Se vocês não lerem muito, cedo ou tarde serão traidores, porque não
terão compreendido a raiz do mal. Com estas fortes palavras um de meus
colaboradores[4] recomendava aos seminaristas de Êcone a leitura de boas obras
que tratem do liberalismo.
Com efeito, não se pode compreender a crise atual da igreja nem conhecer
a verdadeira cara dos que ocupam a Roma atual, e em consequência ver que
atitude tomar perante os fatos, se não se procura as causas desta crise,
se não se estuda seu curso histórico, e se não se descobre sua fonte
primeira neste liberalismo condenado pelos papas dos últimos séculos.
Nossa luz: a voz dos papas
Partiremos das origens, como faziam os soberanos pontífices ao
denunciarem as graves perturbações em curso. Além de acusarem o liberalismo, os
papas vão mais longe no passado e todos, desde Pio VI até Bento XV, falavam da
crise reduzindo-a para a luta encetada contra a Igreja no século XVI pelo
protestantismo e pelo naturalismo, do qual aquela heresia foi a causa e a
primeira propagadora.
O RENASCIMENTO E O NATURALISMO
O naturalismo já se encontrava no renascimento, que no esforço
para recuperar as riquezas das antigas culturas pagãs e particularmente a
cultura e a arte dos gregos, conduziu à exaltação exagerada do homem, da
natureza e das forças naturais.
Exaltando a bondade e o poder da natureza, menosprezava-se e desaparecia
do pensamento dos homens a necessidade da graça, a destinação da humanidade
para a ordem sobrenatural, a luz trazida pela revelação. Sob o pretexto
de arte quiseram introduzir por toda parte, até nas igrejas, esse nudismo (sem
exagero se pode chamar de nudismo) que domina na capela sistina em Roma.
Consideradas sob o ponto de vista artístico, estas obras tem seu valor; porém
nelas prima o aspecto sensual da exaltação da carne, totalmente em oposição aos
ensinamentos do evangelho: pois a carne luta contra o espírito, diz São Paulo,
e o espírito luta contra a carne. (Gal.V:17)
Não condeno esta arte se restrita aos museus mundanos, mas não vejo nela
um meio de exprimir a verdade da redenção, ou seja, uma feliz submissão da
natureza redimida à graça. Já na arte barroca da contra-reforma católica, meu
julgamento é bem diferente, especialmente nos países que resistiram ao protestantismo:
o barroco utilizar-se ainda anjinhos rechonchudos mas esta arte de puro
movimento e expressões às vezes patéticas é um canto de triunfo da
redenção, um canto de vitória do catolicismo sobre o pessimismo de um
protestantismo frio e desesperado.
O PROTESTANTISMO E O NATURALISMO
Pode parecer estranho e paradoxal chamar o protestantismo de
naturalista. Nada há em Lutero de exaltação à bondade intrínseca da natureza
porque, segundo ele, a natureza esta irremediavelmente decaída e a
concupiscência é invencível. No entanto a opinião excessivamente niilista que o
protestante tem sobre si mesmo desemboca em um naturalismo prático: na intenção
de menosprezar a natureza e de exaltar o poder só da fé, relegam a graça divina
e a ordem sobrenatural ao domínio das abstrações. Para os protestantes a graça
não opera uma verdadeira renovação interior; o batismo não é a restituição de
um estado sobrenatural habitual, é somente um ato de fé em Jesus cristo que
justifica e salva. A natureza não é restaurada pela graça, permanece
intrinsecamente corrompida; e somente a fé obtém de Deus que deite sobre nossos
pecados o manto pudico de Noé. Todo o organismo sobrenatural que o batismo
agrega à natureza enraizando nela a graça, todas as virtudes infusas e os dons
do Espírito Santo são reduzidos a nada, reduzidos a um só ato forçado de
fé-confiança em um redentor que gratifica somente para retirar-se para
longe a criatura, deixando um abismo intransponível entre o homem
definitivamente miserável e Deus transcendente três vezes santo. Este
pseudo-supernaturalismo, como chama o Padre Garrigou-Lagrange, deixa
finalmente o homem, apesar de haver sido redimido, sujeito somente à
força de suas aptidões naturais; fatalmente se afunda no naturalismo.
