Do
livro “A Coisa”, publicado em 1929
Gilbert Keith Chesterton
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Nota: Este é aparentemente um texto de crítica literária, mas nas mãos
de Chesterton ele se transforma num texto da mais refinada apologética
católica. O autor identifica, agrupa e disseca um grupo poderoso e moderno de
inimigos da Igreja. Ele mostra como este grupo, constituído dos intelectuais
mais influentes, são hereges como o foram os protestantes do século XVI e os
revolucionários do século XVIII. Mostra que a forma com que agem os hereges modernos
é a mesma de seus “protótipos”, como Chesterton denomina os seus antepassados
e, para terminar, ele nos brinda com a sua versão do dogma católico “Extra Ecclesiam
nulla salus”.
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Acabo de ler o livro “A Crítica Americana”, do Sr. Norman Foerster;
espero que não seja desrespeito ao livro como um todo, que é uma série de
detalhados estudos sobre pensadores americanos, se digo que sua parte principal
se encontra no último capítulo; que propõe certo problema ou desafio ao
pensamento moderno. O problema é se o que ele chama de humanismo pode
satisfazer a humanidade. De seus outros tópicos seria fácil falar para sempre.
Ele geralmente diz a coisa certa; ele às vezes diz a última palavra, naquele
estilo sugestivo e provocativo que induz alguém a dizer uma palavra a mais. Em
minha própria opinião sobre os autores por ele analisados, Whitman seria muito
maior e Lowell muito menor. Sobre Emerson, ele parece sensível e justo; e
Emerson certamente tinha distinção; mas justamente aquele tipo de árida
distinção em relação a qual sempre temi ser injusto. Um puritano tentou ser
pagão; e conseguiu ser um pagão que hesitava sobre se devia ir ver uma garota
dançando. Todas estas questões são estimulantes, mas secundárias em relação à questão
que tomarei a liberdade de abordar separadamente, e de tentar responder
seriamente. Temo que respondê-la seriamente deva significar respondê-la
pessoalmente. A questão é realmente se o humanismo pode desempenhar todas as
funções da religião; e não posso evitar considerá-la em relação à minha própria
religião. É justo dizer que o humanismo é muito diferente do humanitarismo. Seu
significado, como explicado aqui, é o seguinte. A ciência e a organização
modernas são, em certo sentido, excessivamente naturais. Elas nos arrebanham
como animais selvagens, segundo a característica de hereditariedade e o destino
tribal; elas prendem o homem à terra como uma planta, em vez de libertá-lo como
um pássaro, para não dizer como um anjo. De fato, sua mais recente psicologia é
mais inferior que o nível da vida. O que é subconsciente é sub-humano e,
supostamente, subterrâneo: ou algo menos que terrestre. Esta luta pela cultura
é, acima de tudo, uma luta pela consciência: o que alguns chamariam
auto-consciência; mas, de qualquer forma, contra a mera subconsciência.
Precisamos de uma reunião de coisas realmente HUMANAS; vontade que seja moral,
memória que seja tradição, cultura que seja a frugalidade de nossos pais.
Todavia, minha primeira obrigação é responder à questão a mim colocada; e eu a
devo responder negativamente.
Não creio que o humanismo possa ser um substituto completo do
super-humanismo. Não o creio por causa de certa verdade, tão concreta para mim,
que pode ser considerada um fato. Sei que isso soa como algo que é comumente
dito em apologética convencional e superficial. Mas não o afirmo naquele
sentido vago; longe de herdá-lo como uma convenção, com ele colidi muito
recentemente como com uma descoberta. Eu o percebi relativamente tarde na vida,
e percebi que ele é realmente toda a história moral de meu próprio tempo. Mas
mesmo há poucos anos, quando grande parte de minhas idéias morais e religiosas
estavam muito bem consolidadas, eu não o via tão aguda e claramente como o vejo
agora.
