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O emblema da
Inquisição, rodeada
com a citação da Sagrada
Escritura:
“Levantai-vos, ó Deus, defendei a
vossa causa”
(Sl. 73:22).
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Os alegados horrores da Inquisição geralmente encabeçam a lista dos
argumentos dos inimigos da Igreja. Voltaire falava sobre “aquele tribunal
sanguinário, aquelas exposições pavorosas de poder monacal”[1].
A lenda negra da Inquisição impregnou nossas mentes a um ponto tal que, hoje, a
maioria dos Católicos é incapaz de defender esta fase da história da Igreja. Na
melhor das hipóteses, a justificam invocando os usos e costumes do período, que
seriam muito mais bárbaros do que aqueles da nossa era “iluminada”. Mais
freqüentemente, fazem coro com os anticlericais no ataque ao Tribunal do Santo
Ofício.
Em sua carta sobre o Jubileu do Ano 2000, o próprio Santo Padre denuncia
“Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem
deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência
manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de
intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade. (§35)”[2].
(grifo do documento)
No entanto, os santos que viveram na era da Inquisição nunca a criticaram,
exceto para reclamar que ela não reprimia a heresia com a severidade
suficiente. O Santo Ofício escrutinou os escritos de Santa Teresa d`Ávila para
checar se seria possivelmente o caso de uma falsa mística, porque havia naquela
época muitos falsos místicos entre os Alumbrados[3] da
Espanha. Longe de vê-la como um sistema de intolerância, a Santa depositou toda
sua confiança no julgamento do tribunal, que, de fato, não encontrou qualquer
heresia em seus escritos. Agora, os santos nunca tiveram receio em censurar os
abusos do clero: na verdade esta é uma de suas funções principais. Como alguém
pode explicar o fato de que os santos nada disseram contra a Inquisição? Como
alguém pode explicar que a Igreja tenha canonizado não menos que quatro Grandes
Inquisidores: Pedro Mártir (1252), João Capistrano (1456), Pedro Arbues (1485)
e Pio V (1572)? São Domingos foi, na verdade, um associado do tribunal do
legado da Inquisição.
Na realidade, críticas à Inquisição por autores Católicos só vieram
aparecer a partir do século dezenove, e nesta época apenas entre os católicos
liberais, depois que os ultramontinos (clérigos que criam fortemente e apoiavam
uma política papal mais vigorosa em assuntos eclesiásticos e políticos) estavam
apoiando vigorosamente o tribunal[4].
Antes da Revolução Francesa, o discurso antiinquisitorial era característico dos
Protestantes. O historiador Jean Dumont, que é o maior apologista da Inquisição
na atualidade[5],
aponta que as gravuras do século 16, que ilustram cenas dos autos-de-fé
(geralmente públicos, nos quais aqueles submetidos à Inquisição tinham suas
sentenças pronunciadas) eram, costumeiramente, pintados na empena[6] das
construções.
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Pintura por Fr. Angélico. São Domingos
entregando um livro contendo uma explicação da verdadeira fé para um emissário
dos Albigenses, e, à direita, o miraculoso livro saindo das chamas as quais os
heréticos o tinham relegado.
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Naquela época, este tipo de arquitetura era encontrada nos Países Baixos
e no vale do Reno, mas não na Espanha. Este detalhe revela a origem protestante
dessas gravuras. Com efeito, a lenda negra da Inquisição é produto da
propaganda protestante, que foi passado ao século 18 pela filosofia do
“Iluminismo”, ao século 19 pela maçonaria anticlerical, e ao século 20 pela
“Democracia Cristã”.
Contudo, os estudos históricos mais sérios têm atualmente reconhecido
que a Inquisição foi um tribunal honesto, que desejava converter os heréticos
mais do que puni-los, que condenou relativamente poucas pessoas à fogueira, e que
empregou tortura em casos excepcionais[7].
No entanto, o mito antiinquisitorial ainda circula na opinião pública. Voltaire
disse que uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade. Mas a razão
fundamental para a persistência do mito é de outra natureza. Se trabalhará em
vão para provar que a Inquisição não era tão terrível quanto se quer crer. Não
se convencerá a mente moderna, uma vez que é o princípio da intolerância
religiosa como tal que é inaceitável hoje em dia. (grifo do
autor) Por conseguinte, para se compreender o evento histórico
da Inquisição, deve-se primeiramente entender a doutrina tradicional da Igreja
sobre a liberdade religiosa.
O Poder do Constrangimento Religioso
O Concílio Vaticano II proclamou o princípio de liberdade religiosa:
Esta liberdade consiste em que todos os homens devem estar imunes de
coerção, tanto por parte de indivíduos como de grupos sociais e de qualquer
poder humano, e isto de tal maneira que, em matéria religiosa, nem se obrigue a
ninguém a intentar contra sua consciência, nem se a impeça que atue conforme
ela em privado e em público, só ou associado com outros, (Dignitatis Humanae,
art. 2).
Em oposição a esta doutrina, fica evidente que o próprio princípio da
Inquisição, que fez da heresia um crime sujeito a lei comum, só poderia ser
rejeitado.
No entanto, o princípio de liberdade religiosa está em completa ruptura
com a tradição da Igreja. O Syllabus de Erros (1864) condena (grifo
do autor) as seguintes proposições:
§24) A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder algum
temporal, direto ou indireto.
§77) Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida
como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.
§79) É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder
concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e
pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como
contribua para a propagação da peste do Indiferentismo.
Belarmino e Suarez também defenderam o direito da Igreja de impor a
pena de morte, sob a condição de que a sentença fosse executada pelo poder
secular, isto é, pelo Estado[8].
São Tomás de Aquino apoiou o uso do constrangimento, mesmo o físico, para
combater a heresia. Santo Agostinho apelou à autoridade Imperial (Romana) para
suprimir o cisma donatista pela força. O Antigo Testamento punia com a morte
idólatras e blasfemadores.
O poder de constrangimento em questões religiosas assenta-se sobre o
princípio dos deveres do Estado voltados para a religião autêntica. A lei
divina não se aplica apenas aos indivíduos; ela deve incluir toda a vida
social. O Cardial Ottaviani sumariou as conseqüências desta doutrina[9]:
1) A profissão social, e não meramente privada, da religião das
pessoas; 2) A legislação inspirada pelo conceito pleno de
associação em Cristo; 3) A defesa do patrimônio religioso das
pessoas, contra a todo o assalto que tenha o objetivo de privá-las da
riqueza de sua fé e de sua paz religiosa. (Duties of the Catholic State in Regard to Religion, C. S. sp., p.7.)
