Na Igreja Católica, a justificativa da liturgia se encontra na fé depositada nos sacramentos, em particular
no sacramento da Eucaristia. Se fosse a Eucaristia desprovida da consistência
sobrenatural que lhe consigna a fé imutável da Igreja, seria igualmente
desprovida de realidade e de valor a liturgia. Daí, se quisermos chegar a
alguma conclusão séria acerca da atual subversão do culto, devemos recordar os
ensinamentos da Tradição e do Magistério sobre o sacramento do altar.
Enunciam-se tais ensinamentos em quatro proposições:
1. Diferente dos outros sacramentos, o rito sacramental da
Eucaristia não só confere a graça mas, a fim de conferi-la, torna o autor da
graça presente;
2. Não há realidade superior à presença do Senhor em Corpo e
Sangue, alma e divindade, como acontece na transubstanciação: já não existem o
pão e o vinho, mas em seu lugar, sob as espécies ou aparências, está o Senhor,
na realidade única de Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado em favor
de nós. No milagre da transubstanciação, o Senhor está tão presente nas santas
espécies quanto estivera na manjedoura, aos braços da Virgem Maria, e está à
direita do Pai na glória dos céus;
3. Terceira proposição de fé sobre este sacramento adorável:
diferente dos outros sacramentos, que nos ministram – e com que liberalidade! –
os frutos particulares do Sacrifício único e definitivo oferecido no Calvário,
este em particular não somente ministra aos homens os méritos da cruz, mas
também contém verdadeiramente o sacrifício da cruz, de que se faz memória;
contudo, a maneira por que se faz – ou seja, pela consagração em separado do
pão e do vinho – atualiza, através da transubstanciação, a oferenda do corpo do
Cristo imolado e do sangue derramado. Assim, a maneira por que se faz a memória
é tal que o sacrifício da cruz se torna presente; este não é outro sacrifício,
não é sombra inconsistente ou representação oca, senão aquele mesmo sacrifício,
exatamente aquele, com o mesmo sacerdote e a mesma vítima, diferente sendo
apenas a maneira de oferecê-lo;
4. Enfim, quarta proposição: tão excelso é este sacramento, em
comparação aos outros, e de tão especial natureza, que já não lhe basta o
caráter batismal para atualizá-lo. Antes, é mister um poder e caráter singular,
como singulares são as maravilhas do amor redentor que se atualizam aqui; para
que se leve a efeito a Eucaristia, é mister haver recebido um poder particular,
por via hierárquica, Daquele que é o sacerdote único, soberano e eterno: é
mister o caráter sacerdotal e a elevação à dignidade de padre.
Recordando-me
desta doutrina certíssima e irrevogável da Madre Igreja e observando as
transformações, convulsões e experiências peculiares do que atualmente ousam qualificar
de renovação litúrgica,
sou como que forçado a concluir que esta balbúrdia
se rege por uma doutrina oposta à doutrina ortodoxa.
Recapitulemos
os enunciados de fé sobre o sacramento da Eucaristia.
Primeiro:
este sacramento está reservado aos padres. Pois bem, quando se vêem meros
fiéis, às vezes mulheres e moças, pegarem no cibório das hóstias consagradas e
no cálice do precioso sangue para comungarem a si e aos outros, como não chegar
à conclusão de que tais novidades favorecem a equiparação entre o simples fiel
e o sacerdote na administração da Eucaristia? Numa perspectiva extrema, tendo em vista que todos nós compartilhamos o nada e
o pecado e que, sem distinção, seremos julgados de acordo com nossa
conformidade a Jesus Cristo, existe igualdade entre fiéis e padres, mas isto é
algo totalmente distinto do que acabamos de descrever. Jesus Cristo resgatou os
homens e fundou a Igreja de tal modo que haja nela uma desigualdade insuperável
entre quem recebeu o poder sobre o corpo eucarístico e quem não o recebeu.
Segundo:
longe de ser memorial sem a substância do sacrifício da Sexta-Feira Santa, ou
cuja virtude medir-se-ia pela intensidade da crença pessoal e dos sentimentos
de fervor religioso – a Eucaristia é, ao contrário, um memorial eficaz: a Missa
é o sacrifício da cruz, exatamente aquele, diferente sendo a maneira de
oferecê-lo. Pois bem, se se oferece o
sacrifício do Novo e Eterno Testamento com
fórmulas que é verdade que não negam a realidade da oblação – e oblação
propiciatória –, porém a mencionam a furto e em língua vulgar, sempre sujeita à
revisão e à livre e freqüente adaptação dos celebrantes, conforme as
“necessidades pastorais”, como não chegar à conclusão de que ignoram a
realidade sacrifical da Missa? É certíssimo que, em várias ocasiões, tivemos de
dobrar vontades que teimavam em negar que a Missa é sacrifício, o santo e único
sacrifício da cruz atualizado em forma sacramental, i. e., em forma de sinal
eficaz.