O fato é este: que o mundo moderno, com todos os seus movimentos
modernos, está vivendo do seu capital católico. Está usando, e esgotando, as
verdades que permanecem do antigo tesouro da cristandade, incluindo, claro,
muitas verdades conhecidas da antiguidade pagã, mas cristalizadas na
cristandade. Mas o mundo moderno NÃO está realmente inaugurando suas próprias
devoções. A novidade é uma questão de nomes e rótulos, como a propaganda
moderna; de quase todas as formas, a novidade é simplesmente negativa. Não está
iniciando coisas novas que ele [o mundo moderno] possa conduzir muito longe no
futuro. Ao contrário, está tomando coisas antigas que não pode conduzir em
absoluto. Pois estas são as duas marcas dos ideais morais modernos. A primeira,
que eles são tomados de empréstimo ou arrebatados de mãos antigas ou medievais.
A segunda, que ele definha muito rapidamente em mãos modernas. Esta é, muito
brevemente, a tese que defendo; e acontece que o livro “A Crítica Americana”
quase poderia ter sido escrito para servir de livro-texto para provar minha
opinião.
Começarei com um exemplo particular do qual o livro também trata. Toda a
minha juventude foi preenchida, como com uma aurora, com o ardente brilho de
Walt Whitman. Ele parecia-me algo como uma montanha transformada num gigante,
ou como Adão, o Primeiro Homem. Tremia só de ouvir de alguém que ouvira de
alguém que o tivesse visto na rua; era como se Cristo ainda vivesse. Não tomava
conhecimento se sua poesia sem métrica era ou não uma sábia forma, do mesmo
modo que pouco me importava se o Evangelho de Jesus fora rabiscado no
pergaminho ou na pedra. Nunca tive a menor idéia do mal que alguns inimigos o
atribuíam; se estivesse lá, não estava lá para mim. O que eu saudava era uma
nova igualdade, que não era um tedioso nivelamento, mas uma entusiástica
elevação; uma clamorosa exaltação pelo simples fato de que os homens eram
homens. Homens reais eram maiores que deuses irreais; e cada qual permanecia
tão místico e majestoso como um deus, enquanto ele se tornava tão franco e
reconfortante como um camarada. A idéia pode ser expressada compactamente por
uma das próprias frases de Whitman; ele diz, em algum lugar, que artistas
antigos pintavam multidões em que uma cabeça tinha um halo de luz dourada; “mas
eu pinto centenas de cabeças, mas não pinto uma cabeça sequer sem seu halo de
luz dourada.” A glória era apegar-se aos homens como homens; uma adoração mútua
tomava a forma de camaradagem; e o menor e mais desprezível dos homens deve ser
incluído nesta camaradagem; um negro corcunda e retardado, com um só olho e uma
obsessão homicida, não deve ser pintado sem seu halo de luz dourada. Isto
poderia parecer apenas a expansão final de um movimento começado um século
antes, com Rousseau e os revolucionários; e eu fui educado para acreditar, e
acreditei, que o movimento era o começo de coisas maiores e melhores. Mas estas
eram canções antes da aurora; e não há comparação nem mesmo entre o sol e a
aurora. Whitman era a irmandade em plena luz do dia, mostrando infindáveis
variedades de criaturas radiantes e maravilhosas, ainda mais sagradas por
serem sólidas. Shelley adorava o Homem, mas Whitman adorava os homens. Cada
face humana, cada característica humana, era motivo para uma poesia mística,
como a luz de um fortuito archote, até então, uma face aqui e ali na multidão.
Um rei era um homem tratado como todo homem deveria ser tratado. Um deus era um
homem adorado como todo homem deveria ser adorado. O que poderiam fazer contra
uma raça de deuses e uma república de reis; não verbalmente, mas verdadeiramente,
o Mundo Novo?