Deste modo os extremos opostos se unem! Jacques Maritain exprime bem o
desenlace naturalista do luteranismo: a natureza humana terá que rechaçar como
um inútil acessório teológico o manto de uma graça que não é nada para
ela e cobrir-se com sua fé-confiança para converter-se em uma bela besta
livre, cujo infalível e continuo progresso encanta hoje o universo
inteiro [5].
Este naturalismo se aplicará à ordem civil e social: ficando a graça reduzida
a um sentimento de fé-confiança, a redenção será somente uma
religiosidade individual e particular, sem influência na vida pública. A
ordem pública, econômica e politica fica condenada a viver e se desenvolver sem
nosso Senhor Jesus Cristo. O protestante busca no seu êxito econômico o
critério de sua justificação diante de Deus; assim, de bom grado escreverá
sobre sua porta: rendei honras a deus por teus bens, oferecei as
primícias de teus ganhos, então teus celeiros se encherão e teus
tonéis transbordarão de vinho. (Prov.III,9-10)
Jacques Maritain escreveu excelentes páginas sobre o materialismo do
protestantismo, que dará nascimento ao liberalismo econômico e ao capitalismo:
E por três dos chamados de Lutero
ao cordeiro que salva, por trás de seus movimentos de confiança e sua fé no
perdão dos pecados, há uma criatura humana que levanta a cabeça e
faz seus negócios no lodaçal em que está submersa por causa do
pecado de Adão! Desenvolver-se-á no mundo, seguirá a sede do poder, o instinto
dominador, a lei deste mundo que é o seu mundo. Deus será somente um aliado um
poderoso. (op.cit.pag.52-53)
O resultado do protestantismo foi que os homens se apegaram ainda mais
aos bens deste mundo, esquecendo-se dos bens eternos. E se um certo puritanismo
chega a exercer uma vigilância exterior sobre a moralidade pública, não
impregnara os corações do espírito verdadeiramente cristão, que é um
espírito sobrenatural, onde reina a primazia do espiritual. O
protestantismo, necessariamente, será conduzido a proclamar a emancipação do
temporal em relação ao espiritual. Esta emancipação, justamente, vai
reencontrar-se no liberalismo. Os papas tiveram, portanto muita razão em
denunciar este naturalismo de inspiração protestante como sendo a origem
do liberalismo que transtornar· a cristandade em 1789 e 1848. Assim diz
Leão XIII: esta ousadia de homens tão falsos que ameaça cada dia a
sociedade civil com maiores ruínas, e que estremece a todos com
inquietante preocupação, tem sua causa e origem nas peçonhentas doutrinas
que, difundidas entre os povos como Boas sementes em tempos passados,
produziram em seu tempo frutos tão danosos. Bem sabeis, veneráveis irmãos, que
a guerra cruel iniciada contra a fé católica pelos inovadores, desde o décimo
sexto século e que vem recrudescendo diariamente até o presente, tinha
por fim unicamente afastar toda revelação e toda ordem sobrenatural, para
abrir a porta aos inventos e delírios da razão [6].
E posteriormente, o papa Bento XV:
Desde os três primeiros séculos e
desde as origens da Igreja, período em que o sangue dos cristãos
fecundou toda a terra, pode-se dizer que nunca a igreja correu tão grande
perigo como o que se manifestou nos fins do século XVIII. Então uma
filosofia em delírio, a continuação da heresia e a apostasia dos
inovadores, adquiriu sobre os espíritos um poder de sedução, provocando
transformação total, com o propósito determinado de destruir as bases
cristãs da sociedade, não somente na França, mas pouco a pouco em todas
as nações[7].
NASCIMENTO DO NATURALISMO POLITICO
O protestantismo constituiu um ataque muito duro contra a igreja e
ocasionou um desagregamento profundo na cristandade do século XVI, porém sem
conseguir impregnar as nações católicas com o veneno de seu naturalismo
político e social. Isso só aconteceu quando este espírito secularizante chegou
às universidades e em seguida àqueles que chamamos filósofos das luzes.
