Amigo e correspondente de São Gregório Magno, exerceu papel primordial na conversão dos visigodos arianos que dominavam a Espanha no século VI
Plinio Maria Solimeo
Apesar de grande santo, não se conhece nenhuma biografia antiga de São Leandro — como sucede, aliás, com a de muitos de seus contemporâneos. Os dados sobre ele são tomados dos escritos de Santo Isidoro, seu irmão, de São Gregório Magno e de São Martinho de Tours.
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Os visigodos |
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Do século III ao V, a Península Ibérica foi alvo de diversos invasores bárbaros germânicos — vândalos, suevos e alanos —, cuja população superou a hispano-romana. No segundo quartel do século V, vencendo outros povos, os suevos conquistaram grande parte da Espanha.
Para recuperar o domínio perdido, Honório, imperador do Império Romano do Ocidente, pediu ao rei visigodo de Toulouse, na França, que defendesse seus direitos diante desses invasores. Assim, em 456, os visigodos penetraram na Espanha como aliados de Roma, derrotando os suevos, tendo alguns deles permanecido no país.¹
Depois, derrotados pelos francos em 507, os visigodos da França passaram em massa para a Espanha, onde estabeleceram seu reino. A capital deste em 526 era Sevilha, passando depois para Toledo.
Foi num país dominado em boa parte pelos visigodos arianos heréticos que por volta do ano de 520 nasceu em Cartagena São Leandro. Ele era o primogênito de quatro irmãos, todos santos: São Fulgêncio, Bispo de Ecija, Santo Isidoro, que sucedeu a Leandro na Sé de Sevilha, e Santa Florentina, abadessa, que dirigia quarenta mosteiros e mil monjas.
São Leandro era filho de Severiano, grande senhor que alguns dizem ser de origem visigótica, mas por seu nome e os de seus filhos o mais provável é que fosse hispano-romano. Severiano deu tão esmerada educação à sua prole, que todos os filhos se tornaram grandes luminares da Espanha da época.
Retirado do claustro para ser Arcebispo de Sevilha
Embora seus muitos êxitos nos estudos pudessem destiná-lo a uma carreira brilhante, São Leandro decidiu fazer-se monge, como quase todos os grandes santos daquele século. Entrou então em um mosteiro de Sevilha.
Mas não pôde gozar por muito tempo a paz do claustro, pois a fama de sua santidade e erudição já o haviam tornado conhecido dos fogosos sevilhanos, que pelo ano de 578 foram buscá-lo para ocupar a Sé arquiepiscopal de Sevilha, então vacante.
Nesse último quartel do século VI a monarquia dos visigodos havia se fortalecido na Espanha. Decidido e empreendedor, o rei Leovigildo (573-586) consolidou esse fortalecimento por meio de várias conquistas importantes.
Em 585, o martírio de Santo Hermenegildo
Para consolidar seu poder, Leovigildo mandou seu filho e herdeiro Hermenegildo representá-lo na antiga capital, Sevilha. Embora fosse ariano como o pai, o príncipe casara-se com Ingunda, filha do rei da Austrásia, que era firmemente católica.
Sob a influência da piedosa esposa e de São Leandro, Hermenegildo acabou convertendo-se à fé católica. E com tal radicalidade, que se tornou campeão da ortodoxia.
Durante a dominação visigótica na Espanha, que durou mais de dois séculos, reinava a perseguição religiosa, por serem hereges os dominadores arianos. A fé católica era perseguida naquelas terras como nunca o tinha sido antes. Assim, “foi grande milagre, sem dúvida, que o ódio sectário dos conquistadores não lograsse vencer a constância dos católicos, e que a Espanha toda não se visse arrastada a uma apostasia geral. A heresia não logrou senão aumentar o número de mártires”, entre esses um santo abade, Vicente, com 12 de seus monges.(2)
Leovigildo, cuja ambição era tornar toda a Espanha ariana, não pôde suportar a defecção do filho. E como este se negasse a ir explicar-se em Toledo, declarou-lhe guerra. Esse pai desnaturado derrotou o filho em combate e mandou prendê-lo. Depois, como Hermenegildo se recusasse a receber a comunhão das mãos de um bispo ariano na cerimônia da Páscoa, mandou decapitá-lo no dia 13 de abril de 585.