Bem ... eis que o Sr. Foerster diz sobre a presente posição do fundador
do novo mundo da democracia: “Nossa ciência atual proporciona pouco respaldo a
uma inerente ‘dignidade do homem’ ou à sua ‘perfectibilidade’. É completamente
possível que a ciência do futuro nos afastará da democracia, nos levando a
alguma forma de aristocracia. As expectativas milenárias que Whitman edificou
sobre a ciência e a democracia assentam-se agora, bem sabemos, sobre bases
incertas. A perfeição da natureza, a bondade natural do homem, o ‘grande
orgulho do homem em relação a si mesmo’ contra-balançado por um humanitarismo
emocional – estes são os materiais de uma estrutura levemente colorida com
modernidade. Sua política, ética e religião pertencem ao passado, mesmo aquela
superficial ‘religiosidade’ que, ele acreditava, expandiria e completaria a
tarefa da ciência e da democracia ... No essencial de sua profecia, Whitman,
somos forçados a concluir, foi refutado pelos fatos.” Esta é uma afirmação
muito moderada e justa; seria fácil encontrar a mesma coisa numa afirmação
muito mais feroz. Eis uma monumental observação do Sr. H.L. Mencken: “Eles (ele
quer dizer certos pensadores liberais e ex-liberais) acabaram percebendo que os
idiotas a quem eles suaram para salvar, não querem ser salvos, e não merecem
ser salvos.” Este é o Novo Espírito, se é que há algum Novo Espírito.
“Construirei cidades inconquistáveis, com cada braço em torno de cada pescoço,”
clamava Walt Whitman, “por amor aos camaradas, pelo permanente amor aos
camaradas.” Fico a pensar no rosto do Sr. Mencken de Baltimore, se algum
camarada casual de Pittisburgh tentasse torná-lo inconquistável colocando um
braço em torno de seu pescoço. Mas a idéia está morta por causa de homens muito
menos ferozes que o Sr. Mencken. Ela está morta num homem como Aldous Huxley,
que reclamou recentemente do romantismo “gratuito” da antiga visão republicana
da natureza humana. Está morta no mais benevolente e cômico de nossos críticos
recentes. Está morta em tantos homens sábios e bons da atualidade, que não
posso evitar de pensar que, sob as modernas condições de sua “ciência”
favorita, ela estaria morta no próprio Whitman.
Não está morta em mim. Ela permanece real para mim, não por nenhum
mérito próprio, mas pelo fato de que essa idéia mística, embora tenha evaporado
como temperamento, ainda persiste como credo. Estou inteiramente preparado para
declarar, tão firmemente quanto declararia em minha juventude, que um negro
corcunda e retardado está decorado como um halo de luz dourada. A verdade é que
o extravagante quadro de Whitman, ou o que ele pensava ser um quadro
extravagante, é, realmente, um quadro muito antigo e ortodoxo. Há, na verdade,
incontáveis quadros antigos em que multidões inteiras são coroadas com halos,
para indicar que todos atingiram a Beatitude. Mas, para os católicos, é um
dogma fundamental da Fé que todos os seres humanos, sem nenhuma exceção sequer,
foram especialmente criados, foram formados e afinados como setas brilhantes, a
fim de atingirem o alvo da Beatitude. É verdade que as flechas são cobertas com
as penas do livre-arbítrio e, portanto, projetam a sombra das trágicas
possibilidades do livre-arbítrio; e que a Igreja (tendo estado consciente por
eras sem fim daquele lado obscuro da verdade, que os novos céticos acabaram de
descobrir) também chama a atenção para as trevas dessa tragédia potencial. Mas
isso não faz a menor diferença para a grandeza da glória potencial. Em certo
aspecto, é até mesmo parte dela; pois a liberdade é, em si mesma, uma glória.
Neste sentido, eles ainda usariam seus halos até mesmo no inferno.
