece que a resposta nos pode vir da dialética paulina do judeu e do pagão11. Tomamos aqui o termo "dialética" no sentido moderno e mais generalizado, como a atividade de um par relacionado. Tendendo a unir-se, realiza-se uma dialética de complementaridade, tendendo a repelir-se, uma dialética de conflito.
Singular é o relacionamento Deus-Homem: o primeiro que não necessita complementar-se é origem de toda união; o segundo, ainda que de tudo carente, é a causa de toda recusa.
O divino convívio, que se estabelece pela graça e que pelos dons é tornado mas estreito e espontâneo, pode ser rejeitado no conhecimento e no amor.
São Paulo apresenta dois modos de o homem recusar a Deus: o do pagão pela idolatria e o do judeu pela infidelidade. O pagão-idólatra12 não quer conhecer a Deus, o judeu-infiel13 não O quer reconhecer; quanto a amá-lO, substituem-nO os dois por alguma modalidade de amor próprio14. Assim, as suas formas concretas de ser ateu nos parecem redutíveis a estas duas recusas: infidelidade e idolatria.
Podemos agora corrigir o anteriormente dito, passando a afirmar que sim, neste restrito sentido, foram os ateus que a Jesus crucificaram.
Martin Buber, considerado por alguns o maior filósofo judeu de nosso tempo, visualiza o relacionamento Homem-Deus a partir da atitude religiosa ou não religiosa do homem e expressa-o pelos termos dialéticos "I-Thou" e "I-It" (propomos traduzir por eu-Vós e eu-objeto). "Encontra o eu-Vós (I-Thou) sua maior intensidade e transfiguração na realidade religiosa na qual o Ser ilimitado torna-se como pessoa absoluta meu Amigo. O eu-objeto (I-it) atinge sua maior concentração e iluminação no conhecimento filosófico"15.
As formas de ateísmo têm de comum pertencer ao relacionamento eu-objeto (I-It) proposto por Buber como modelo de atitude não religiosa. Em outras palavras, reduzem a atitude religiosa a uma forma de filosofia. Nesse relacionamento destaca ele uma particular modalidade para a qual volta sua máxima aversão: a gnose. "Ela e não o ateísmo no [sentido restrito] é que suprime Deus [enquanto conhecido e amado] (...) ela é o verdadeiro adversário da realidade da fé"16.
Procuremos identificar a gnose, seu modo de substituir Deus por um objeto-relativo-ao-homem, por alguma projeção da humana subjetividade; e de excluí-lO do temor e do amor. É conveniente, também, apreciarmos os casos históricos e concretos de surtos de gnosticismo.
A heresia gnóstica, que pretende atingir o conhecimento do bem e do mal, surge no segundo século, havendo quem a considere anterior e fundada por Simão, o Mago, personagem citado nos Atos dos Apóstolos. Grande foi a pluralidade de suas seitas, tendo como principais características: aceitar a existência de um Deus inacessível, que não é criador nem do mundo nem da matéria [do mal]; socorrer-se da cosmologia do platonismo médio e de Filo, submetendo a ela a soteriologia cristã; conceber o homem como composto de dois elementos [preparação remota do cartesianismo]: um bom, o espírito, e outro mau, a matéria; dividir os homens em categorias tais como materiais, psíquicos e pneumáticos, possuindo estes últimos um conhecimento mais elevado que o da fé17.
O que entretanto melhor caracteriza a gnose (e provavelmente faz Buber considerá-la uma categoria universal) é sua atitude de conceber à razão precedência relativa ao dado revelado e à fé.
É pois uma forma de racionalismo, mas de racionalismo que não se sustenta e que permite a submissão da inteligência à mais desvairada imaginação (fato ocorrido em todos os surtos do gnosticismo).
A terminologia gnóstica é complicada e pedante. Nessa linguagem propõem os primitivos gnósticos a mais imaginosa e desconcertada Cosmologia. Terão seus seguidores...