Os partidários da liberdade religiosa sempre invocaram a paciência e a
caridade evangélica em oposição a doutrina tradicional da Igreja sobre o dever
de intolerância para com a falsa religião. Esta oposição, no entanto, é
simplesmente um sofisma. Com toda certeza, nosso Senhor Jesus Cristo era
tolerante com o pecador, mas demonstrou uma severidade implacável para com os
heréticos de seu tempo, que eram os fariseus.
Os modernistas evitam citar as
passagens do Evangelho que mostram a firmeza divina. Não é a condenação eterna,
que é a retribuição por não crer (Mc 16,16), uma desgraça muitíssimo mais
pavorosa que a pior punição que um tribunal humano possa impor? São João proíbe
mesmo saudar o herético (II Jo 10). São Paulo miraculosamente cega Bar-Jesus, o
mágico e falso profeta[10].
São Pedro não hesita em condenar mortalmente Ananias e Safira que roubaram a
comunidade (Atos 5, 1-11).
No verdadeiro Evangelho não há nada que se assemelhe a lassidão moral e
doutrinal que os modernistas qualificam como “tolerância” ou como “liberdade de
consciência”. Cristo era paciente e misericordioso com o pecador arrependido,
mas Ele nunca reconheceu qualquer direito ao erro e Ele expôs os obstinados
propagadores de erro a condenação pública. A Inquisição adotou uma atitude com
relação aos heréticos comparável àquela de nosso Senhor.
A argumentação antiinquisitorial assenta-se também sobre uma confusão
entre liberdade de consciência e liberdade religiosa. O ato de fé deve ser livremente
consentido, uma vez que constitui indiscutivelmente um ato de amor para com
Deus. Um amor forçado não pode ser um amor verdadeiro. Esta é a razão porque a
Igreja sempre se opôs a conversão forçada. A famosa imagem de Espinal do monge
espanhol que apresenta um crucifixo para um índio enquanto o conquistador
ameaça-o com sua espada é ainda um outro fruto da propaganda protestante. Se
alguns príncipes ocasionalmente forçaram o batismo de povos conquistados como,
por exemplo, Charlemagne fez na Saxônia (por volta de 780), tal foi feito
contra a vontade da Igreja.
Mas se a Igreja reconhece a liberdade de consciência do indivíduo no
mais íntimo do seu coração, se o indivíduo é livre, correndo perigo
a sua salvação, de recusar a fé, não se segue que ele possa propagar seus erros
e portanto levar outras almas para o inferno (grifo do autor).
Dessa maneira, a Igreja respeita a liberdade de consciência do indivíduo, mas
não a liberdade de expressão de falsas doutrinas.
Contudo, enquanto a Igreja nega em princípio de direito a expressão
pública de falsas religiões, ela, não necessariamente, as persegue na prática.
Com o intuito de evitar um mal maior, como uma guerra civil, a Igreja pode
tolerar as seitas. Isto foi o que Henrique IV fez ao promulgar o Edito de Nantes
(1598) que garantiu uma certa liberdade para os protestantes na França. Mas
esta tolerância não se constituiu um direito. Quando as circunstâncias
políticas permitem, o Estado tem o dever de restabelecer os direitos exclusivos
do Catolicismo, como Luiz XIV fez quando ele revogou o Edito de Nantes em 1685.
Além do mais, o Papa congratulou o “Rei Sol” por ter tomado esta ação.
Naturalmente, a doutrina tradicional Católica sobre a intolerância
religiosa é somente aplicável naqueles países onde o Estado é oficialmente
Católico. A harmonia entre o sacerdócio e o império é a ordem normal das coisas
nas sociedades. Sob este aspecto, a Inquisição era um modelo de acordo entre a
Igreja e o Estado, uma vez que o tribunal exercia uma jurisdição mista, tanto
religiosa quanto civil.
A idéia central que justifica a Inquisição é que a heresia professada em
público é um crime similar ao qualquer outro crime contra a lei comum[11].Sendo
a religião o fundamento da moralidade, e a moralidade sendo o fundamento da
ordem social, segue-se que a falsificação da fé leva, em última instância, a
uma ofensa contra a ordem social. Santo Tomás comparou os heréticos aos
falsários, que, durante a Idade Média, eram condenados a fogueira. Portanto, o
Estado, como guardião da ordem pública, tinha o dever de combater a heresia.
Mas no seu papel de poder temporal, ele não tinha competência para distinguir
entre heresia e ortodoxia. Para isto, o Estado tinha que confiar num tribunal
eclesiástico.
É bom ter em mente, sobretudo, que a Inquisição não se ocupava com as
opiniões pessoais dos heréticos, mas somente com a propagação pública da
heresia. A Inquisição realmente não cometeu qualquer ofensa contra a consciência
individual, mas agiu somente contra as atividades exteriores dos heréticos.
Para se compreender a lógica da Inquisição, deve-se libertar da
mentalidade naturalista peculiar da cultura contemporânea. Nas sociedades
cristãs do “Ancien Régime“, a vida sobrenatural era mais importante que
a natural. Se era permitido condenar a morte um assassino que matava o corpo,
com muito mais razão podia-se condenar a morte o herético que estava levando
almas para o inferno, uma vez que a perda da vida eterna é um mal muito maior
do que a perda da vida temporal.
Obviamente, a visão do mundo que subjaz a lógica da Inquisição
fundamenta-se sobre o princípio da realidade objetiva da verdade e do erro, na
certeza da fé Católica, e na crença na condenação eterna. Essas idéias são
muito simplesmente incapazes de serem assimiladas pelas mentes modernas
encharcadas no relativismo. De fato, um relativista é incapaz de compreender o
fenômeno da Inquisição. Ele se escandalizará pela barbaridade das épocas
passadas e pelo obscurantismo da Igreja; ele se satisfará em fazer julgamentos
inapropriados para as épocas em questão. Mas os historiadores devem tanto
entender como explicar. Para fazê-lo, devem sair dos sistemas de pensamento
atuais e colocarem-se no estado mental da época que se está estudando[12].
O historiador será então capaz de compreender o fenômeno da Inquisição, e isto
o levará quase inevitavelmente, como veremos, a justificar as ações desse
tribunal.
Geralmente, se faz a distinção entre dois tipos de Inquisição. Há a
Inquisição Medieval (1233 – século 18) e a Inquisição Espanhola (1480 – 1834).
