Deve-se reconhecer que a obra Assim falou
Zaratustra de Frederico Nietzsche não pode deixar nenhum cristão
indiferente, mas constitui verdadeiro desafio que exige resposta. Este desafio,
porém, nada tem de novo, a não ser, talvez, o seu estilo, próprio de uma
teologia sagrada às avessas.
Para entender o discurso de Nietzsche, é preciso
ter presente que a atitude do homem religioso sempre representou um escândalo
para o mundo, dada a sua radicalidade de afirmar o valor absoluto do invisível
contra o nada do universo. A
postura religiosa do homem devoto que despreza o
mundo (não como obra divina do Criador, mas como conjunto de vaidades que se
opõem ao Absoluto) só pode ser compreendida com objetividade quando se tem real
cuidado de buscar seus fundamentos no plano mais alto da filosofia,
indagando-se acerca das causas últimas das coisas. Do contrário, não se faz um
estudo sério, mas pode-se ter a vantagem de fazer com sucesso uma caricatura
mordaz da questão religiosa. Quer dizer, fica-se na superfície, nas aparências
enganosas das coisas, mas não se conhecem as razões mais altas. Faz-se
literatura, mas não filosofia.
Neste trabalho pretendo mostrar justamente isto: a
análise da religião feita por Nietzsche carece de fundamentos sólidos, não é
científica, pois que se limita a retratar a religião com alguns traços vagos e
imprecisos de ordem antropológica e psicológica, abstendo-se de examinar o
problema no plano metafísico.
Pretendo examinar detalhadamente o capítulo Das
três metamorfoses da primeira parte de Assim falou Zaratustra, fazendo
ver que o problema de fundo levantado por Nietzsche é a suposta
incompatibilidade entre a liberdade de Deus e a liberdade humana, mas que este
hipotético antagonismo recebeu uma solução da tradição religiosa.
O presente trabalho tem a seguinte estrutura: após
esta introdução seguem-se dois capítulos e uma conclusão. No primeiro capítulo
encontra-se uma análise da crítica geral à religião; no segundo, uma apreciação
da crítica nitzscheniana ao transcendente. A conclusão terá um caráter de
cotejo entre os dois tipos de crítica à religião.
Crítica geral à religião
Sempre houve uma crítica à religião, o que é
natural ao espírito humano aberto à investigação. Na Antigüidade, a filosofia
incumbiu-se de importante tarefa no sentido de purificar o senso religioso das
superstições mitológicas e das corrupções pagãs. Houve também uma crítica
filosófica à religião em si mesma, considerada como um erro nocivo ao homem,
como uma postura anticientífica.
Isto em todas as épocas obrigou o espírito humano a
depurar o senso do sagrado, a aprofundar-se na reflexão filosófica sobre a
existência do Ser Absoluto e a incorruptibilidade da alma racional. Porém, as
críticas que foram úteis ao esclarecimento do problema procuraram basear-se em
argumentos metafísicos e gnosiológicos, isto é, questionaram a capacidade do
intelecto de conhecer realmente a essência das coisas e, assim, demonstrar a
existência de um mundo ultraterreno.
Este tipo de crítica à religião parte da negação da
objetividade do conhecimento intelectual para em seguida recusar o princípio de
causalidade e, por conseguinte, destruir a ciência como conhecimento das causas
e negar a existência de Deus. De fato, o único título que pode justificar
racionalmente a religião como culto do Ser Absoluto é a percepção da
contingência das coisas que se expressa seja pela exigência de uma causa
suficiente seja pelo movimento que supõe um primeiro motor. Quer dizer, na
busca das causas não se pode deter senão quando se alcança uma causa que seja
razão suficiente de todos os efeitos.
A expressão máxima desta corrente filosófica é o
pensador inglês Davi Hume (1711-1776), autor da História natural da
religião.Embora avalie negativamente a religião (a ignorância é a mãe da
devoção), diz que se se encontrasse um povo sem religião, este povo pouco
diferiria dos animais.
Como nominalista que negava os universais, Davi
Hume afirmava que o conhecimento experimental não pode perceber nexos entre os
fenômenos, mas vê apenas sucessão, de modo que a concepção de “causalidade”
como influxo real que produz ou modifica alguma coisa não passa de ilusão e a causalidade
na ordem real é pura sucessão constante. Isto é, pelo hábito de ver dois
fenômenos sucederem-se constantemente, damos ao primeiro o nome de
causa e ao segundo o nome de efeito, sem que na realidade o primeiro
tenha influído na produção do segundo.