Há também o caso de um certo Isidoro, filho de Basílides (fundador da gnose de Alexandria), que "abandonou os temas cosmológicos para fixar-se na antropologia. Ensinava cruamente e necessidade de satisfazer as mais baixas paixões como meio de adquirir a tranqüilidade da alma requerida pela oração [subtrair-se às repressões e alcançar a beatitude; — um precursor de Marcuse] (...) Semelhantes aberrações aparecem mais tarde entre os iluministas"18.
A gnose não é necessariamente uma forma de heresia do cristianismo. Pode surgir em outras configurações religiosas, culturais, passando a constituir uma forma de idolatria qualquer. Concretamente o gnosticismo que contaminou nossa civilização é uma forma herética do cristianismo. Os gnósticos tinham conhecimento do dado revelado, mas dele serviam-se como matéria a ser informada pela racionalidade e até pela imaginação para gerar Demiúrgos e Arcontes e produzir Cosmologias e Antropologias fantasiosas.
Parece lícito julgarmos que realmente participa a gnose tanto da infidelidade quanto da idolatria.
Vejamos um pouco os frutos dessa árvore.
Uma forma de gnose é também o maniqueísmo. Dependente deste é a heresia albigense que prepara o fim da Idade Média. "Esperamos que o leitor completando com a imaginação o que nossa arte não lhe pode oferecer, sinta o ácido e inebriante gosto do "vin herbez" que Tristão e Isolda beberam; e sinta a gravidade mortal do maniqueísmo, isto é, de tendência mortal da alma humana para ver o mal nas coisas, como que as limitando ou as tingindo de negro, reaparecerá mais tarde, depois das efêmeras euforias da Renascença. Mas assim como o demônio se veste da aparência que convém a cada pessoa ou episódio, também essa emanação dos infernos se vestirá ao gosto da época. Tempo virá em que o pessimismo humano terá a suprema melancolia dos algarismos usados nos índices sócio-econômicos; agora, neste fim de Idade Média, ele tem a beleza e os lampejos sonhados nos vitrais maravilhosamente compostos pela piedade de um povo cristão. (...) "O mundo doravante não será mais um mistério inspirado por Deus; será obra da humana racionalidade" (op. cit. pgs. 79-80)19.
Passam-se os séculos. O racionalismo cartesiano e o princípio protestante da livre interpretação da Sagrada Escritura preparam uma nova eclosão gnóstica que receberá o nome de Iluminismo. "Os humanistas da Renascença tinham como meta ideal o retorno à cultura clássica da Grécia e de Roma. Os "filósofos" do Iluminismo projetam sua ilimitada confiança no futuro, para o qual tende o progresso da Humanidade. Estão convencidos de que iniciam uma nova idade, encontrado o caminho que conduz à verdade, à liberdade e à felicidade de todo gênero humano. O passado é um peso morto, um estorvo de que é preciso libertar-se. A Idade Média, dominada pelo cristianismo, não é mais que sombras, barbaria, trevas e tirania. Contrastando com ela, surge um tempo novo, o século das luzes. O homem é auto-suficiente. Pode aperfeiçoar-se indefinidamente a si mesmo com suas próprias forças"20 "A nova ideologia afere-se à formulação proposta por Spinoza no "Tractus theologico-politicus" (1670): "O dado revelado é para um povo e para um tempo e está subordinado à razão que é a revelação permanente e profunda da essência divina"21.
"Não se limita [o iluminismo] como o humanismo a uns quantos homens de letras, mas desce à classe média burguesa, e chega, ainda que sem penetrá-la, à massa ignorante que lhe servirá de instrumento para as subversões políticas. O ambiente estava preparado desde o Renascimento e suas primeiras manifestações são encontradas nos países mais penetrados pela reforma protestante e pela nova filosofia"22.