Freqüentemente, a primeira é qualificada de Inquisição “pontifícia” e a última
de “real”, mas isso não se justifica, uma vez que estes tribunais sempre foram
criações articuladas da Igreja e do Estado.
Foram alguns autores Católicos que,
embora bem intencionados, eram pobremente informados, que estabeleceram esta
distinção com o intuito de colocar os “horrores” da Inquisição sobre os reis da
Espanha, ao invés de sobre os papas[13].
De acordo com eles, houve uma boa Inquisição Medieval que pretendeu apenas proteger
a fé, e a cruel Inquisição Espanhola que visava mais reforçar o absolutismo
real. Porém, esta distinção não é bem fundamentada. A Inquisição Espanhola não
era nem mais violenta ou mais política que a Inquisição Medieval. As duas
inquisições são melhores distinguidas, uma da outra, pela natureza de seus
inimigos que elas tinham que combater: o Catarismo e os Marranos.
O Perigo Cátaro
O Catarismo se espalhou por toda a Europa entre os séculos 11 e 13. Ele
floresceu particularmente em Languedoc (sul da França, daí o nome albigense –
oriundo da cidade de Albi – pelo qual a heresia também é designada). A palavra
“catar” vem do Grego “katharos” que significa “puro”. Na realidade,
catarismo não é propriamente uma heresia cristã, é mais uma outra religião[14].
Sua origem permanece obscura, mas sua doutrina estranhamente aproxima-se das
filosofias Gnóstica e Maniquéia que circulavam no Oriente Médio durante o
terceiro e o quarto séculos. Observe-se também que a Maçonaria reivindica ser o
herdeiro dos mistérios iniciáticos do Catarismo, por intermédio dos Templários.
De acordo com os Cátaros, dois princípios eternos dividiram o universo.
O bom que criou o mundo dos espíritos, e o mau que criou o mundo material. O
Homem é apenas a junção dois dos princípios. Ele era um anjo caído,
emprisionado em um corpo. Sua alma originou-se no bom princípio, mas o seu
corpo foi formado do mau princípio. O objetivo do Homem era, portanto,
liberar-se da matéria por uma purificação espiritual, que freqüentemente
necessitava de uma série de reincarnações.
Como todos os heréticos, os Cátaros reivindicavam que sua doutrina era o
Cristianismo verdadeiro. Eles guardavam a terminologia cristã enquanto
distorciam a essência dos dogmas. Eles diziam que o Cristo era o mais perfeito
dos anjos e que o Espírito Santo era uma criatura inferior ao Filho. Eles
puseram em oposição o Antigo Testamento, obra do princípio mal, ao Novo
Testamento, obra do bom princípio. Eles negavam a Encarnação, a Paixão e a
Ressurreição de Jesus. Eles defendiam que a Redenção fluía do ensinamento
evangélico mais do que da morte na cruz.
Os Cátaros diziam que a Igreja era corrupta desde o tempo da doação de
Constantino, e rejeitavam todos o sacramentos. Definitivamente, o Catarismo era
uma forma de paganismo, com um toque de cristianismo, que se assemelhava ao
Budismo em certos pontos.
Sendo o mundo material intrinsecamente mal, a ética cátara condenava
todo o contato com a matéria. O casamento e a procriação eram proibidos porque
não se deveria colaborar com o trabalho de Satã, que desejava emprisionar as
almas em seus corpos. Uma vez que a morte constituía-se em uma liberação, o
suicídio era encorajado. Eles empregavam a “endura“, que é a suspensão
da alimentação do doente e mesmo algumas vezes das crianças, para acelerar o
retorno da alma ao céu. Os Cátaros recusavam-se a jurar sob o pretexto que Deus
não deveria ser misturado com os assuntos materiais, e eles condenavam todas as
formas de riquezas.
Finalmente, os Cátaros desejavam manter o estado de “desencarnação”
similar ao dos faquires (ascetas hindus). Ademais, os Cátaros negavam o direito
do Estado de declarar guerra e punir os criminosos.
Obviamente, tal programa não atrairia muitos adeptos, daí o catarismo
ter estabelecido duas classes de fiéis: os “perfeitos” e os crentes simples. Os
primeiros, poucos em números, eram os iniciados, que viviam em monastérios e
que se conformavam inteiramente à filosofia moral cátara. Os segundos, a vasta
maioria, estavam livres de toda a obrigação moral, em questões sexuais e,
também, comerciais.
Os Cátaros não estavam sujeitos às normas cristãs que proibiam a usura,
e que impunham o princípio do preço justo. Alem disto, ao crente simples lhe
era garantida a ida para o céu se, antes de morrer, ele recebesse o “consolamentum“,
uma espécie de extrema unção.
Devassidão, contracepção, aborto, eutanásia, suicídio, capitalismo
brutal, um intenso materialismo e salvação para todos; é estarrecedor perceber
a que grau a moralidade cátara assemelha-se ao liberalismo dos dias atuais.
Os Cátaros, portanto, ensinavam uma moralidade de dois graus: ascetismo
para uma minoria e libertinagem para a maioria, com, além disso, a garantia da
salvação eterna a um baixo custo. Agora se pode compreender o que fez de sua
doutrina ser tão bem sucedida.
No entanto, a vasta maioria das pessoas mantiveram-se fiéis ao
Catolicismo. Os Cátaros eram recrutados essencialmente entre os comerciantes
das cidades. Eles não eram muito numerosos, talvez 5% a 10% da população de
Languedoc, mas eram ricos e poderosos. Alguns deles praticavam a usura. O conde
de Toulouse (França), o mais importante lorde de Languedoc, aderiu à causa dos
Cátaros.
Portanto, os Cátaros não eram um pobre rebanho indefeso, vítimas de uma
Inquisição fanática. Ao contrário, eles formavam uma seita poderosa e arrogante
que propagava uma doutrina imoral, oprimiam os camponeses católicos e
perseguiam os sacerdotes. Eles inclusive conseguiram assassinar o Grande
Inquisidor, São Pedro Mártir (também conhecido como São Pedro de Verona).
A Igreja demonstrou grande paciência antes de tomar medidas contra o
perigo Cátaro. As heresias albigenses foram condenadas pelo Concílio de
Toulouse – de âmbito regional – em 1119, mas, até 1179, Roma ficou satisfeita
com o envio de pregadores a Languedoc, homens como São Bernardo e São Domingos.
