1. Os dias
do temor, da verdade e do amor.
Chegamos, o quanto Deus se dignou conceder-nos, ao conhecimento das coisas
invisíveis partindo das visíveis. Retorne agora a nossa mente a si mesma e
examine que utilidade possa tirar deste conhecimento.
De que nos servirá conhecer em Deus a elevação de sua majestade, se com isto
não recolhermos para nós utilidade alguma?
Que poderemos,
porém, trazer conosco ao retornarmos da intimidade da contemplação divina? O
que traremos, ao retornarmos da região da luz, senão luz? Se viemos da região
da luz, é conveniente e conveniente e necessário que tragamos conosco luz para
dissolver nossas trevas. E quem poderá saber onde estivemos, se não retornarmos
iluminados? Que se torne manifesto, portanto, que lá estivemos; que se torne
manifesto o que lá contemplamos.
Se lá vimos a
potência, tragamos a luz do temor divino. Se lá vimos a sabedoria, tragamos a
luz da verdade. Se lá vimos a benignidade, tragamos a luz do amor. Que a
potência incentive os tíbios ao amor; que a sabedoria ilumine os cegos pelas
trevas da ignorância; que a benignidade inflame os gélidos pelo calor da
caridade.
Olhai, vos peço, o
que seja a luz, senão o dia; e o que sejam as trevas, senão a noite. Assim como
os olhos do corpo têm os seus dias e suas noites, assim também os olhos do
coração têm os seus dias e as suas noites.
Três são os dias da
luz invisível, pelos quais se distingue o curso interior da vida espiritual. O
primeiro dia é o temor, o segundo a verdade, o terceiro é a caridade.
O primeiro dia tem o
seu Sol, e este é a potência; o segundo dia tem o seu Sol, é a sabedoria; o Sol
do terceiro dia é a benignidade. A potência pertence ao Pai, a sabedoria ao
Filho, a benignidade ao Espírito Santo.
Os dias que temos
externamente diferem dos que temos internamente. Nossos dias exteriores, mesmo
que não o queiramos, haverão de passar. Os interiores, porém, se assim o
quisermos, poderão permanecer para sempre. Está escrito sobre o temor de Deus
que "permanece pelos séculos dos séculos" (Salmo 18). Quanto à
verdade, também, não pode haver dúvida sobre sua eterna permanência, pois,
iniciando-se ainda nesta vida, alcançará em nós sua perfeição e plenitude
quando Aquele que é a verdade se fizer manifesto após o término desta vida. Da
caridade está escrito que "nunca passará" (I Cor. 13).
Bons dias são estes
que nunca haverão de passar. Maus são os dias que não somente não permanecem
para sempre, como nem sequer podemos retê-los ainda que por pouco tempo. Foi
destes dias que disse o Profeta:
"O homem é como
o feno,
e seus dias declinaram como a sombra".
Salmo 102
Estes são os dias
merecidos pela culpa; aqueles os dias concedidos pela graça. Daqueles dias
disse o profeta:
"Nos meus dias
O invocarei".
Salmo 114
Este foi o mesmo que
disse em outro lugar:
"Levantava-me
no meio da noite
para que a ti me confessasse".
Salmo 118
O profeta o chama de
seus dias, porque aos outros não tem amor. Foi assim que também disse Jeremias:
"Senhor, tu
sabes que não desejei
o dia do homem".
Jer. 17
Estes são os dias de
que Jó foi rico, do qual foi escrito que
"morreu velho e
cheio de dias".
Jó 42
De fato, não poderia
ser cheio dos outros dias, porque estes já tinham passado e já não mais eram.
Os maus conheceram
somente os dias que existem externamente; quanto aos bons, que mereceram ver os
interiores, estes não apenas não amam aos externos, como também os maldizem:
"Pereça",
disse o bem
aventurado Jó,
"o dia em que
nasci,
e a noite em que foi dito:
um homem foi concebido.
Converta-se em trevas este dia,
não o tenha em conta Deus,
lá no alto, e não o ilumine de luz".
Jó 3
Devemos, pois mais
amar aqueles dias que são interiores, onde à luz não se seguem as trevas, onde
os olhos interiores do coração puro são iluminados pelos esplendores do Sol
eterno.
Foi também a estes
dias que se referiu o salmista ao contar:
"Anunciai dia
após dia
a sua salvação".
Salmo 95
O que é a sua
salvação, senão o Jesus? Pois assim se traduz o nome de Jesus, ele significa o
Salvador. Ele é dito o Salvador, porque por ele o homem é regenerado, para a
salvação. Dele falou João, dizendo:
"A Lei foi dada
por Moisés,
a graça e a verdade foram feitas
por Jesus Cristo".
Jo. 1
Ademais, Paulo
Apóstolo chama Cristo Jesus de
"virtude de
Deus
e sabedoria de Deus".
I Cor. 2
Se, pois, Jesus
Cristo é a sabedoria de Deus, e por Jesus Cristo veio a verdade, conclui-se que
a verdade provém da sabedoria divina. O dia, pois, da sabedoria é a verdade.
A própria sabedoria
fala deste seu dia aos judeus, dizendo:
"Vosso pai
Abraão exultou
por ver o meu dia,
viu-o e rejubilou".
Jo. 8
A verdade de Deus é
a redenção do gênero humano, a qual foi primeiramente prometida. Ao
manifestar-se posteriormente, o que mais fez senão mostrar-se veraz? Esta
verdade foi cumprida, pois, de modo conveniente pela sabedoria, de quem provém
toda verdade. Não foi enviado para cumprir a verdade outro senão aquele em quem
reside toda a plenitude da verdade. Com justa razão Abraão exulta pelo dia da
verdade, pois deseja que se cumpra a verdade, tendo visto este dia em espírito
ao ter conhecido a vinda na carne do Filho de Deus para a redenção do gênero
humano.