São Leandro exilado em Constantinopla
Leovigildo continuou a perseguir rudemente os católicos, exilando muitos deles. Por isso baniu também de seu reino vários bispos, entre eles São Leandro, que foi para Constantinopla, e seu irmão São Fulgêncio.
Mas não pararam aí suas afrontas à verdadeira religião: Leovigildo apoderou-se das rendas das igrejas, anulou os privilégios dos eclesiásticos e mandou matar muitos católicos eminentes, para apoderar-se de seus patrimônios(3).
Do seu exílio em Constantinopla, São Leandro não cessava de lutar contra os hereges. Escreveu dois tratados sobre os erros dos arianos e os fez difundir por toda a Espanha.
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Martírio de Santo Hermengildo |
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Escreveu também um tratado para sua irmã Santa Florentina, De institutione virginum et contemptu mundi (Da instituição das virgens e do desprezo do mundo), “tão belo, tão original, tão natural e judicioso em seu conteúdo, tão fervoroso e puro em sua linguagem, que pode considerar-se como um dos frutos mais delicados da literatura ascética”.(4)
Jogando com o nome da mãe – que também havia terminado a vida no claustro – dirige-se a essa digna irmã, que ele chama de Turtur (andorinha, em latim): “Não queiras ir para o telhado onde a andorinha tem seus filhotinhos. És filha da inocência, do candor, tu que precisamente tiveste a andorinha por mãe. Mas ama muito mais à Igreja, andorinha mística, que todos os dias te engendra para Cristo. Descansa a tua senectude em seu seio, como antigamente descansavas e com ardor te colocavas no regaço da que cuidou da tua infância”.(5)
A amizade entre dois luminares da Igreja
Em Constantinopla, São Leandro ligou-se por estreita amizade ao futuro São Gregório Magno, glória da Igreja e do papado, que era então embaixador do Papa Pelágio II na corte bizantina. Foi a pedido de São Leandro que São Gregório escreveu as suas “Morais”, ou Expositio in librum Job sive Moralium libri, uma série de palestras sobre o Livro de Jó.
Quando os dois amigos voltaram a seus respectivos países, continuaram a comunicar-se através de calorosa correspondência. Assim, quando já no sólio pontifício, São Gregório escreve a São Leandro: “Ausente de corpo, estais sempre presente a meus olhos. [...] Minha carta é muito curta. Ela vos fará ver a que ponto eu estou esmagado pelos processos e tempestades de minha Igreja, pois que escrevo tão pouco a quem mais admiro neste mundo”.(6)
“Produz-se em toda a Espanha uma floração de fé”
Entretanto, no ano de 588, Leovigildo foi atingido por uma enfermidade mortal. Arrependido de tudo o que fizera, mandou chamar os bispos do exílio, entre eles São Leandro, a quem fez guia de seu filho e sucessor, Recaredo. Alguns afirmam que aquele rei, “grande até nos extravios”, teria abjurado a heresia em seu leito de morte. Porém, São Gregório Magno afirma que o rei, “para acomodar-se ao tempo em que vivia, e por medo de seus vassalos, não abraçou a verdade católica com as obras como as conhecia em seu coração”. E assim morreu.(7)
O sangue de Santo Hermenegildo não fora derramado em vão, pois seu irmão Recaredo e todos os seus vassalos abjuraram a heresia ariana, abraçando a fé católica. E “produz-se em toda a Espanha uma floração de fé, uma epifania de vida católica, que estalou delirante no terceiro concílio de Toledo. Era o 4 de maio do ano 589, uma das datas mais gloriosas da História da Espanha”.(8) A tal concílio compareceram todos os bispos submetidos à autoridade de Recaredo, ou seja, da Espanha e da Gália narbonense, num total de 78.