Estas missões tiveram pequeno sucesso.
Em 1179, o Terceiro Concílio Lateranense pediu as autoridades civis que
interviessem. O rei da França, o rei da Inglaterra e o Imperador da Alemanha já
haviam iniciado, por iniciativa própria, a supressão do catarismo, que ameaçava
a ordem social devido as suas perversas doutrinas sobre a família e juramentos.
Lembremo-nos que o sistema feudal assentava-se sobre o juramento de um
homem para com o outro. A negação do valor do juramento era tão grave para a
sociedade medieval, como seria a negação da autoridade da lei na sociedade
moderna.
Além disso, os pregadores Cátaros estavam encorajando a anarquia e
comandando bandos armados, que eram chamados por diferentes nomes em diferentes
países (“cotereaux“, “routiers“, “patarins“, etc). Estes
bandos estavam saqueando as igrejas, massacrando os sacerdotes e profanando a
Eucaristia. Os Cátaros eram tão violentos e sacrílegos quanto os protestantes
do século 16 ou os revolucionários de 1793, Em 1177, o rei da França, Filipe
Augusto, teve que exterminar um bando de 7000 destes loucos, e o bispo de
Limoges teve que marchar contra 2000 anarquistas. Cenas idênticas ocorriam na
Alemanha e na Itália. Em 1145, Arnoldo de Brescia e seus “paratins“
conseguiram sitiar Roma e expulsar o papa. Eles proclamaram a república e
mantiveram-se no poder por dez anos antes de serem conquistados e condenados a
fogueira pelo imperador alemão Frederico Barba Ruiva. O catarismo provocou
desordem social por toda a Europa e reinou em Languedoc.
Em 1208, os homens de Raimundo VI, conde de Toulouse, assassinaram o
legado do papa, o monge Pedro de Castelnau. Finalmente, o Papa Inocêncio III
decidiu chamar a Cruzada Albigense. Ela foi dirigida por franceses do norte sob
o comando de Simon de Montfort. Os Cátaros resistiram por quatro anos (1209 –
1213) e levantaram armas novamente em 1221, o que mostra como eles eram fortes.
O seu último reduto fortificado, Montségur, não caiu até 1244. Porém, com tudo
isso, o catarismo não desapareceu. Transformou-se em uma sociedade secreta, um
pouco ao jeito da Maçonaria.
Como em todas as guerras, a Cruzada Albigense foi ocasião de excessos. A
tomada de Béziers (1209) foi um verdadeiro massacre. Foi impossível distinguir
os Cátaros dos Católicos entre a população da cidade. O legado pontifício,
Arnoldo de Citeaux, teria dito: “Matem a todos, Deus reconhecerá os Seus.”. As
palavras provavelmente são apócrifas e podem ser registradas nas panóplias de
chavões anticlericais. Porém, elas refletem mesmo assim, um fato indubitável:
os Cátaros, que atraíram sobre si, por um longo tempo, o ódio das pessoas por
conta de sua imoralidade e prática de usura, corriam o risco de um linchamento
geral.
Porém, a Inquisição evitou o massacre distinguindo entre os heréticos e
os ortodoxos, entre os líderes e os seguidores, e aplicando punições
proporcionais aos diversos graus de heresia.
Por fim, a Inquisição era um trabalho humanitário. Ao punir severamente
os líderes, ela poupou a massa dos Cátaros, que eram mais vítimas do que
responsáveis pela heresia. Ao por às claras os heréticos que se tornaram um
movimento secreto, ela impediu o renascimento do catarismo e de todas as
desordens sociais e morais que esta doutrina provocava.
Um historiador, embora hostil à Inquisição, não hesitou em concluir que,
na Cruzada Albigense:
“… a causa da ortodoxia [Católica] não era outra que não da civilização
e do progresso… se esta crença [catarismo] tivesse recrutado uma maioria de
fiéis, resultaria no retorno da Europa para a selvageria dos tempos
primitivos.”.” [15]
O Perigo Marrano
Agora, pulemos alguns séculos a frente e cruzemos os Pirineus (montanhas
que marcam a fronteira entre a França e a Espanha) com o objetivo de estudar
outra ameaça que a Inquisição conseguiu opor-se: o perigo Marrano.
A Espanha Medieval era dividida em vários reinos, Cristãos e Muçulmanos.
Em 1469, o casamento de Isabela, rainha de Castela, com Fernão, rei de Aragão,
facilitou a união da Espanha e permitiu que a “Reconquista” fosse completada
pela tomada de Granada em 1492.
Também existia na Espanha, desde o começo da Idade Média, uma comunidade
judaica considerável. As sociedades cristã, judaica e muçulmana não estavam
divididas, muito embora suas relações nem sempre fossem harmoniosas. Um grande
número de judeus tinha se convertido ao Catolicismo, mas continuavam a praticar
o judaísmo em segredo.
Lembremo-nos que o Talmud permite aos judeus fingirem uma conversão com
o intuito de evitar a perseguição. Estes pseudocristãos judeus eram chamados de
‘Marranos’.
Ao contrário do que se tem sido levado a acreditar, os Marranos não
tinham se convertido sob ameaça, muito embora a Espanha tenha experimentado uma
onda de progroms em 1391. Os Marranos estavam procurando se
infiltrar na sociedade cristã com o objetivo de controlá-la. Suas estratégias
de alianças matrimoniais foram muito eficazes, uma vez que por volta do século
16, a maioria das famílias nobres da Espanha contava com alguns judeus entre
seus antepassados. Cervantes fez alusão a este fenômeno de ascensão social.
Sancho Pança diz a Dom Quixote: “Eu sou um dos ‘cristãos-velhos’ e, para
tornar-me um conde, isto é suficiente…”. Dom Quixote responde: “Isto é
realmente excessivo.”[16].
Isabela de Castela esta a ponto de se casar com um rico agiota marrano
de nome Pedro Giron, mas Deus não permitiu. O shylock[17] castelhano
morreu na estrada que o levava para sua noiva, após ter recusado os sacramentos
e blasfemado contra o Santo Nome de Jesus.
Os Marranos não satisfeitos em se infiltrar na nobreza espanhola, eles
também se infiltraram na Igreja. Naquela época, fazer uma coisa era o mesmo que
fazer a outra, uma vez que os postos mais altos do clero geralmente eram
oriundos da nobreza. Alguns padres marranos até ensinavam o Talmud em suas
igrejas. O bispo de Segóvia, Juan Arias de Ávila, deu um enterro judaico aos
seus pais que abjuraram o cristianismo. O bispo de Calahorra, Pedro d’Aranda,
negou a Trindade e a Paixão de Cristo. A Enciclopédia Judaica Castelhana afirma
que os Marranos “instintivamente almejavam debilitar o Catolicismo espanhol”.