Surge na Inglaterra, onde também prolifera a Maçonaria, que foi o eficiente instrumento de divulgação doEnglightenment. Os maçons postulam um ser supremo, o Grande Arquiteto do Universo, que (longe de ser oDominus Deus Sabaoth, o Deus dos Exércitos) não passa de uma divindade da gnose.
O Iluminismo francês inicia-se com o Enciclopedismo e alcança sua maior expressão em Rosseau. Prega contra a Igreja, o trono, o "ancien regime", as "estruturas medievais"; proclama os ideais da fraternidade, de igualdade, de liberdade; professa confiar na ciência, na razão, no progresso necessário; prepara (com a ativíssima ajuda das lojas maçônicas) a Revolução Francesa e a guilhotina.
O Iluminismo francês será ultrapassado em sua influência histórica e cultural pela Aufklärung alemã, condicionada fortemente pela mentalidade protestante (na livre interpretação da Escritura, o "carisma" individual dispensa o magistério da Igreja e a razão humana tem precedência sobre a autoridade de Deus Revelador).
Propõe a Aufklärung que a Filosofia substitua a Religião, abrindo assim caminho para outros substitutos: a Política, a Ciência e a Técnica.
Vai confluir o Iluminismo germânico na tríade Fichte, Shelling e Hegel, ex-seminaristas luteranos.
O gnosticismo hegeliano contaminará profundamente a cultura ocidental. Essa infecção contribuirá para produzir as graves crises e os modernos delírios civilizacionais.
Hegel, como é comum na gnose, inspira-se no platonismo e no dado revelado, adulterando ambos.
A atividade dialética para Platão era o esforço da razão humana em ascender no conhecimento, de Idéia em Idéia, por progresso e substituição, até poder contemplar os arquétipos supremos: o Ser, o Bem, o Um.
Esforço que conseguirá sempre resultado mais modesto que o desejado pelo filósofo; pois só pela graça e na vida sobrenatural, na qual Deus tem a iniciativa primeira e é a causa de todo o ato de conhecimento e de amor, pode o homem contemplar na fé (aqui) e na visão (na eternidade) aquele que se revela como "Ego sum qui sum".
Entretanto não apenas é possível, mas até constitui a mais elevada atividade da inteligência, procurar conhecer o que, de modo analógico, de Deus pode ser predicado, tendo consciência que este conhecimento é inadequado e incompleto. Só haverá gnose quando se pretender erigir a humana racionalidade em supremo arbítrio. Caso contrário não seria legítimas nem a Teodicéia nem a Teologia.
O procedimento dialético é comum no modo de o homem perseguir o conhecimento de uma natureza. Raras são as essências apreendidas de modo perfeito e definidas de modo essencial. Na maioria dos casos tem a inteligência de peregrinar de nota em nota definidora de uma natureza, para circunscrevê-la e dela conseguir algum conhecimento, o qual com freqüência permanece no domínio do provável, e da opinião. A moderna ciência, por exemplo, não fundamentada na evidência, mas dependente do método experimental, tendo suas conclusões em contínuo processo de substituição, é uma dialética.
O modo de a inteligência humana caminhar em sua fraqueza para a conquista de alguma verdade, e Platão viu nas mais elevadas altitudes o digno termo dessa peregrinação, é por Hegel, idólatra da Razão, atribuído ao Espírito Absoluto como sendo o processo pelo qual este se autoconscientiza.
"Et comment ce Dieu de Hegel prend-il conscience de lui même et se personnalise-t-il, comment conquiert-il? "Dieu doit être conçu comme esprit dans la communauté ("Enciclopédie"). "Non seulement Dieu n'est pas independent de la communauté spirituelle, mais il n'existe comme tel, comme se connaissant soit même que dans cette communauté ("Histoire de la Philosophie")23.
Não é só a ascensão dialética de Platão que é revolvida. Muito mais grave é "Deus se conhecendo na comunidade espiritual". Aqui Hegel faz do Homem-Espécie, o Verbo. Não mais o Verbo se faz carne; fez Hegel da carne o Verbo. Parece-nos este o ponto mais grave da gnose hegeliana.