No discurso de encerramento da assembleia conciliar, São Leandro – que como legado do Papa fora sua alma – exclamou: “Novos povos nasceram de repente para a Igreja. Regozija-te, santa Igreja de Deus! Sabendo quão doce é a caridade e quão agradável a unidade, tu não pregas senão a aliança das nações, não suspiras senão pela unidade dos povos. O orgulho dividiu as raças com a diversidade das línguas; é preciso que a caridade as volte a unir. [...] Alegra-te e regozija-te Igreja de Deus, que formas um só corpo com Cristo; veste-te de fortaleza, enche-te de júbilo, porque cessaram tuas lágrimas, lograste teus desejos, depuseste tuas vestes de luto; entre gemidos e orações, concebeste, e, depois dos gelos, as chuvas e as neves, contemplas a doce primavera dos campos, cheios de flores e pendentes dos ramos da videira. [...] Gemíamos quando nos oprimiam, mas aqueles gemidos são agora nossa coroa”.(9)
“Assim efetuou-se na Península, sob os auspícios de um grande Papa e de um grande Bispo, dois monges e dois amigos, o triunfo dessa ortodoxia da qual o povo espanhol foi, durante dez séculos, o paladino, e da qual ele guardou, mesmo no seio de sua decadência, o instinto e a tradição”.(10) Os historiadores consideram que foi depois dessa conversão que a cultura visigótica atingiu seu zênite na Espanha.
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Relíquia de São Leandro |
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“Homem de suave eloquência e eminente talento”
Irmão e sucessor de São Leandro na Sé de Sevilha, dele escreveu Santo Isidoro: “Esse homem de suave eloquência e eminente talento, brilha de um modo especial por suas virtudes e por sua doutrina. Por sua fé e zelo, o povo visigodo foi convertido do arianismo à fé católica”.(11)
Como São Gregório Magno, São Leandro sofreu muito no fim da vida por causa da gota. De maneira que ele se dirige assim ao Sumo Pontífice: “Escreve-me vossa santidade que a gota vos aflige, e eu tenho tão contínuas dores dela, que estou muito debilitado e quase consumido. Mas facilmente nos consolaremos se, entre os açoites de Deus, recordarmo-nos de nossos pecados, e entendermos que não são açoites, mas dons do Senhor, para que paguemos os deleites da carne com as dores da carne”.(12)
São Leandro morreu octogenário no dia 27 de fevereiro de 603. Depois de inúmeras trasladações, seu corpo foi finalmente inumado na Catedral de Sevilha, onde repousa junto ao corpo do imortal rei São Fernando III, que reconquistou essa cidade das mãos dos mouros.
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Notas:
2. Edelvives, San Hermenegildo, Editorial Luis Vives, S.A., Saragoça, 1947, tomo II, p. 443.
3. Cfr. Pe. Pedro Ribadeneira,S.J., Flos Sanctorum, in Eduardo Maria Vilarrasa, La Leyenda de Oro, L. González y Compañia, Barcelona, 1896, tomo I p. 488.
4. Frei Justo Perez de Urbel, O.S.B., San Leandro de Sevilla, Año Cristiano, Ediciones Fax, Madri, 1945, tomo I, p. 379.
5. Edelvives, op. cit. p. 586.
6. Les Petits Bollandistes, Saint Léandre, Vies des Saints, Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, Paris, 1882, tomo III, p. 48.
7. Ribadeneira, op. cit. p. 488.
8. Urbel, op. cit. p. 377.
9;. Id. pp. 378-379
10. Bollandistes, op. cit. p. 49.
11. De script. eccles., XXVIII, in Pierre Suau,St. Leander of Seville, The Catholic Encyclopedia, CD Rom edition.
12. Ribadeneira, op. cit. p. 489.
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