Na sua Histoire des Marranes (1959), o especialista
judeu Cecil Roth escreve:
“A vasta maioria dos “conversos” (um outro nome para os Marranos)
trabalhavam insidiosamente por seus próprios interesses dentre os diferentes
ramos do corpo político e eclesiástico, condenavam, por muitas vezes
abertamente, a doutrina da Igreja, e contaminavam, por sua influência, o corpo
inteiro dos fiéis.”
A judaização do catolicismo espanhol sob a influência dos Marranos
explica em parte a popularidade de Erasmo, o precursor de Lutero, naquele país.
Em Roma, temia-se seriamente a emergência de um reino judaico na Espanha[18].
Um segundo problema sobrepôs-se ao problema religioso. Os Marranos
tinham comprado por dinheiro os escritórios públicos de várias cidades
espanholas, colocando os cristãos-velhos sob o peso de taxas e da usura.
Aconteceram algumas revoltas populares contra o poder Marrano em Toledo e na
Cidade Real em 1449. Os Marranos reconquistaram o controle sobre estas cidades
em 1467 e massacraram um grande número de cristãos-velhos. Houve banhos de
sangue em Castela (1468) e na Andaluzia (1473). A Espanha estava, então, no
limiar de uma guerra civil racial e religiosa. Esta guerra, que teria sido
aterradora, foi evitada, graças a Inquisição.
Observe-se que os conversos judeus não eram sempre Marranos. Muitos
dentre eles eram sinceramente Católicos. Pense em Santa Tereza d’ Ávila que era
neta de um Marrano que, além disso, tinha sido condenado pela inquisição.
Na realidade, os judeus verdadeiramente convertidos eram os maiores
inimigos dos Marranos. O ex-rabino Salomão Halevi tornou-se bispo de Burgos sob
o nome de Pablo de Santa Maria, e Jehoshua Há-Lorqui, tornou-se o Irmão
Jerônimo da Santa Fé, escreveu violentos trabalhos contra o judaísmo.
O historiador Henry Kamen observa que os principais polemistas
antijudaicos eram eles mesmos ex-judeus. Foram eles que clamaram por um
tribunal da Inquisição para distinguir entre os falsos judeus cristãos
convertidos e os novos cristãos sinceros. O primeiro Grande Inquisidor, Tomás
de Torquemada, era ele mesmo um judeu convertido. Ademais, deve ser observado
que muitos Marranos judaizaram simplesmente por meio da tradição familiar ou da
má interpretação da fé Católica. A Inquisição, portanto, tinha que estabelecer
uma outra distinção entre os Marranos que voluntariamente alteravam a
integridade da fé, daqueles que eram vítimas de uma catequização insuficiente.
A Inquisição Espanhola foi instituída por uma Bula Papal de 1478. A ação
deste tribunal protegeu a integridade doutrinal da Igreja Espanhola ao mesmo
tempo evitando um progrom generalizado. Face ao perigo dos
Marranos, como antes no perigo Cátaro, a Inquisição almejou neutralizar os
líderes da heresia com o intuito de poupar e reaver a maioria dos heréticos.
O Procedimento Inquisitorial
O procedimento inquisitorial variava de acordo com o país e com as
épocas, mas um perfil básico torna-se claro. De maneira geral, pode-se dizer
que a Inquisição deixava ao herético toda a chance de desembaraçar-se. E apenas
punia os “irreducibles”, aqueles que eram pertinazes na sua rejeição da Fé. A
Inquisição tinha por objetivo educar tanto quanto coibir. Sua ação algumas
vezes, era mais de um trabalho de erradicação popular de superstições do que de
lutar contra subversões. O procedimento judicial era sempre acompanhado por
pregações solenes.
Quando o tribunal da Inquisição chegava numa cidade, ela proclamava um
tempo de graça de cerca de um mês, no curso do qual os heréticos poderiam por
sua própria vontade confessar seus erros com a certeza de que seria submetido a
penitências espirituais leves e secretas.
Depois desta protelação, os inquisidores publicavam o edito da fé que
ordenava a todos os cristãos, sob pena de excomunhão, denunciar os heréticos e
aqueles que os protegiam. A Inquisição não tinham sob o seu comando uma polícia
secreta ou uma rede de espiões. Ela contava com a colaboração do povo católico,
agindo nesta forma mais como um guardião do consenso social do que um aparato
opressivo do Estado.
A Inquisição Católica não se assemelhava às inquisições totalitárias do
século XX. Ela não intencionava encontrar traidores a qualquer preço
(“contra-revolucionários” ou “colaboradores”). Ela somente almejava os
propagadores públicos da heresia, e acima de tudo os líderes. A Inquisição não
se preocupava com a consciência dos heréticos, mas apenas com suas ações
exteriores.
O papa confiou a Inquisição Medieval aos Dominicanos e aos Franciscanos.
Esta duas recém fundadas ordens davam sérias garantias de probidade e santidade.
O conhecimento teológico e canônico dos inquisidores era notável. Na verdade, a
Inquisição era confiada as mais finas flores do clero daquela época.
Diferentemente dos tribunais revolucionários de 1793, os tribunais da
Inquisição nunca eram presididos por fanáticos corruptos e devassos.
O Inquisidor não administrava seu julgamento sozinho. Ele era assistido
por alguns assessore (juizes assistentes), selecionados entre o clero local. A
Inquisição era, neste sentido, o primórdio da instituição do sistema de
jurados. Além disso, o bispo ajustava as sentenças, e o acusado podia apelar ao
papa. Portanto, o procedimento inquisitorial era adequado, mesmo para os
padrões do nosso moderno critério de justiça.
Contrariamente do que tem sido
dito, a Inquisição freqüentemente absolvia. Bernard Gui exerceu com severidade
as funções de inquisidor em Toulouse de 1308 a 1323. Ele pronunciou 930
julgamentos, dos quais 139 eram absolvições.
O acusado podia defender-se e mesmo ter o recurso de um advogado, embora
ele nem sempre pudesse escutar o testemunho de seus acusadores. Historiadores
têm condenado severamente a natureza secreta dos procedimentos inquisitorial.