Em nome do saber absoluto, certamente um conhecimento superior ao da fé, como possuíam os "pneumáticos" da primeira gnose, propõe ele ainda: a assimilação da religião pela filosofia, os fundamentos da secularização e da demitização, as bases do Estado totalitário, a moral do sucesso, a história do devir do Espírito-Absoluto e regra suprema do bem e do mal.
Do conceito hegeliano de Deus pode dizer-se que contradiz as exigências da natureza divina (o que caracteriza para o Pe. Fabro uma forma de ateísmo). Feuerbach percebe o artificialismo dessa divindade e transpõe os atributos dela para a matéria. Nisto, Marx e Engels propõem o seu sistema, com o qual pretendem superar o idealismo, mas confundem o mundo real e o mundo material. O novo sistema perde consistência lógica ao conceber as prerrogativas do "espírito" à matéria, que passa a ser eterna e a evoluir em constante progresso dialético, atingindo no homem sua forma consciente.
A nova seita não apresenta nem Demiurgos, nem Arcontes, nem Espírito-Absoluto, mas continuam mantidas a cosmologia, a antropologia e a escatologia não menos fantasiosas. A revolução do proletariado (messiânico e redentor) restabelecerá a harmonia Homem-Natureza (a volta ao Paraíso, a nova Jerusalém) quebrada pelo regime de distribuição do trabalho e de propriedade (pecado original). O progresso é necessário e em cada momento a conscientização e a alienação (o bem e o mal) significam respectivamente a coincidência e o desvio relativos ao sentido da história.
Quem possui esse conhecimento "gnóstico" do bem e do mal? Quem distingue o que é conscientizado do que é alienado? Os "pneumáticos" dirigentes (hierarcas) do partido comunista (Igreja) são os que têm esse superior discernimento.
O marxismo é uma seita subsidiária da gnose hegeliana. Maritain reconhece que "Marx nunca se libertou de Hegel, permanecendo por ele sempre influenciado"24.
A nova seita, voltada para a práxis e pregando a ideologia revolucionária, possibilitará o desencadeamento de parte das terríveis e ameaçadoras potencialidades contidas no sistema hegeliano. Os partidos comunistas, como as lojas maçônicas desde a erupção do Iluminismo, passam a exercer (e agora em paralelo com ela) constante atividade para remover todas as marcas de cristianismo que ainda persistem nesta nova civilização em crise.
Poderíamos continuar analisando as influências da Aufeklärung25 de Hegel e de Marx nas mais diversificadas formas de desumanização, tais como o nazismo, o comunismo russo, o estado totalitário, o existencialismo ateu, o ateísmo institucionalizado, a "revolução cultural" chinesa.
Perseguiremos outra linha de continuidade. Impressiona-nos acima de tudo o novo surto do Englightenment, a nova fase do mesmo antigo Iluminismo gnóstico. Sua recente característica é que não mais surge, como outrora, dos meios que de modo ostensivo combatem a fé, mas é trazido principalmente por mãos, muitas delas até consagradas, que, ao menos na aparência, pertencem e servem à Igreja. Recebe esta nova forma da velha heresia o nome de Progressismo, muito embora melhor lhe coubesse o de Regressismo. Aparece no tempo de S. Pio X e recua diante da santa reação do grande pontífice. Oculta-se e prepara seu virulento retorno em nossos dias.
Parece que não incidiremos em erro se identificarmos como causa intelectual do progressismo a infiltração hegeliana no pensamento teológico.