Mas a questão é que qualquer um que acredite que todos esses seres foram
criados para serem santificados, e multidões deles estão provavelmente no
caminho da santificação, tem razoável motivo filosófico para considerá-los
todos criaturas radiantes e maravilhosas, ou ver todas as suas cabeças
circundadas por halos. Essa convicção faz de cada face humana, de cada
característica humana, um tema de poesia mística. Mas esta não é em absoluto
como a moderna poesia. A mais recente poesia moderna não é poesia da recepção,
mas da rejeição, ou melhor, da repulsão. O espírito que habita os mais recentes
trabalhos pode ser chamado de uma fúria do fastio. O novo homem de letras não
causa impacto dizendo que para ele um negro corcunda tem um halo. Ele causa
impacto dizendo que exatamente quando ele estava a ponto de abraçar a mais
honrada das mulheres, ele sentiu-se nauseado por uma acne acima da sobrancelha
dela ou por uma mancha de gordura em seu polegar esquerdo. Whitman tentou
provar que coisas sujas eram realmente limpas, como quando ele glorificava o
estrume como a origem da pureza da grama. Seus seguidores no verso livre tentam
provar que as coisas limpas são realmente sujas; tentam sugerir algo de leproso
e repulsivo na brancura espessa do leite, ou algo pruriginoso e pestilento
sobre o inexplicável crescimento do cabelo. Em resumo, todo o temperamento
mudou na temática poética. Mas ele não mudou na temática teológica; e este é o
argumento a favor de uma teologia imutável. A teologia católica nada tem a ver
com a democracia, a favor ou contra, no sentido de um mecanismo de votação ou
da crítica de privilégios políticos particulares. Não está comprometida em
apoiar o que Whitman dizia a favor da democracia, ou mesmo o que Jefferson ou
Lincoln diziam a favor da democracia. Mas ela está completamente comprometida
em contradizer o que o Sr. Mencken diz contra a democracia. Haverá perseguições
dioclecianas, haverá cruzadas dominicanas, haverá a ruptura de toda a paz e
acordo religiosos, ou mesmo o fim da civilização e do mundo, antes que a Igreja
Católica admita que um único idiota, ou um único homem, “não mereça a
salvação”.
Descobri assim, na meia idade, esse fato curioso sobre a lição de minha
vida, e aquela de toda a minha geração. Todos crescemos com uma convicção
comum, iluminada pelas chamas do gênio literário de Rousseau, de Shelley, de
Vitor Hugo, encontrando seu irrompimento e deflagração final no universalismo
de Walt Whitman. Todos nós aceitamos como coisa natural que todos os nossos
descendentes iriam aceitá-la como coisa natural. Eu disse que a descoberta da
irmandade parecia com a descoberta da luz do dia; de algo de que os homens não
se cansariam. Todavia, mesmo no curto período de minha existência, os homens já
dela se cansaram. Não podemos agora apelar ao amor da igualdade como uma
EMOÇÃO. Não podemos agora abrir um livro de poemas e esperar que ele seja sobre
o amor vitalício entre camaradas, ou o “Amor, amada República, que se alimenta
de liberdade e vive.”[1] Percebemos que na
maioria dos homens ela morreu, porque era um estado de ânimo e não uma
doutrina. E começamos a ponderar muito tarde, ao modo sábio dos anciões, como
poderíamos jamais ter tido a expectativa de ela durar na forma de estado de
ânimo, se ela não era forte o suficiente para perdurar como uma doutrina. E
também começamos a perceber que toda a força real que nela havia, que é a única
força que nela permanece, era a força original da doutrina. O que realmente
aconteceu foi o seguinte: o homem do século XVIII, muitos deles com uma justa
impaciência com padres corruptos e cínicos, dirigiram-se a eles com indignação
e disseram: “Bem, suponho que vocês se denominam cristãos; assim vocês não
podem realmente NEGAR que os homens sejam irmãos ou que seja nossa obrigação ajudar
os pobres.” A própria confiança de seu desafio, o próprio tom marcante da voz
revolucionária, vinha do fato de que os cristãos reacionários estavam numa
falsa posição como cristãos. A exigência democrática venceu porque pareceu
irrespondível. E ela pareceu irrespondível, não porque era irrespondível, mas
porque nem mesmo os cristãos decadentes ousaram dar a resposta. O Sr. Mencken
estará sempre pronto em nos obsequiar com a resposta.