Ora, rejeitado o princípio de causalidade que
resulta da percepção da contingência das coisas que não têm em si sua razão de
ser e, portanto, exigem um Ser Necessário ou uma Causa Primeira, é evidente que
a religião como culto ao Ser Absoluto perde todo direito a uma
justificação racional ou metafísica. A religião, assim, só poderá ser analisada
pela psicologia, pela antropologia ou outras disciplinas que não podem oferecer
uma resposta última à matéria, a não ser partindo da premissa filosófica antimetafísica.
Na verdade, porém, a recusa do princípio de
causalidade é descabida e provém de um equívoco. Com efeito, além de uma falsa
explicação do conhecimento humano – que nega o valor do conhecimento
intelectual capaz de perceber o nexo causal -, pretendeu-se deduzir falsamente
do princípio de indeterminismo físico de Heisenberg a ilegitimidade do
princípio de causalidade. No entanto, ainda que a física moderna descarte um
determinismo físico, isto não significa o fim da causalidade, pois uma causa livre
não é menos causa que uma causa determinada. Pois o princípio de causalidade
não afirma que de um determinado fenômeno se possam prever suas conseqüências –
o que seria um determinismo hoje rejeitado pela física -, mas sim que todo ser
contingente exige uma causa. De sorte que parte, não da causa, mas do efeito
para a causa, nem determina qual é causa, nem especifica se é livre ou
necessária.
A conseqüência desta corrente filosófica cética, na
esteira da qual se poderia incluir Kant, será lançar um descrétido sobre a
teologia filosófica e um desprestígio sobre a religião, que desde então será
deslocada do plano racional para o plano sentimental. Relegada ao domínio do
coração, onde a idéia de Deus se reduz ao sentimento do infinito a uma
indigência do divino em contraposição ao Deus frio e teórico da metafísica, a
religião passará a ser vista como uma postura anticientífica senão patológica
própria de pessoas fanáticas condenada a desaparecer com o tempo.
É claro que a crítica à religião teve outros
desdobramentos conhecidos à saciedade, tais como as célebres afirmações de
Feuerbach e Marx. Feuerbach dizia que Deus, um ser imaginário, era o maior
inimigo do homem, pois que se despojava de seus atributos para atribui-los a um
ser inexistente, de maneira que quanto mais pobre um homem tanto mais rico o
seu “deus”. Na mesma linha de argumentação, Marx dizia que a miséria religiosa
– a religião é ópio do povo – é conseqüência da miséria social, de modo que,
quando houver uma igualdade social com a distribuição da riqueza, não haverá
mais religião.
Contudo, é preciso notar que qualquer crítica
filosófica à religião, seja qual for o seu matiz, sempre partirá, em última
análise, de uma posição tomada diante do problema gnosiológico.
Uma análise da crítica nietzcheniana à religião
(Análise da alegoria das três metamorfoses)
Falando Nietzsche, logo no início deste discurso de
Zaratustra, de três metamorfoses do espírito, convém, em primeiro lugar,
examinar o que entende o pensador por espírito.
É claro que Niestzsche não se refere a uma
entidade intrinsecamente independente da matéria em sua origem e existência.
Logo, por espírito o pensador só pode entender uma propriedade da matéria que,
em sucessivos desdobramentos, vai adquirindo consciência de si mesma até se tornar
um espírito reflexivo.
Este espírito reflexivo, em sua fase primária, foi
um camelo, em seguida transformou-se em leão e, finalmente, numa criança,
conforme a figura de linguagem empregada por Nietzsche. Transformando-se em
leão, o espírito toma consciência da sua liberdade, adquire uma vontade de
poder que se rebela contra a ordem moral objetiva, fundada na natureza das
coisas.
Vê-se, assim, que a questão teológica se apresenta
para Nietzsche nos termos de uma suposta incompatibilidade entre Deus e a liberdade
humana. Quer dizer, se Deus existe o homem não pode ser livre; mas como o homem
é livre Deus não existe.