Filosoficamente o protestantismo e o positivismo jurídico têm origem no
nominalismo surgido com a decadência da idade média (séc. XIV) que conduz tanto
à Lutero com sua concepção puramente extrínseca e nominal da redenção,
como a descartes, com sua ideia de uma lei divina indecifrável
submetida somente ao arbítrio da vontade de deus. Com São Tomás de
Aquino, toda a filosofia cristã afirmava, ao contrário, a unidade da lei divina
eterna e da lei humana natural: a lei natural é tão somente uma participação da
lei eterna nas criaturas racionais. (Suma Teol. I-II,91,2)
Mas com descartes já se põe uma ruptura entre o direito divino e o
direito humano natural. Seguindo a descartes, os universitários e juristas não
tardariam a tomar o mesmo caminho cismático.
Assim diz Hugo Grotius (1625), citado por Paul Hazard: e o direito
divino? Grotius procura salvaguardá-lo: o que acabamos de dizer, declara,
valeria mesmo se concordássemos (o que não pode ser concedido sem um crime) que
não há Deus e que os assuntos humanos não são objeto de seus cuidados.
Não há dúvida alguma que Deus e a Providência existem, sendo portanto uma fonte
de direito além da que provém da natureza. E mesmo este direito natural, pode
ser atribuído a Deus, porque ele quis que estes princípios existissem em nós. A
lei de Deus, a lei da natureza…, continua Paul Hazard, esta fórmula dupla não é
Grotius que inventa (…) A idade média já a conhecia. Onde está seu caráter de
novidade? De onde vem que seja criticada e condenada pelos doutores? Para quem
é luminosa? A novidade consiste no aparecimento da separação de dois fins; em
sua oposição, que tende a se afirmar; em uma tentativa de conciliação
posterior, que por si só supõe a idéia de ruptura [8].
O jurista Pufendorf (1672) e o filósofo Locke (1689) darão o último
toque para a secularização do direito natural. A filosofia das luzes imagina um
estado de natureza que nada tem a ver com o realismo da filosofia cristã e que
culmina com o mito do bom selvagem de Jean Jacques Rousseau. A lei natural fica
reduzida a um conjunto de sentimentos que o homem tem de si mesmo e que são
compartilhados pela maior parte dos outros homens; em Voltaire encontra-se o
diálogo seguinte:
B: – o que é a lei natural?
A: – o instinto que nos faz sentir a justiça.
B: – a que você chama justo e injusto?
A: – ao que assim parece para o universo inteiro [9].
Tal conclusão é o fruto de uma razão desorientada, que na ânsia de
emancipação em relação a Deus e à sua revelação cortou as ligações com os
princípios da ordem natural, reforçados pela revelação divina sobrenatural e
confirmados pelo magistério da igreja. Se a revolução separou o poder civil do
poder da igreja, é porque ela originariamente já havia separado naqueles que se
chamam filósofos, a fé e a razão. Vem a propósito relembrar o que ensina a
respeito deste ponto, o Concilio Vaticano I (primeiro): não se pode nunca
encontrar discordância entre a fé e a razão, pois elas se prestam mútua ajuda:
a reta razão demonstra as bases da fé e, esclarecida por ela, cultiva a ciência
das coisas divinas; e a fé, por sua vez, livra e defende a razão dos erros e
lhe proporciona inúmeros conhecimentos [10].
Mais exatamente podemos dizer que a revolução se fez em nome da
deusa razão, da razão deificada, da razão que se faz norma suprema do
verdadeiro e do falso, do bem e do mal.
NATURALISMO, RACIONALISMO, LIBERALISMO
Desde já, podemos ver como todos os erros estão entrelaçados uns
com os outros: liberalismo, naturalismo, racionalismo, são somente aspectos
complementares do que se deve chamar revolução. Onde a reta razão,
esclarecida pela fé, vi somente harmonia e subordinação, a razão deificada cava
abismos e levanta muralhas: a natureza sem a graça, a prosperidade material sem
a procura dos bens eternos, o poder civil separado do poder eclesiástico,
a política sem deus nem Jesus Cristo, os direitos do homem contra os direitos
de Deus, finalmente a liberdade sem a verdade.
Com este espírito se fez a revolução, que vinha se preparando a mais de
dois séculos, como procurei mostrar, mas somente no fim do século XVII
culmina e de seus frutos decisivos: os frutos políticos como resultado dos
trabalhos dos filósofos, dos enciclopedistas e de uma extraordinária
atividade da maçonaria [11], que em poucas décadas havia penetrado e
estabelecido núcleos em toda a classe dirigente.