Que se diga, pois:
"Anunciai dia
após dia
a sua salvação".
O dia segundo, do
dia primeiro ao dia terceiro; o dia da verdade, do dia do temor ao dia da
caridade.
O primeiro dia era o
dia do temor; vem depois o outro dia, o dia da verdade. E dissemos que vem, não
que o sucede, porque o anterior não cessa. Eis, então, já dois dias; o mesmo
ocorre com o dia terceiro, com o dia da caridade, pois vindo este, aos
anteriores não expulsa.
Bem aventurados
sejam estes dias, que podem fazer a riqueza dos homens; onde chegando os
futuros, os presentes não passam; onde aumentando o número, multiplica-se o
resplendor.
2. Os três
dias na história da salvação.
Os homens compreenderam, em primeiro lugar, terem caído sob o jugo do pecado ao
ter-lhes sido dada a Lei, tendo daí começado a temer a Deus como juiz por
conhecerem suas iniqüidades. Temê-lo já era conhecê-lo, porque de maneira
alguma poderiam temê-Lo se dEle nada conhecessem. Este conhecimento já era
alguma luz; já era dia, mas não era dia claro, escurecido que estava pelas
trevas do pecado.
Veio então o dia da verdade, o dia da salvação, que destruiria o pecado,
iluminaria a claridade do dia anterior, e não tiraria o temor, mas o mudaria
para melhor.
Mas esta claridade
não seria ainda plena até que a caridade não se acrescentasse à verdade. De
fato, foi a própria Verdade que disse:
"Muito tenho
ainda para vos dizer,
mas não o poderíeis suportar.
Quando vier o Espírito da verdade,
vos ensinará toda a verdade".
Jo. 14
Toda a verdade,
pois, para que removesse o mal e restaurasse o bem.
Eis o que são os
três dias: o dia do temor, que manifesta o mal; o dia da verdade, que remove o
mal; o dia da caridade, que restitui o bem.
O dia da verdade
clarifica o dia do temor; o dia da caridade clarifica o dia do temor e o dia da
verdade; até que a caridade se torne perfeita e toda verdade seja perfeitamente
manifestada e o temor da pena se transforme no temor da reverência.
3. Os três
dias na morte e ressurreição de Cristo.
"Anunciai",
pois,
"dia após dia,
a sua salvação".
Salmo 95
Destes dias falou o
profeta Oséias, ao dizer:
"Vivificar-nos-á
depois de dois dias;
no terceiro dia nos reerguerá".
Os. 6
Ora, todos nós
ouvimos como Nosso Senhor Jesus Cristo, ao ressuscitar no terceiro dia,
vivificou-nos e re-ergueu-nos da morte, e com isto exultamos. Justo é agora que
o recompensemos pelo seu benefício. De uma certa forma já tínhamos ressuscitado
nEle ao ter ressurgido no terceiro dia; resta agora que nós, por causa dele e
por Ele, ressuscitemos também no terceiro dia fazendo com que ele ressuscite em
nós.
Não é de se crer que
não queira ser retribuído naquilo que antes quis nos dar. Assim como ele quis
ter três dias para realizar em si e por si a nossa salvação, assim também nos
concedeu três dias para que realizemos, por meio dele, a nossa salvação.
Aquilo, porém, que se realizou nele não foi apenas remédio, mas também exemplo
e sacramento; foi necessário, pois, que se realizasse externamente e de modo
visível, para que significasse aquilo que em nós deveria realizar-se de modo
invisível. Seus dias foram exteriores; nossos dias devem ser buscados
internamente.
Temos, portanto,
três dias interiores pelos quais nossa alma se ilumina. Ao primeiro dia
pertence a morte; ao segundo, a sepultura; ao terceiro, a ressureição. O
primeiro dia é o temor, o segundo a verdade, o terceiro dia é a caridade.
O dia do temor é o
dia da potência, é o dia do Pai; o dia da verdade é o dia da sabedoria, dia do
Filho; o dia da caridade é o dia da benignidade, dia do Espírito Santo.
O dia do Pai, o dia
do Filho e o dia do Espírito Santo, no resplendor da divindade são um só dia;
mas na iluminação da nossa mente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm como
que dias distintos; não para se crer que a Trindade, inseparável na sua
natureza, possa ser separada em sua operação, mas para que a distinção das
pessoas possa ser compreendida na distinção das obras.
Quando, pois, nosso
coração exulta ao considerar com admiração a onipotência de Deus, é o dia do
Pai. Quando a sabedoria de Deus, examinada pelo conhecimento da verdade,
ilumina nosso coração, é dia do Filho. Quando se nos apresenta a benignidade de
Deus a inflamar o nosso coração, é dia do Espírito Santo.
A potência faz
tremer, a sabedoria ilumina, a benignidade alegra.
No dia da potência
morremos pelo temor. No dia da sabedoria somos sepultados pela contemplação da
verdade da pompa deste mundo. No dia da benignidade ressuscitamos pelo amor e
pelo desejo dos bens eternos.
Foi por isto que
Cristo morreu no sexto dia da semana, no sétimo ficou no sepulcro e ressuscitou
no oitavo. É de modo semelhante que no seu dia a potência nos mata pelo temor
para os fortes desejos da carne; em seguida a sabedoria no seu dia nos sepulta
no esconderijo da contemplação; finalmente, em seu dia a benignidade,
vivificando-nos pelo desejo do amor divino, nos faz ressuscitar; pois o dia
sexto pertence ao trabalho, o sétimo ao repouso, e o oitavo à ressurreição.
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