“Paulo VI resolveu dar um escândalo, para o miúdo povo de Deus, como se
dizia na Idade Média: repentinamente cassou vários santos”
Orlando Fedeli
Esperando um amigo no aeroporto, passei por uma
livraria. Livraria de aeroporto, na qual os livros em voga são vendidos ao
público muito característico dos vôos internacionais.
Como ao final das feiras se vendem os restos dos
frutos e verduras a baciadas, em livraria de aeroporto, na primeira banca, — e
em ambiente muito higiênico, oposto ao dos finais de feiras — se expõem os
últimos livros de sucesso num mundo intelectualmente decadente.
Os sucessos na decadência...
Os sucessos do momento. Que, depois de amanhã, estarão
destinados ao esquecimento absoluto.
Os títulos eram fúteis. Por vezes lúbricos, com fotos
escandalosas. Baboseiras esotéricas ou orientais, para madames donas de lulus,
aficionadas de Paulo Coelho, comprarem, fingindo que crêem em alguma coisa.
Alguns títulos políticos. Livros sobre ídolos
esportistas. E daí para baixo, numa mixórdia pseudo intelectual deprimente.
Não era fim de feira.
Era fim de cultura.
In Tertium Millenium inneuntem. No advento do terceiro milênio. Do Novo Advento. Na
Civilização do Amor. Com Bin Laden, homens-bomba, e guerra do tráfico na favela
do Esqueleto.
Em meio a essas obras primas da literatura atual,
deparei-me com um livro de um Cardeal da Santa Romana Igreja, como se dizia
solenemente, nos tempos de solenidade, quando havia Cardeais solenes.
O livro era a última produção do Núncio de Fidel
Castro no Brasil, o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, graças a Deus, já
aposentado, mas ainda produzindo obras de alto nível teológico. O título o
fazia merecedor de destaque... em livraria de aeroporto: “CORINTIANO, GRAÇAS A DEUS” (Ed.
Planeta, São Paulo, 2004).
Sem dúvida, “l´exemple
est rare et digne de mémoire” (“O exemplo é raro e digno de memória) que um
Cardeal da Santa Romana Igreja escreva um livro sobre futebol!
Pior ainda: sobre sua preferência clubística! E
atribuindo essa qualidade de ser torcedor de um clube de futebol à graça de
Deus!
E como o Cardeal Arns sempre fez “opção pelos
humildes”, não faltam, no livro, fotos dele mesmo, até como seminarista, um
rapazelho com cara de indigestão amarga e já revoltada, antes mesmo de passar
pela iniciação marxista do seminário.
Claro que não comprei o livro. Já havia cometido,
tempos atrás, o erro de gastar meus parcos reais do salário — muito irreal — de
professor aposentado, adquirindo um livro de memórias desse Cardeal. A decepção
intelectual foi tão grande que me prometi não jogar fora nunca mais nem um
centavo sequer com obras dessa sumidade cardinalícia. (Sumidade aí não vem de
sumo, mas do verbo sumir).
E folheando o livro, deparei-me, à página 99, como um
trecho saboroso e inacreditável, indicativo da profundidade teológica com que
Dom Paulo Evaristo Arns e Paulo VI tratavam altas questões da Igreja. Vejam se
não é incrível. Mas, antes de dar a citação, convém recordar o que aconteceu há poucas décadas, que para os
vertiginosos tempos em que sofremos, parece ser já a era arqueozóica.
Pois naquela era “arqueozóica”, Paulo VI resolveu dar
um escândalo, para o miúdo povo de Deus, como se dizia na Idade Média:
repentinamente cassou vários santos.
Como cassou santos?
Cassou, sim!
E por que?
Porque, segundo Paulo VI, não havia documentação
histórica suficiente para embasar a existência desses santos cultuados, alguns
deles, há quase dois mil anos pela Igreja Católica.
Deles, dizia-se que tinham existido. Dizia-se que
haviam sido santos, mas...
Cadê a certidão de nascimento deles?
Não tinham certidão de nascimento. Não possuíam provas
históricas de que tinham existido. Pouco adiantava que fizessem milagres
estupendos—como era o caso de Santa Filomena — não tendo certidão de
nascimento, nem atestado de óbito, Paulo VI punha em dúvida a sua historicidade.
Giovanni Battista Montini sabia bem da necessidade e
da importância de ter documentos em ordem, ele que recebera o Doutorado em
Direito Canônico em tempo recorde, por dispensa de muitas matérias. [“Monsenhor
Pizzardo lhe tinha pedido que terminasse “no mais breve tempo” seus estudos de
direito canônico (...) Graças a dispensas de exames em certas disciplinas, Dom
Battista pode pois inscrever-se na Faculdade de Direito de Milão no dia 21 de
novembro, e desde o dia 9 de Dezembro, pode obter um Doutorado em Direito
Canônico (com 32 sobre 40 nos exames escritos e orais” ( Yves Chiron, Paulo VI, o Papa dilacerado, Ed. Perrin,
Paris, 1993, p. 42)
Mas o diploma ele tinha.
Santa Filomena que fizesse o milagre de arranjar sua
certidão de nascimento, caso contrário, ela seria cassada do rol dos santos. E
como ela não arranjou nenhuma certidão de que havia existido, Paulo VI a cassou
do rol dos santos junto com uma penca de outros.
Eram os tempos em que, no Brasil, se cassavam
deputados. E contra essas cassações, o Núncio de Fidel no Brasil, Dom Evaristo
Arns protestava com voz firme e melíflua: era absurdo, segundo ele, cassar
deputados comunistóides, certo, mas eleitos pelo povo!
Contra as cassações de santos, porém, Dom Paulo não
protestou. Ou melhor, recorreu apenas para que Paulo VI não cassasse São Jorge.
Dom Paulo Evaristo Arns conta, nesse livro fantástico
por ser escrito por um Cardeal, que escreveu um bilhete a Paulo VI, rogando
pela continuação do culto a São Jorge.
Eis o texto do bilhetinho teológico de um Cardeal a um
Papa tratando do porquê se deveria continuar cultuando São Jorge.
Copio o texto do bilhetinho do livro de dom Arns:
“Santo Padre, nosso povo não está entendendo direito a
questão. São Jorge é muito popular no Brasil. Sobretudo ante a imensa torcida
do Corinthians, o clube de futebol mais popular de São Paulo”.
[Paulo VI] respondeu-me assim:
”Não podemos prejudicar nem a Inglaterra, nem o
Corinthians” (Dom Paulo Evaristo Arns, CORINTIANO,
GRAÇAS A DEUS, Ed Planeta, São Paulo, 2004, p. 99).
E, por causa do Corinthians, São Jorge não foi
cassado!
Dessa vez, não foi São Jorge que salvou o Corinthians,
mas foi o Coringão quem salvou São Jorge.
Milagres da nova Igreja, nascida do Vaticano II.
***
Se isso não tivesse sido publicado em livro, por uma
Cardeal, dir-se–ia que era uma calúnia integrista para denegrir Paulo VI e Dom
Evaristo. Não é calunia integrista. É relato modernista.
É com essa profundidade teológica—corintiana —que na
Igreja nascida do Vaticano II se permite cultuar ou deixar de cultuar um santo
nos altares.
Parece brincadeira!
Mas não é.
É tragédia.
Tragédia que, como diz o Catecismo — o velho Catecismo
— tragédia que clama aos céus vingança.
Exsurge, Domine, Domine, quare obdormis?
Exsurge!
Itapetininga, 7 de Julho de
2004.
Orlando Fedeli
Fonte: http://www.montfort.org.br/bra/veritas/cronicas/corintiano/
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