Ora, foi exatamente aqui, para mim, que a coisa começou a ficar estranha
e interessante. Pois, olhando em retrospectiva para crises religiosas mais
antigas, penso ver certa coincidência, ou melhor, um conjunto de coisas
excessivamente coincidentes para ser considerado uma coincidência. Afinal,
quando chego a pensar nisso, todas as outras revoltas contra a Igreja, antes da
Revolução e especialmente desde a Reforma, contaram a mesma estranha história.
Todo grande herege sempre exibiu a combinação de três extraordinárias
características. A primeira é que ele escolhia alguma idéia mística do conjunto
harmonioso das idéias místicas da Igreja. A segunda característica é que ele
usava aquela única idéia mística contra todas as idéias místicas. A terceira (e
a mais singular) é que ele parecia não ter tido nenhuma noção de que sua própria
idéia mística favorita era uma idéia mística, pelo menos no sentido de uma
idéia misteriosa, dúbia ou dogmática. Com uma estranha e incomum inocência, ele
aparentemente sempre considerava esta idéia uma coisa natural. Ele a
pressupunha inatacável, mesmo quando ele a estava usando para atacar idéias
similares. O exemplo mais popular e óbvio é a Bíblia. A um pagão imparcial ou a
um observador cético, esta deve ter sempre parecido a mais estranha história do
mundo; que homens invadindo um templo para destruí-lo, destruindo o altar e
expulsando o padre, encontraram lá certos volumes sagrados intitulados “Salmos”
ou “Evangelhos”; e (invés de jogá-los ao fogo com o resto) começaram a usá-los
como oráculos infalíveis para invalidar todos os outros sistemas. Se o altar
sagrado e principal está errado, por que os documentos sagrados e secundários
estariam certos? Se o padre profanava os Sacramentos, por que não poderia ter
profanado as Escrituras? Mesmo assim, demorou muito para que ocorresse àqueles
que brandiam esta peça do mobiliário da Igreja para quebrar todo o mobiliário
da Igreja, quão profano seria examinar este fragmento do mobiliário. As pessoas
se surpreenderam muito, e em algumas partes do mundo ainda estão surpresas, que
alguém tenha tido a audácia de fazê-lo.
Mais uma vez, os calvinistas tomaram a idéia católica do absoluto
conhecimento e poder de Deus; e a trataram como um truísmo pétreo e
irredutível, tão sólido que qualquer coisa poderia sobre ele ser construído,
não importando quão esmagador e cruel fosse. Eles estavam tão confiantes na
lógica de seu princípio fundamental da predestinação, que torturaram o
intelecto e a imaginação com terríveis deduções a respeito de Deus, que
pareciam transformá-lo num demônio. Mas nunca pareceu ter-lhes ocorrido que
alguém pudesse inesperadamente dizer que não acreditava em demônios. Eles
ficaram surpresos quando pessoas rotuladas de “infiéis”, aqui e ali, começaram
a dizê-lo. Eles tinham suposto a presciência Divina tão definitiva que ela
devia, se necessário, consumar-se através da destruição da misericórdia Divina.
Então veio Wesley e a reação contra o calvinismo; os evangélicos apoderaram-se
da idéia eminentemente católica de que a humanidade tem o sentido do pecado; e
eles perambularam por todo o canto a oferecer a todos alívio de sua misteriosa
carga de pecado. É um provérbio, e quase uma piada, que eles se dirigissem a um
estranho na rua e se oferecessem para abrandar sua secreta agonia do pecado.