Por isso, Deus apresenta-se na alegoria de
Nietzsche como um dragão que impõe ao homem o “tu deves”, a que retorque o
espírito como um leão com o “eu quero”. Isto significa dizer que, se há uma lei
moral objetiva com fundamento metafísico, o homem não pode ser um espírito
criativo, não pode gerar novos valores, mas está condenado a ser um camelo
carregador de pesado fardo, um espírito de suportação.
De maneira que, no âmago da crítica de Nietzsche à
religião, está o problema da relação entre lei e liberdade. A este problema
tentarei dar uma resposta.
É preciso dizer que este tema foi desenvolvido por
Santo Tomás de Aquino em sua análise da relação entre a causa primeira e as
causas segundas. Ademais, outros pensadores cristãos consagraram-se à reflexão
sobre o problema na tentativa de conciliar a existência de um Deus onipotente
com a existência do mal moral no mundo.
Diz Santo Tomás que a causalidade primeira de Deus
não tira nada da causalidade segunda das criaturas. Explicando como um
mesmo efeito pode provir de Deus e do agente natural, diz o santo doutor da
Igreja:
Em todo agente podemos considerar dois aspectos: o
ser mesmo que atua e sua potência, como o fogo aquece pelo calor. E a potência
de um agente inferior depende da do agente superior, enquanto este lhe comunica
a potência mesma pela qual atua, ou a conserva, ou a aplica à ação; como o
artesão aplica o instrumento ao efeito próprio; mas não dá ao instrumento a
forma pela qual atua, nem a conserva, mas apenas lhe comunica o movimento. Logo
um agente inferior atuará não unicamente por virtude própria, mas também pela
dos agentes superiores, pois atua por virtude de todos eles. E assim como o
agente inferior é a causa ativa imediata, assim a potência do primeiro agente é
imediata quanto à produção do efeito; pois a potência do agente inferior não
pode produzir por si mesma o efeito, mas por virtude do agente superior
próximo(…)1
Diz também Santo Tomás de Aquino a propósito da
concordância da divina providência com a liberdade:
O governo de todo governante prudente se dirige a
lograr, aumentar ou conservar a perfeição das coisas governadas. Logo mais há
de conservar a providência quanto é perfeito que quanto é imperfeito ou
defeituoso. E nas coisas inanimadas a contingência das causas procede de
imperfeições e defeitos; pois segundo sua natureza estão determinadas a um só
efeito que sempre logram, a menos que haja algum impedimento, ou se haja
debilitado sua capacidade, seja por influência de algum agente externo seja por
uma falta de disposição da matéria(…) Mas a contingência da vontade como causa
procede da sua perfeição; porque não está determinada a uma só ação, mas pode
produzir este ou aquele efeito, pelo que é contingente em relação a um ou a
outro. Logo mais próprio da divina providência é conservar a liberdade
que a contingência nas causas naturais.2
Como se pode comprovar, o pensamento cristão lança
os fundamentos da liberdade humana numa argumentação racional que demonstra que
somente a liberdade infinita de Deus garante a liberdade humana. Sem a
liberdade divina como origem da liberdade humana, o mundo pagão só conheceu a
realidade do fatalismo e do destino cego ou acaso.
No entanto, para compreender bem o problema da
relação entre liberdade e lei, faz-se mister ter presente a noção de liberdade
como a faculdade de escolha, sem reduzi-la à idéia de libertação de um entrave
ou coação. É preciso entender a liberdade como a faculdade de mover-se
livremente a um fim conhecido pela razão. De modo que a liberdade cega ou de
indiferença não é propriamente liberdade, mas defeito, pois a liberdade supõe o
conhecimento de um fim em função do qual o sujeito livre age. Ora, a lei moral
que aponta o bem a ser feito e o mal a ser evitado não constitui em si coação,
mas justamente o conhecimento do fim ou bem em função do qual o ser livre age.
Sem este conhecimento o ser livre não agiria.
O problema é que a razão apresenta à vontade vários
bens parciais, de modo que o homem deve escolher os bens aptos a conduzi-lo ao
fim último. Por conseguinte, a lei moral não tem natureza de coação mas de luz
que permite ao homem agir em busca de um fim.
Como se vê, a questão de fundo do pensamento de
Nietzsche é de caráter gnosiológico: o homem não conhece racionalmente um fim
último mas apenas bens parciais em torno dos quais se excita a vontade de poder
num vitalismo antiintelectualista.