Em
particular, nas Missas em que a bizarramente chamada “liturgia da palavra”
ocupa espaço descabido, o Cânon e a consagração são ditos à pressa, de modo que
passam quase de imediato da célebre oração
universal a uma comunhão tão
pouco reverente e religiosa quanto possível. Nessas Missas, que tendem a se
multiplicar, tem-se a clara impressão de que o sacramento da Eucaristia, com
ser um tipo de refeição, já não é mais sacrifício. Aqui as novas práticas
surgem como o veículo duma heresia temível: dão elas a idéia de que a presença real
e a transubstanciação são teorias doutra era, diferentes da verdade de fé que
ultrapassa as idades e se impõe aos séculos como a fonte e o princípio da
salvação. Quando se observa a negligência e a irreverência com que se trata o
tabernáculo, a abolição programática das saudações e das procissões, a
supressão das inclinações e genuflexões da Missa e de todos os sinais de
adoração, chegamos à conclusão seguinte: Se não fosse a Eucaristia um
sacramento adorável, se não estivesse ali o Senhor de fato tão presente quanto
está à destra do Pai, se a Eucaristia se reduzisse a uma refeição sem presença
real e sem sacrifício, cujo objetivo fosse apenas proporcionar uma reunião
amistosa e algo religiosa –os padres
fariam justamente o que eles fazem hoje em dia.
Eles não
acreditam mais na Eucaristia do Senhor, pois não acreditam mais no Seu amor e
na qualidade sobrenatural, divina e transcendente deste amor. Com efeito,
porquanto Deus ama como Deus, os sacramentos – sobretudo a Eucaristia – guardam
a consistência de sinais eficazes em ordem à salvação e de portal para a vida
sobrenatural e eterna.
É tal a
qualidade sobrenatural e transcendente do amor de Deus que não devemos nunca
nos esquecer dela, se nos indispomos contra a atual subversão litúrgica; e é
tão firme esta verdade de fé, que ela há de comandar nossa resistência e
torná-la invencível, já que antes do mais terá a mesma verdade de fé comandado
e iluminado nossa vida interior. Consideremos os sacramentos a partir dessa
perspectiva soberana. Porque era necessário que o Cristo imolado, o Santo de Deus, não conhecesse a
corrupção, mas antes ressuscitasse e fosse glorificado à direita do Pai, devia
ele nos privar de Sua presença visível, visto que a Ascensão convinha para a
intensificação e purificação de nossa vida teologal. Noli me tangere... nondum ascendi ad Patrem
meum... Por outro lado,
porque a natureza ferida estava deslumbrada com o visível, o sensível e os bens
da terra, convinha acima de tudo que o Cristo, lá do alto dos céus, espargisse
as graças entesouradas em Seu coração ferido e as comunicasse, não a puros
espíritos, mas antes a pobres homens carnais, valendo-se de instrumentos
terrestres e instituindo a adequada ordem de sinais que nos transmitisse Sua
graça – eis aí a justificativa da ordem sacramental. No batismo, o Cristo nos
comunica a graça purificante e renovadora, graça a que fez jus no sacrifício da
cruz e que nos infunde por intermédio da água que lava e purifica. Deste modo,
a graça, cujo efeito imediato é limpar as almas do pecado e renová-las,
ser-nos-á comunicada num rito de ablução com água pura, à recitação das
palavras que nos ditou o Senhor.
Assim, a
graça que o sacrifício da cruz mereceu e bem possui a propriedade de
repurificar o pecador que reincidiu em pecado mortal – se a perdermos por causa
dos pecados cometidos após o batismo, o rito da penitência (a humilde confissão
das faltas, a manifestação do arrependimento e a recitação da fórmula
apropriada, que cabe ao padre, ministro que é do Bom Pastor e do Supremo Juiz)
vai no-la comunicar novamente.