Mas raramente pareceu ter-lhes ocorrido, até muito mais tarde, que o homem na
rua pudesse responder que ele não desejava ser salvo mais do pecado do que da
febre maculosa ou da Dança de São Vito; porque estas coisas não estavam
causando-lhe nenhum sofrimento. Eles, por sua vez, ficaram muito surpresos
quando o resultado do otimismo de Rousseau e da Revolução começou a se
expressar nos homens que alegavam uma felicidade e dignidade puramente humanas;
um contentamento com a camaradagem com os de sua espécie; terminando com a
feliz vociferação de Whitman de que ele não “perde o sono e chora por seus
pecados”.
Ora, a verdade pura e simples é que Shelley, Whitman e os otimistas
revolucionários estavam, eles próprios, repetindo tudo novamente. Eles, embora
menos conscientemente por causa do caos de sua época, também escolheram da
antiga tradição católica uma idéia transcendente particular; a idéia de que há
uma dignidade espiritual no homem enquanto homem, e uma obrigação universal de
amar o homem enquanto homem. E eles agiram exatamente do mesmo modo
extraordinário de seus protótipos, os wesleyanos e calvinistas. Consideraram
esta idéia absolutamente auto-evidente como o sol ou a lua; que ninguém poderia
jamais destruí-la, embora em nome dela eles destruíssem tudo o mais. Eles
insistiam permanentemente em sua divindade humana, em sua dignidade humana e no
inevitável amor por todos os seres humanos; como se estas coisas fossem simples
fatos naturais. E agora eles estão muito surpresos quando novos e incansáveis
realistas irrompem de repente e começam a dizer que um açougueiro com suíças
ruivas e uma verruga no nariz não lhes parece particularmente divino ou digno,
que não sentem o menor impulso sincero de amá-lo, que poderiam não amá-lo se
tentassem, que não reconhecem nenhuma particular obrigação de tentar.
Pode parecer que o processo tenha chegado ao fim, que não haja nada mais
a ser extraído pelo realista puro. Mas não é assim; o processo pode continuar.
Há ainda formas tradicionais de caridade a que os homens se apegam. Há ainda
formas tradicionais de caridade para serem descartadas por eles quando
descobrirem que elas são apenas tradicionais. Todos devem ter notado nos mais
recentes escritores a sobrevivência de um assaz dolorido modo de piedade. Eles
não mais honram todos os homens, como São Paulo e outros democratas místicos.
Não seria muito dizer que eles desprezam todos os homens; quase sempre (para
fazê-los justiça) inclusive eles mesmos. Mas eles se apiedam, em certo sentido,
de todos os homens, e particularmente daqueles que são dignos de piedade;
atualmente eles estendem este sentimento quase desproporcionalmente a todos os
animais. Essa compaixão pelos homens tem também a mancha de sua conexão
histórica com a caridade cristã; e mesmo no caso dos animais, com o exemplo de
muitos santos cristãos. Nada indica que um novo recuo de tais religiões
sentimentais não libertará os homens até da obrigação de se apiedarem da dor do
mundo. Não apenas Nietzsche, mas muitos neo-pagãos seguindo suas idéias,
sugeriram tal insensibilidade como a mais alta pureza intelectual. E tendo lido
muitos poemas modernos sobre o Homem do Futuro, feito de aço e iluminado com
nada mais cálido do que o fogo verde, não tenho dificuldade de imaginar uma
literatura que se orgulhasse de um desapego impiedoso e metálico. Então,
talvez, fosse vagamente conjeturado que a última das virtudes cristãs morrera.
Mas enquanto elas viveram, houve cristãos.