De um autor muito admirado em meios progressistas diz-nos Georges Frenaud: "um dos mais fervorosos discípulos do Pe. Teilhard, Claude Tresmontant, resume nestes termos o pensamento de seu mestre sobre a criação: "Deus se completa criando o mundo, Deus se empenha numa luta com o múltiplo (o antigo caos) para se encontrar a si mesmo, no término desta obra, mais rico e pacificado: velha idéia gnóstica que se encontra em Böhme, em Hegel, em Schelling".26 Prossegue, analisando a cristologia do Pe. Teilhard: "Mas essa cristologia renovada permanece a mesma cristologia da fé? Continua ela a ser aquela providência amorosa e perfeitamente gratuita de um Deus rico de misericórdia, que se fez homem para nos arrancar do abismo do pecado? Não é antes uma nova forma de gnose, uma destas múltiplas tentativas, sempre vãs, de racionalizar o conteúdo da fé, de nos fazer penetrá-la não pelos primeiros princípios da metafísica, mas, o que é pior, apenas pelos processos das ciência físicas e naturais?"27 Acrescentaríamos ainda como característica gnóstica da obra desse autor a dependência que impõe à soteriologia cristã da cosmologia "científica".
A fé no mundo do Pe. Teilhard e sua imaginosa cosmologia, na qual se confundem matéria e espírito, oferecem uma abertura à chamada secularização do cristianismo. Essa emanação hegeliana difundida por teólogos protestantes contaminará certa parte do laicato e do clero católico. Vejamos o que nos diz um desses "teólogos", por exemplo, o pastor protestante Harvey Cox.
Tem a palavra o "Ph.D. — "History and Philosophy of Religion" — Harvard, 1963": "A noção de outro mundo (otherworldiness) conta a existência de um outro mundo mais elevado, mais santo ou mais sagrado do que o mundo secular em que vivemos. Esta suposição tem muito pouco em comum com a fé hebraica, excetuando algumas passagens apocalípticas. As escrituras dos judeus ensinam que este mundo é o único criado por Deus, que o ama e o conduz ao aperfeiçoamento. A idéia de dois mundos, sendo um secular com inferior "status", tem raízes não em fontes bíblicas, mas principalmente na Pérsia e nas filosofias helênicas que formaram a atmosfera cultural da bacia do Mediterrâneo nos primeiros séculos de vida da Igreja"28. (...) "Nosso emergente consenso ecumênico da fé é que este mundo é o mundo que Deus está renovando e redimindo, que nossa história é a história na qual Deus age, e que o triunfo final de Deus previsto pela Bíblia será a realização da plenitude deste mundo e não do outro". (...) O triunfalismo foi pôsto de lado. Agora os cristãos vêem-se mais e mais como "Povo de Deus", chamados para servir este mundo e não como uma privilegiada colônia destinada à salvação no outro mundo. (...) Secularização (...) pretendo que signifique: perda de interesse por outros mundos, com a resultante intensificação de interesse por este mundo, e a nova emergente função da Igreja, mais como minoria e serva [deste mundo, é claro] do que maioria e senhora. (...) Uma nova teologia para uma sociedade secularizada só se produzirá quando a Igreja aceitar a eliminação de seu "status" temporal e livrar-se de todo o saudosismo de um róseo passado"29.
"Secularização significa que o mundo onde se processa a história humana agora fornece o horizonte no qual o homem compreende sua vida"30.
"Nossa tarefa não é nem de perpetuar essa síntese [quer ele dizer a aliança entre a revelação e a filosofia grega] nem de dispensá-la. Preferível é forjar uma nova expressão de fé bíblica dentro das categorias culturais de hoje"31.
"Se Deus ainda é vivo e ativo, o lógico (...) é procurar discernir sua atividade na nossa história atual (...) Uma Igreja que não se identifica com o mundo, com a mesma intensa solidariedade que Deus tem por ele, trai sua missão (...) nossas várias doutrinas herdadas surgiram do esforço da Igreja para falar em diferentes idades do mundo (...) Podemos ver que o significado de qualquer trecho de doutrina não é fixado nem fechado. (...) Se Deus age no mundo dos eventos seculares e se a responsabilidade do seu povo é discernir sua ação, isto requer uma teologia secular"32. "Os cristãos podem reunir-se para se consultarem uns aos outros acerca do que agora está fazendo Deus no mundo secular, participando, assim, alegremente na missão secular de Deus"33.