Mas devemos colocar as coisas no seu devido contexto. Os heréticos que a
Inquisição estava ao encalço eram ricos e poderosos. Eles por vezes tinham
homens armados sob seus comandos. Não raro, testemunhas de acusação e mesmo
inquisidores tinham sido assassinados. Para testemunhar contra os líderes dos
Cátaros ou dos Marranos poderia ser tão perigoso quanto testemunhar hoje contra
os chefes da máfia. Em 1485, o Grande Inquisidor Espanhol, Pedro Arbues, foi
esfaqueado no santo altar por sicários pagos pelos Marranos. Esta é razão pela
qual a Inquisição protegia o anonimato de algumas testemunhas. Ela só poderia
recorrer ao inquérito secreto em casos de necessidade. Todavia o acusado gozava
semelhantemente de algumas garantias. Assim, no início do processo, ele poderia
apresentar uma lista de seus inimigos pessoais, e, se a testemunha anônima
fosse encontrada nesta lista, seu testemunho era automaticamente rejeitado.
Além disso, o testemunho do acusador secreto era dado na presença do advogado
do acusado. Naquela época, o advogado era apontado pelo tribunal, para ter a
certeza de que ele não revelaria a identidade da testemunha; porém ele cumpria
sua tarefa não menos conscienciosamente. Vários juristas espanhóis
distinguiam-se entre si pela qualidade de suas apelações de defesa ante os
tribunais da Inquisição.
Observe-se que o princípio da denúncia anônima não é, em si mesma, um
procedimento tão injusto quanto possa parecer. Hoje em dia, na província de
Quebec, a “lei para a Proteção das Crianças” permite denúncias anônimas.
A outra grande objeção que é feita sobre a Inquisição é do seu uso de
tortura durante as interrogações. Mais uma vez, é necessário colocar as coisas
no seu próprio contexto. A interrogação inquisitorial não guarda qualquer
semelhança com as torturas sádicas da Gestapo ou da KGB. Era relativamente
amena se comparada aos tormentos que as cortes da lei comum impunham aos
criminosos naquela época. Três métodos eram empregados:
1) A Guarrucha era uma roldana que trabalhava com uma
corda atada aos pulsos do acusado. Por meio dela, ele era erguido a uma certa
altura, e então brutalmente solto de uma vez ou numa série sucessiva de
solavancos, que infligia uma intensa dor aos ombros.
2) O Potro era um cavalete com pregos, que o supliciado
era preso por cordas. O torturador, ao apertar as cordas, gradualmente forçava
os pregos na carne do acusado.
3) A Toca era um funil de tecido que permitia verter a
água de um grande jarro para dentro do estômago do acusado, ao ponto de
sufocamento.
O procedimento inquisitorial regulava criteriosamente as práticas da
interrogação. Para que um acusado fosse submetido a tortura, ele tinha que ser
processado por conta de um crime muito grave, e o tribunal tinha que já ter uma
séria presunção de sua culpa. O bispo local tinha que dar sua autorização, que
protegia o acusado do zelo abusivo de um ocasional inquisidor mal-afamado. O interrogatório
não podia ser repetido. As instruções também estipulavam a presença de um
representante do bispo e de um médico durante a sessão de tortura, a proibição
de colocar em perigo de morte ou de mutilação, e a obrigação do médico em
administrar os cuidados médicos imediatamente após. O doente, o idoso, a mulher
grávida estavam isentos de interrogatório sob tortura. Ademais, a tortura era
raramente empregada: de 1% a 2% dos processos de acordo com Dumont, de 7% a 11%
de acordo com Bartolomé Bennassar.
É surpreende aprender que a maioria daqueles acusados resistiam a
tortura e eram, em conseqüência, absolvidos. Se o objetivo do torturador era,
como se pode pensar, obter admissão de culpa a qualquer custo, deve-se admitir
que se está no caminho errado. Devemos nos perguntar se o questionamento sob
tortura não era mais que um último meio de defesa oferecida ao acusado, um tipo
de teste judicial comparável ao “ordálio” da Idade Média. Esta é, em minha
opinião, uma hipótese que deve ser abordada mais atentamente.
O ordálio, ou “julgamento de Deus”, era um teste judiciário de uso comum
até o ano 1000. O acusado provava suas declarações ante o tribunal pelo
julgamento do fogo, ou da água ou da espada. No primeiro caso, ele segurava nas
suas mãos um carvão em brasa; se suas feridas fossem curadas dentro de um certo
período de tempo, o tribunal concluía que seu testemunho tinha sido verdadeiro.
No segundo caso, o acusado era amarrado e jogado dentro de um grande barril de
água; se flutuasse, o que seria a tendência normal por causa do ar nos pulmões,
o tribunal concluiria que ele teria contado a verdade. Por último, o julgamento
pela espada colocava dois cavaleiros em oposição representando dois testemunhos
contraditórios; a vitória indicava onde a verdade deveria ser encontrada. A
Igreja sempre se contrapôs ao ordálio, que era um procedimento supersticioso e
originário de uma antiga lei pagã alemã.
O uso da tortura como um meio de prova é chocante para a mentalidade
moderna, mas já era um avanço se comparado ao ordálio. Não se deve esquecer que
a tortura era, naquela época, empregada com muito mais freqüência em
procedimentos criminais. Além do mais, o Grande Inquisidor, São João
Capistrano, proibia o uso de tortura em procedimentos inquisitoriais no século
15, mais de 300 anos antes, o rei Luiz XVI fez o mesmo nos tribunais criminais
da França (embora a Inquisição Espanhola tenha restabelecido o seu uso neste
ínterim.).
Seja como for, e a despeito do uso de tortura, o procedimento
inquisitorial marca um avanço na história do direito. Se por um lado, a
procedimento inquisitorial descarta o ordálio como meio de prova,
substituindo-o pelo princípio da prova testemunhal, que ainda governa o direito
moderno até hoje, por outro lado, estabeleceu o princípio do Estado como promotor
público. Até aquela época, era a vítima que tinha que provar a culpa, mesmo no
procedimento criminal, e isto freqüentemente era difícil quando a vítima era
fraca e o criminoso poderoso. Mas com a Inquisição, a vítima não é mais do que
uma simples testemunha, como nos procedimentos criminais de hoje. Era a
autoridade eclesial que tinha o ônus da prova.
O número de heréticos queimados pela Inquisição tem sido grandemente
exagerado. Juan Antonio Llorente é o autor destes números imaginários, que
muitos estudos sobre o assunto ainda citam[19].