Em conclusão deste capítulo vale citar as palavras
do pensador católico Lacordaire: “Entre o forte e o fraco, a liberdade
escraviza, a lei é que liberta.” Creio que este pensamento ilustra as
conseqüências a que conduzem o ideal aristocrático e o conceito de liberdade
sem lei defendidos por Nietzsche.
Conclusão
Confrontando a crítica à religião formulada por
Nietzsche com as críticas mencionadas no capítulo dois deste artigo, pode-se
verificar que o autor de Assim falou Zaratustra apresenta
sérias lacunas de natureza hermenêutica e metodológica em seu discurso.
Com efeito, ao contrário de outros filósofos que
desenvolveram uma argumentação racional contra a religião, tentando provar a
inexistência de Deus e a corruptibilidade da alma humana e, conseqüentemente, a
inutilidade da religião, Nietzsche desfecha seu ataque sem nenhum fundamento
filosófico, sem nenhuma argumentação, mas simplesmente com base em afirmações
gratuitas.3 De maneira que se pode, com boas razões, duvidar do
valor filosófico de sua crítica, ressalvada sua qualidade literária e
estilística.
Sem oferecer nenhuma demonstração lógica da
inexistência de Deus, Nietzsche limita-se a afirmar a incompatibilidade entre a
vida e Deus, entre Deus e a liberdade do homem, entre o cristianismo (religião
do rebanho e do fracos) e o espírito aristocrático dos fortes, etc. Ora, isto
só poderia ser tomado em consideração se o pensador, efetivamente, provasse que
a religião não passa de um tecido de ilusões e mentiras. Mas Nietzche cinge-se
tão somente a uma superficial análise da história das religiões.
Não se pretende neste artigo produzir uma apologia
do cristianismo que responda às críticas de Nietzsche mas apenas sublinhar a
sua falta de embasamento racional, a sua falta de moderação nos termos
empregados. Tudo isto está a indicar problemas de outra ordem, concernente à
vida pessoal do autor.
Em conclusão creio poder dizer que a chave de
leitura da crítica de Nietzsche à religião se encontra em um dado de sua
biografia: a sua formação luterana. Para compreendê-lo em seu ódio à religião é
preciso levar em conta que ele tinha diante dos olhos a teologia luterana com
sua tese pessimista da total corrupção da natureza humana incapacitada de
qualquer obra de valor para a salvação. Ora, uma visão tão lúgubre da vida
humana tinha todo potencial para engendrar uma reação. Infelizmente, a reação
de Nietzche foi descomedida e passional.
Bibliografia
NIETZSCHE, F. W. Assim falou
Zaratustra, Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro, 1998.
COPLESTON SJ, F. Nietzsche, filósofo da
cultura, Livraria Tavares Martins, Porto, 1953.
CERRUTI SJ, P. A caminho da verdade suprema,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ, 1965.
MONDIM, B. Quem é Deus? Elementos de
teologia filosófica, Paulus, São Paulo, 1997.
REALE, G., ANTISERI, D. História da
Filosofia. Paulus, São Paulo, 1990.
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra los
gentiles, Editorial Porrua, México, 1985.
ZILLES, Urbano. Filosofia da
Religião. Paulus São Paulo, 1999
_________
1 Tomás de Aquino, Suma contra los gentiles,
Editorial Porrua, México, 1985, capítulo LXX
2 Tomás de Aquino, Suma contra los gentiles,
capítulo LXXIII
3 No mesmo sentido diz, a propósito da crítica de
Nietzsche, Urbano Zilles em sua obra Filosofia da Religião: “A
possibilidade de explicar a religião e a fé em Deus psicologicamente não exclui
a possibilidade de encontrar uma realidade na experiência religiosa, uma vez
que o encontro com a realidade também tem pressupostos psicológicos. Desta
maneira, a fundamentação psicológica de seu ateísmo é insuficiente.
(….)
Simplesmente nega toda a realidade metafísica para
negar a existência de Deus e da alma. (…) Nietzsche nega tanto a certeza da fé
como a certeza da razão. Com isso, a rigor, não há certeza nenhuma. Nada é
certo. Este niilismo atinge não só a atitudo ou certeza subjetiva, mas também a
objetiva. Nietzsche não só discute sobre onde se situa uma certeza última – na
fé ou na razão, no sujeito ou no objeto – mas conduz toda esta problemática ao
absurdo.” Cf. ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião, Paulus,
São Paulo, 1999, p. 181 e 183.
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