Seria ainda
lícito considerar os demais sacramentos como sinais sensíveis da graça,
apropriados a nossa condição de pecadores resgatados; todavia, restaria ainda
um problema: se pelos sacramentos o Cristo, escondido sob estes sinais,
toca-nos salutarmente a alma – não estaria ele mesmo, em Sua sacratíssima
pessoa, se doando a si? Quando uma criança é batizada, por ex., é o Cristo quem
a toca pela água do batismo, à elocução das palavras rituais; entretanto,
permanece o Cristo à destra do Pai, já que se trata da transmissão da graça, e
não da presença e permanência de Sua pessoa, como quando estava Ele na
manjedoura, na cruz ou nas margens do mar da Galiléia. Pois bem, se convém ao
Cristo, que precisou subir aos céus, tocar-nos com os sinais de sua escolha, não
Lhe conviria também que de fato continuasse presente em meio aos fiéis que
peregrinam nas estradas do exílio e morasse neles como alimento celeste? Por
meio da presença e da morada pessoal e substancial, Ele tocá-los-ia de modo
singular e estreitaria os laços duma intimidade perturbadora e incomparável aos
dos demais sacramentos. Enfim, supondo-se que Seu amor dispõe da natural
potência para que de fato Ele continue presente entre nós e em nós faça morada,
não conviria que estivesse realmente em Seu sacrifício? Que o impediria? Mais
ainda, uma vez que Ele fundara a Igreja, sociedade religiosa da graça cristã e
Sua Esposa, a ela caberia apenas o sacrifício do pensamento e da recordação, na
forma de imagem longínqua e figura desprovida de substância em ato? Não
disporia do Sacrifício do Esposo, imolado duma vez para sempre no Calvário? – Quando se vislumbra a
Caridade Divina no comando da economia da salvação, vê-se como o Senhor
respondeu plenamente os problemas – que se impõem com tanta força – da presença
real, do sacrifício sempre atualizado, da comunhão real por que vem o Senhor em
pessoa fazer morada em nós, pela instituição da Eucaristia. Ele instituiu a Eucaristia, e a Igreja
celebra e celebrará, até Seu glorioso advento no fim dos tempos, a presença
real pela transubstanciação, o memorial do único sacrifício que o atualiza de
modo incruento, a comunhão verdadeira e pessoal, a celebração dos mistérios
confiada aos padres, verdadeiros ministros do Cristo e os únicos por que o
Senhor exerce o poder singular da transubstanciação e da atualização do
sacrifício.
Há séculos
que os grandes doutores, os modestos teólogos e o imenso cortejo dos simples
vivenciam essas verdades admiráveis, sobretudo a de que o Santíssimo Sacramento
não se compara aos outros sacramentos, em razão de sua inigualável dignidade, e
de que merece não somente deferência, mas a nossa adoração devota. Desde quando
os apóstolos celebravam as primeiras missas, essa verdade fundamental alimentou
a piedade dos cristãos. Atualmente, os padres e os fiéis que deixam esmorecer a
fé na presença real ou adotam atitudes e trejeitos que a negam na prática
rompem com dois mil anos de vida cristã, ou melhor, com a vida cristã de sempre
– a de ontem, hoje e amanhã – pois que, ao desprezo da fé na Eucaristia, não
existiria vida cristã.
"Tudo
isso é elevado demais", me dizem os senhores, "o povo cristão e os
povos da terra como um todo, que estariam em processo de mutação, exigem
realidades mais acessíveis e práticas. Onde já se viu trazer ao homem do séc.
XX – o homem dos satélites artificiais, da democracia parlamentar e popular e
do planejamento familiar –, uma religião que ainda se refira ao sobrenatural, à
transcendência e à cruz?" “Não rejeitamos a religião”, é o bordão duma
parte do clero, “mas, por favor, o homem novo precisa duma religião nova!...”
Infelizmente, o homem novo não existe; quem sustenta essa espécie de linguagem,
ou de linguagem equivalente, são homens tão novos quanto eu, que os contradigo.
Quais a todos os homens que nos precederam, nós morremos de velhice, acidente,
doença e perseguição ou como vítimas duma guerra qualquer, pois que sempre
haverá doenças e acidentes, tiranias e perseguições, guerras “clássicas” ou
abomináveis guerras subversivas. A novidade está no aperfeiçoamento das formas
de perseguição anticristã e nos meios utilizados nas guerras subversivas; mas
de si tais meios, que decerto são o terror e a mentira, são tão velhos quanto o velho pecado chocado no velho
coração. Não há homem novo ante a morte, as paixões ou as leis invariáveis
e humílimas da aquisição e do progresso da sabedoria e da virtude; não há homem
novo, mas tão-só o homem eterno e a imutável natureza humana.
Em certo
momento da história, naquele dia acima dos dias, aguardado dia entre os séculos
já tão remontados da lei natural e de dois mil anos de lei escrita, o Filho de
Deus em pessoa assumiu a natureza humana no seio da Virgem, revelou os segredos
de Sua própria vida e com Ele os segredos da vida, e nos mereceu por Sua morte
ter parte nessa vida; ressuscitado, subiu aos céus, donde nos comunica a vida
por Sua Igreja e os sacramentos dela, bem como que por ela nos transmite Seus
ensinamentos. Eis aqui toda a religião, e não há séc. XX que resista a isso. A
ordem irrevogável que o Senhor Deus estabeleceu baseia-se na imutável natureza
humana, na transcendência da ordem sobrenatural e seus sacramentos e na sobre eminência
da Eucaristia em relação aos outros sacramentos. Aceitai serdes amados como
quis Deus vos amar: pela eternidade afora, esta é a única coisa importante.
Tradução:
Permanência
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