Llorente era um sacerdote apóstata que se colocou a serviço da ocupação
napoleônica na Espanha. Depois de ter caluniado a Inquisição, destruiu os
arquivos que poderiam lhe contradizer. Vários historiadores ainda passam
adiante números inflados baseados sobre imaginação anticlerical[20].
Não obstante, números desta ordem têm sido rejeitados desde 1900 por Ernest
Schafer e Afonso Junco. De algum tempo para cá, historiadores honestos estão de
acordo em dizer que o número de vítimas da Inquisição Espanhola foi bem menor
do que geralmente se tem acreditado[21].
Jean Cumont fala de cerca de 400 vítimas durante os 24 anos do reinado de
Isabela, a Católica. É pouco, realmente, se comparado às 100.000 vítimas do
expurgo dos “colaboradores” na França de 1944-45, ou das dezenas de milhões
mortos feitos pelos comunistas na Rússia, China e em outros lugares.
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Mapa mostrando os distritos da Inquisição Espanhola, os centros
dos tribunais e as datas quando eles foram estabelecidos.
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Note-se também que aqueles condenados a morte nem sempre eram
executados. Suas sentenças eram algumas vezes comutadas para tempo de prisão, e
eles eram então queimados em efígies. Ademais, os condenados não eram
necessariamente queimados vivos. Se eles mostrassem algum arrependimento, eles
eram sufocados antes de serem jogados na pira. Lembre-se também que apenas os
reincidentes, ou seja, aqueles que recuavam para heresia depois de ter
abjurado-a, que eram condenados a morte.
Algumas pessoas ficam espantadas que a Igreja, que em outro lugar pede
que perdoemos nossos inimigos, possa ter sido capaz de impor a pena de morte.
Observemos, o princípio, que o dever da autoridade pública não é a mesma que do
a do fiel. O dever de caridade obriga o indivíduo a perdoar, perdoar mesmo o
criminoso que tenha assassinado o ente mais querido. Mas o primeiro
dever de caridade do Estado é proteger a ordem pública, defender o bem estar
físico e espiritual de seus indivíduos (grifo do autor). Se
a pena capital for necessária para assegurar a segurança pública, o Estado ou a
Igreja poderá recorrer a ela. OCatecismo do Concílio de Trento (capítulo
33, §1) e o Catecismo da Igreja Católica publicado por João
Paulo II (art. 2266) reconhecem a legitimidade da pena de morte.
Santo Tomás de Aquino justificou a execução de criminosos ao observar
que o medo da morte geralmente facilita a conversão deles. De fato, capelães de
penitenciárias podem testemunhar o fato que durante a época em que ainda a
forca existia como uma punição no Canadá, era raro ver um condenado subir ao
cadafalso sem se ter confessado com um sacerdote. Portanto, a punição temporal
da morte permite ao criminoso evitar a morte eterna que é o inferno. Desta
forma, o Estado estava praticando a caridade verdadeira. Restituir-lhe a
liberdade, como é feito hoje a pretexto de perdão, é dar ao criminoso a ocasião
de reincidir no pecado e perder sua alma.
De qualquer maneira, a pena de morte constitui menos de 1% das sentenças
pronunciadas pela Inquisição. Na maioria das vezes, os heréticos eram
condenados a usar uma cruz em suas vestimentas, fazer peregrinação, servir na
Terra Santa ou submeter-se à flagelação, muitas vezes, meramente simbólicas.
Algumas vezes o tribunal confiscava seus bens ou os aprisionavam. As prisões
inquisitoriais não eram tão terríveis como se tem sustentado. Elas deviam até
ter sido bem mais confortáveis do que as prisões comuns, uma vez que alguns
criminosos admitiam a heresia com o intuito de se transferir para elas. Além do
mais, os heréticos se beneficiavam de anistias. Em 1495, a Rainha Isabel
proclamou um perdão geral para todos aqueles que a Inquisição condenara.
A verdadeira história da Inquisição não corresponde de forma alguma a
legenda negra que é espalhada pelos inimigos da Igreja. Bartolomé Bennassar,
que não é nenhum apologista do Santo Ofício, escreveu em L’Inquisition
espagnole, Xve -XIXe siècle, (1979):
“Se a Inquisição Espanhola fosse tida como um tribunal semelhante
a outros tribunais, eu não hesitaria em concluir, sem medo de contradição
e a despeito de idéias preconcebidas, que ela era superior a eles… Mais
eficiente, não há nenhuma dúvida; mas também mais preciso e mais escrupuloso, a
despeito da fraqueza de um certo número de juizes que podem ter sido
orgulhosos, avarentos e devassos. Uma justiça que pratica um exame muito atento
dos testemunhos, que realiza uma checagem cruzada meticulosa deles, que aceita
sem hesitação as impugnações do réu de testemunhas suspeitas (e freqüentemente
pela mais leve razão), uma justiça que raramente emprega a tortura e que, ao
contrário de certas cortes civis de justiça, e que, depois de um quarto de
século de severidades atrozes, raramente condena a pena capital e apenas, muito
prudentemente, administra a terrível punição das galés. Uma justiça ansiosa
para educar, explicar ao acusado porque ele está em erro, que repreende e
aconselha, e de quem a última condenação apenas afeta o reincidente.”.
“… (mas) a Inquisição não pode ser considerada como um tribunal similar
aos outros. A Inquisição não pode ser acusada proteger pessoas e propriedades
das várias agressões que por ventura pudessem ter sofrido. Ela foi criada para
proibir uma crença e um Culto..”.[22]
Agora estamos no coração da questão. Enquanto historiador honesto e
competente, Bennassar só pode rejeitar as calúnias que têm circulado há séculos
sobre a questão da Inquisição. Porém, como um liberal e relativista, não pode
aceitar o princípio que estava na base desta instituição, que é o poder do
constrangimento religioso.
Afinal de contas, a única coisa que os liberais podem ainda censurar a
Inquisição é por ter lutado contra as falsas religiões. O que é bastante
normal, uma vez que os liberais não acreditam que a Igreja Católica é o único
caminho para a salvação. Eles não conseguem compreender a finalidade
sobrenatural da Inquisição.