A MAÇONARIA PROPAGADORA DESTES ERROS
O Papa Leão XIII nos mostra em “Quod Apostolici“, encíclica já
citada, e também em “Humanum Genusi” de 20 de agosto de 1884
sobre a seita dos maçons, com que precisão, com que clarividência os
soberanos pontífices denunciaram esta empresa:
“Em nossos dias os malfeitores
parecem conspirar em conjunto e lutar com maior força, guiados e auxiliados por
uma sociedade que chamam dos maçons, firmemente constituída e muito difundida
(…). Os romanos pontífices, nossos predecessores, zelando cuidadosamente pela
salvação do povo cristão, reconheceram logo quem era e o que queria este
inimigo, assim que ele começou a sair das trevas de sua conjuração oculta, para
se lançar ao ataque em plena luz do dia.”
Leão XIII cita então os papas que já haviam condenado a maçonaria:
Clemente XII, na encíclica “In Eminent” de 27 de abril de 1738 lança uma
excomunhão contra os maçons; Bento XIV renova esta condenação na encíclica
“Providas” de 16 de março de 1751; Pio VIII pela encíclica “Ecclesiam“de
13 de setembro de 1821 acusa especialmente os “Carbonari“; Leão XII em
sua Constituição Apostólica “Quo Graviorai” de 13 de março de 1826
denuncia a sociedade secreta “A Universitária” que procurava perverter a
juventude; Pio VIII na “Traditi” de 24 de março de 1829, e Pio IX na
alocução “Consistorial” de 25 de setembro de 1865 e na encíclica “Quanta Cura”
de 8 de dezembro de 1864, falaram no mesmo sentido.
Posteriormente, deplorando a pouca atenção dispensada pelos governantes
apesar de tantas advertências, Leão XIII constata os espantosos progressos da
seita: vemos como resultado, que no período de um século e meio a seita dos
maçons fez incríveis progressos. Empregando simultaneamente a astúcia
e a audácia, invadiu todos os setores da hierarquia social e começou a tomar,
no interior dos estados modernos, um poder que equivale à soberania.
O que ele diria hoje, quando todos os governos obedecem aos decretos das
lojas maçônicas! [12]. Agora mesmo, no assalto à hierarquia da igreja, o
espírito maçônico e a própria maçonaria progridem solidamente. Voltaremos ao
assunto.
O que é então o espírito maçônico? Eis em poucas palavras o que diz o
senador Goblet d’Aviello membro do grande oriente da Bélgica, falando na loja
dos amigos filantrópicos de Bruxelas em 5 de agosto de 1877: “Digam aos
neófitos que a maçonaria… é antes de tudo uma escola de vulgarização e
aperfeiçoamento, uma espécie de laboratório onde as grandes idéias do
momento vim a se combinar e se firmar para se espalhar pelo mundo profano sob
uma forma palpável e prática. Digam-lhes em uma palavra, que somos a filosofia
do liberalismo. Fique então claro, caros leitores, que embora não a mencione
sempre, a maçonaria é o centro dos temas que lhes falarei em todos os capítulos
seguintes.
Do Liberalismo à Apostasia – D. Marcel Lefebvre
__________
4 Padre Paul Aulagnier, 17 de setembro de 1981.
5 Trois Reformateurs, p·g. 25
6 Enciclica Quod Apostólici de28 de dezembro de 1878.
7 Carta Anno Jam Exeunte De 7 De Março De 1917, Paz Interior Das NaçIes
(Pin.486) vide bibliografia.
8 la Crise De La Conscience Européenne, 1680-1715, Fayard, Paris, 1961;
3º parte, cap. 3.
9 Voltaire, Diálogos Filosóficos, A.B.C., 1768, Quarto Di·Logo, Da Lei
Natural E Da Curiosidade Citado Por Paul Hazard, Op.Cit.
10 Const. De Fide Catholica, Dei Filius, Dz Nº1799.
11 – 1517: Rebelião De Lutero, Que Queima A Bula Do Papa Em Wittenberg
-1717: Fundação Da Grande Loja De Londres
12 Sem excluir os países comunistas, visto que os partidos
comunistas são simplesmente sociedades maçônicas, com a única diferença
que nestes países elas são legais.
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