"Nossa tarefa de teólogos não é podar ou preservar a fé, mas interpretá-la e reinterpretá-la para sucessivas épocas do homem". [35]
"Uma interpretação secular do Evangelho deve ser ética (...) e em nosso mundo isto significa que deva ser política"[36]
Os "dogmas" professados pelos progressistas e seus grupos proféticos são muito bem expressos pelo pensamento do teólogo protestante e secularizante. Poderiam até utilizá-lo, dele extraindo um credo de Cox para contestar o Credo de Paulo VI. Visível também é a dependência que de Hegel tem tudo isso.
"Se Deus ainda é vivo e ativo o lógico é discernir sua atividade em nossa história" é a velha tese hegeliana de Deus se conhecendo na comunidade humana. Não sendo de fato o homem o Verbo de Deus, ao pretender ele por tal passar-se, que poderá representar se não um Verbo mudo? Assim, evidentemente, não nos vem Deus manifestando-se em nossos dias, conforme reconhecem alguns "doutos teólogos", que logo concluem o que a priori já desejavam: "Deus está morto".
Estão idólatras e infiéis livres da "insuportável presença" d'Ele? E a Santa Eucaristia? E a Igreja?
Para suprimir a presença real no Santo Sacramento oferece Schillebbeckx a transignificação-transfinalização.
A Igreja, necessário é fazê-la infiel e idólatra: infiel ao conteúdo da revelação, idólatra do mundo. Esta é a meta final do progressismo. O Iluminismo do século das luzes conta com as lojas maçônicas, o socialismo marxista, com os partidos comunistas. Qual seita ativista irá desempenhar idênticas funções em relação à heresia progressista? Nada mais pretendem, estejamos certos, que a isso de destine a "Igreja Reformada", ou "Igreja Nova", que terá sua missão facilitada na medida em que puder dispor das "superadas estruturas medievais" da "Igreja Alienada".
Simulam os iluminados e "pneumáticos" progressistas conhecer o futuro. A "pastoral da Igreja-Nova" deve ser orientada "para frente". Isto é, na direção de metas, de cuja necessária ocorrência tiveram "prévia revelação". [37] (Qual a futura sociedade do ilustre prof. Brzezinski...).
Não é a verdade e o bem que regulam a atividade dos modernos gnósticos, ou por outra, verdade e bem nada mais significam para eles senão ter consciência do sentido determinístico dos acontecimentos. Não é, entretanto, esta consciência mais do que a idealizada racionalização dos próprios e prévios desejos, aos quais pretendem arbitrariamente submeter a realidade. Neste processo, ainda fácil e freqüentemente o império da racionalidade é cedido à imaginação.
Apelam constantemente os progressistas para os jovens. A proposta que lhes estão fazendo é a de Ivan Karamazov: "Se Deus não existe tudo é permitido". O que pretendia sugerir ele a Smerdiakov? Nada menos que o parricídio.
Elimine-se a autoridade, suprima-se a figura paterna que a apresenta (cartaz de Nanterre: "Papa pue"), enfim, negue-se o Pai. Novas gerações de possessos promovam a "libertação" do homem.
Em público, o jovem Stavrogine com violência humilha Pyotr Pavlovitch, idoso e respeitável personagem de sua cidade, e beija ostensivamente a mulher de Liputin. Não há ira, nem libido. O prazer é de chocar, de demolir, de promover a gratuita agressividade.
Triunfe o progressismo e não mais haverá repressões.
Secularize-se o cristianismo, dessacralize-se a Igreja.
Instaure-se a moral dos possessos: "chienlit" permanente (com Sartre e Marcuse).
Deus é morto, tudo é permitido!
Mas os jovens Smerdiakov e Stravrogin suicidaram-se.
A tola expressão "morte de Deus" tem verdadeiramente este sinistro significado: suicídio da humanidade.
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