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Um penitente sanbenito usando uma peça de roupa
penitencial da Inquisição
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Contudo, aqueles que têm Fé devem exprimir um julgamento positivo sobre
a Inquisição. Ao expurgar a influência marrano da Igreja Católica na Espanha, o
Santo Ofício salvou a Espanha do protestantismo e a poupou dos horrores de uma
guerra religiosa similar àquelas que devastaram grande parte da Europa no
século 16. Lembremo-nos que um terço da população alemã pereceu durante as
numerosas guerras que tiveram lugar entre 1520 e 1648. Se levar a fogueira
algumas centenas de heréticos permitiu que a Espanha ficasse livre de um conflito tal como aquele, deve-se concluir que o
Santo Ofício executou um ato humanitário.
Ademais, a Inquisição não salvou apenas a Espanha, mas a Igreja inteira.
No século 16, o mundo Católico estava à beira da ruína, veementemente atacado pela
revolução protestante no norte e pela expansão dos Turcos Otomanos no leste. A
França, imersa numa guerra civil, não podia mais proteger a Igreja. Foi a
Espanha que salvou a Igreja, mais particularmente por época da batalha de
Lepanto em 1571.
No nível interior, a Contra-Reforma foi um trabalho espanhol; e se o
catolicismo espanhol foi capaz de desempenhar um papel benéfico no século 16,
foi porque a Inquisição tinha defendido sua integridade doutrinal no século 15.
Hoje, a Igreja e a sociedade talvez não estivessem na condição lamentável se
tivesse existido nos séculos 19 e 20, uma Inquisição para proteger-nos das
heresias modernas.
Certamente não se deve propor o restabelecimento da Inquisição. Agora é
muito tarde. A Inquisição só pode ser efetiva numa sociedade que já seja
profundamente cristã. Hoje a Igreja está no estágio da Reconquista.
Mas se não há ocasião para restaurar a Inquisição, deve-se, certamente,
reabilitá-la aos olhos da história. Com toda a devida reverência àqueles que
adoram ver a Igreja desacreditada, os Católicos não tem nada para se sentir
envergonhados do trabalho no passado deste santo tribunal.
__________
* Jean-Claude
Dupuis é um historiador que atualmente trabalha no seu PhD em História na
Universidade Laval de Quebec, Canadá. Ele é contratado com professor da escola
“Escola da Sagrada Família” da Sociedade Pio X em Quebec.
[1] Voltaire,
“Inquisition”, Dictionaire philosophique, dans Oeuvres complètes, t.
VII, Paris, Ed. Th. Desoer, 1818, pp. 1309-1319.
[2] Jean-Paul
II, Tertio Millennio Advenient, Montréal, Ed. Médiaspaul, 1994, & 35, p. 43.
[3] Uma
seita do período, também denominado “illuminati”.
[4] De
Maitre, Joseph, “Lettres à um gentilhomme sur l’Inquisition espagnole“,
Oeuvres complètes, t. VII, Brussels, Éd. Société Nationale, 1838, pp. 283-391);
Morel, Jules, “Lettres à M. Louis Veuillot sur l’Inquisition moderne
d’Espagne“, Incartades libérates de quelques auteurs catholiques, Paris,
Éd. Victo Palmé, 1869, pp. 31-241.
[5] Dumont,
Jean, L’Église au risque de l’Histoire, Limoges, Éd. Critérion,
1984, pp. 171-231, e pp. 343-423; L’incomparable Isabelle Catholique,
Paris, Éd. Critérion, 1992, pp.79-110.
[6] N.
T. : Parte superior duma parede, nos telhados de duas águas, com a forma de
triângulo isósceles; oitão, frontão, cumeeira.
[7] Testat,
Guy et Jean, L’Inquisition, Paris, Éd. PUF, collection “Que sais-je?“,
1966, p.126; Guiraud, Jean, L’Inquisition médiévale, Paris,
Librairie Jules Tallandier, 1978, 238 pp.;Bennassar, Bartolomé, L’Inquisition
espagnole, Xve-XIXe siècles, Paris, Éd. Hachette, 1979, 309pp.
[8] Choupin,
L., “Hérésie“, Dictionnaire apologétique de la foi catholique, t. II,
1911, pp. 442-457.
[9] Ottaviani,
Alfredo, L’Église et la Cité, Rome, Imprimerie poliglotte vaticane,
1963, 309 pp.
[10] Veja
Atos 13, 8-12.
[11] Giraud,
Jean, “Inquisition“, DARC, t. II, 1911, col, 824-890; Vacandar, E.,
“Inquisition”, DTC, t. VII, col. 2016-2068.
[12] O
historiador Católicos vai além: ele julga os fatos à luz dos princípios
Católicos. Sob esta questão, veja Dom Guéranger, “Le Sens Chrétien de
l’histoire” (Le sel de la terre, 22, p. 176).
[13] Por
exemplo, Hefelé, Le Cardinal Ximenès, Paris, Librairie
Poussielgue-Rusand, 1856, 588 pp.
[14] Vernet,
F., “Albigeois et Cathares“, Dictionnaire de théologie catholique, t. I,
pp. 1987-1999.
[15] Léa,
Henri-Charles, Histoire de L’Inquisition au Moyen Age, Paris, Éd.
Jérôme Millon, 1986, 3 vols.
[16] Cervantes, Dom
Quixote, Livro I, cap. 21.
[17] Shylock:
um judeu usurário na comédia de Shakespeare ‘O Mercador de Veneza’.
[18] Roch,
Cecil, Histoire des Marranes, Paris, Éd. Liana Lévi, 1990.
[19] Llorente,
Juan Antonio, Historia critica de la Inquisicion em España, Madrid,
Éd. Hiperion, 1981, (1ª edição, 1822) 4 vols
[20] Por
exemplo, entre os historiadores contemporâneos, Pierre Dominique assegura que a
Inquisição Espanhola condenou 178.382 pessoas, das quais 16.376 foram queimadas
vivas. [L'Inquisition. Paris, Ed. Perrin, 1969]; Henry Kamen aumenta
este número para 341.021 o número de condenações, das quais 31.912 foram
queimadas [Histoire de l'Inquisition espagnole, Paris, Éd. Albin Michel,
1966]. Vale observar que Kamen revisou estes números para baixo em uma edição
posterior de seu livro (1966, pp. 298-299).
[21] Junco,
Alfonso, Inquisicion sobre la inquisicion em Europa, México,
Editorail Jus, 1959, pp.37-51
[22] Bennassar,
Bartolomé, L’Inquisicion Espagnola, Xve-XIXe siècle, Paris, Éd.
Hachett, 1979, pp.389-390.
Fonte: http://omniverbo.wordpress.com/2009/09/25/santainquisicao/
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