Não creio, portanto, que o humanismo e a religião sejam rivais de mesmo
nível. Creio ser uma rivalidade entre o rio e a nascente; ou entre o tição e o
fogo. Cada um desses antigos intelectuais tirou um tição do fogo imortal; mas a
questão é que embora ele tenha agitado a tocha muito loucamente, embora tivesse
usado a tocha para incendiar meio mundo, ela se apagou muito rapidamente. Os
puritanos não perpetuaram realmente sua sublime exaltação no desamparo; eles
apenas a fizeram impopular. Não olhamos indefinidamente as multidões do
Brooklyn com os olhos de Whitman; acabamos, com uma singular rapidez,
considerando-as com os olhos de Dreiser. Em resumo, desconfio de experiências
espirituais fora da tradição espiritual central; pela simples razão de que
penso que elas não duram, mesmo quando conseguem se difundir. Elas perduram, no
máximo, por uma geração; comumente pelo período de uma moda; no mínimo, pelo período
de uma facção. Não creio que tenham o segredo da continuidade; não, certamente,
da continuidade corporativa. A um democrata antiquado e combatente como eu pode
se desculpar o emprestar alguma leve importância a esta última questão; aquela
relativa à vida ordinária da humanidade. Quantos humanistas supostamente
existem entre as massas inferiores dos seres humanos? Serão eles, por exemplo,
não mais do que foram os filósofos gregos entre a multidão ordinária dos
alegres e politeístas pagãos gregos? Serão eles não mais do que foram os homens
concentrados na Cultura e Matthew Arnold, dentre a multidão de seguidores de
Manning ou do General Both? Não pretendo, de modo algum, escarnecer do
humanismo; penso que compreendo a distinção intelectual que ele faz; e tenho
tentado compreendê-lo com um espírito de humildade; mas sinto um débil
interesse em quantos da abatida e desnorteada raça humana irão supostamente
entendê-la. E pergunto com certo interesse pessoal; pois há trezentos milhões
de pessoas no mundo que aceitam os mistérios que eu aceito e vivem a fé que eu
professo. Desejo realmente saber se está previsto que haverá trezentos milhões
de humanistas na humanidade. O otimista pode dizer que o humanismo será a
religião da próxima geração, tal como Comte disse que a humanidade seria o Deus
da próxima geração, e tal, em certo sentido, ela foi. Mas não é o Deus desta
geração. E a questão é qual será a religião da próxima geração depois desta; o
de todas as outras gerações (como diz certa antiga promessa) até o fim do
mundo.
O humanismo, no sentido do Sr. Foerster, tem um caráter muito sábio e
valioso. Ele está realmente tentando ajuntar as peças, isto é, ajuntar todas as
peças. Tudo que foi feito antes era primeiro destruição cega e então seleção
aleatória e fragmentária; como se garotos tivessem quebrado uma janela de vidro
e feito com os cacos óculos de lentes coloridas, os óculos de lentes cor de
rosa do republicano ou os óculos verdes ou amarelos do pessimista e do
decadente. Mas o humanismo, como o aqui professado, inclinar-se-á para ajuntar
tudo que possa; por exemplo, ele é grande o suficiente para inclinar-se e pegar
a jóia da humildade. Matthew Arnold, que fez algo do mesmo porte pelo que ele
chamava Cultura, em meados do século XIX, tentou algo parecido pela preservação
da castidade; que ele chamava, de um modo muito irritante, “pureza”. Mas antes
de considerarmos, seja a Cultura, seja o humanismo, um substituto da religião,
há uma questão muito simples que pode ser formulada na forma de uma rústica metáfora.
O humanismo pode tentar ajuntar as peças; mas pode ele colá-las? Onde está o
cimento que fez da religião uma sociedade e a fez popular, que pode impedi-la
de ser desfeita em pedaços num escombro de gostos individuais? O que impede um
humanista desejar castidade sem humildade, e outro humildade sem castidade, e
ainda outro verdade ou beleza sem ambas? O problema de uma ética ou cultura
duradoura consiste em se encontrar um arranjo das peças através do qual elas
permaneçam relacionadas como acontece com as pedras de um arco. E eu conheço
apenas um esquema que provou assim sua solidez, cavalgando por terras e eras
com seus arcos gigantes, e conduzindo o elevado rio do batismo sobre os
aquedutos de Roma.
1. “Love, the beloved Republic, that feeds upon
freedom and lives,” no original. Verso do poema Hertha, de
Algenon Charles Swinburne. (N. do T.)
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