Seja por sempre e em todas partes conhecido, adorado, bendito, amado, servido e glorificado o diviníssimo Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

Nota do blog Salve Regina: “Nós aderimos de todo o coração e com toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a manutenção dessa fé, à Roma eterna, mestra de sabedoria e de verdade. Pelo contrário, negamo-nos e sempre nos temos negado a seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II, e depois do Concílio em todas as reformas que dele surgiram.” Mons. Marcel Lefebvre

Pax Domini sit semper tecum

Item 4º do Juramento Anti-modernista São PIO X: "Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve. Condeno também todo erro segundo o qual, no lugar do divino Depósito que foi confiado à esposa de Cristo para que ela o guardasse, há apenas uma invenção filosófica ou produto de consciência humana que foi gradualmente desenvolvida pelo esforço humano e continuará a se desenvolver indefinidamente" - JURAMENTO ANTI-MODERNISTA

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Eu conservo a MISSA TRADICIONAL, aquela que foi codificada, não fabricada, por São Pio V no século XVI, conforme um costume multissecular. Eu recuso, portanto, o ORDO MISSAE de Paulo VI”. - Declaração do Pe. Camel.

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Ao negar a celebração da Missa Tradicional ou ao obstruir e a discriminar, comportam-se como um administrador infiel e caprichoso que, contrariamente às instruções do pai da casa - tem a despensa trancada ou como uma madrasta má que dá às crianças uma dose deficiente. É possível que esses clérigos tenham medo do grande poder da verdade que irradia da celebração da Missa Tradicional. Pode comparar-se a Missa Tradicional a um leão: soltem-no e ele defender-se-á sozinho”. - D. Athanasius Schneider

"Os inimigos declarados de Deus e da Igreja devem ser difamados tanto quanto se possa (desde que não se falte à verdade), sendo obra de caridade gritar: Eis o lobo!, quando está entre o rebanho, ou em qualquer lugar onde seja encontrado".- São Francisco de Sales

“E eu lhes digo que o protestantismo não é cristianismo puro, nem cristianismo de espécie alguma; é pseudocristianismo, um cristianismo falso. Nem sequer tem os protestantes direito de se chamarem cristãos”. - Padre Amando Adriano Lochu

"MALDITOS os cristãos que suportam sem indignação que seu adorável SALVADOR seja posto lado a lado com Buda e Maomé em não sei que panteão de falsos deuses". - Padre Emmanuel

“O conteúdo das publicações são de inteira responsabilidade de seus autores indicados nas matérias ou nas citações das referidas fontes de origem, não significando, pelos administradores do blog, a inteira adesão das ideias expressas.”

10/04/2018

Por Cristo, com Cristo, em Cristo


“Regi saeculorum immortali et invisibili soli Deo honor et gloria in saecula saeculorum, amem” (Ofício de Matinas).

Júlio Fleichman
“Tudo aquilo que nos torna dignos de ser amados aos olhos de Deus nos vem d’Ele mesmo e só nos pode ser dado por seu amor soberanamente livre e gratuito. Digno de ser amado é o Bem, e nenhum bem, seja de que natureza for, pode vir senão da Bondade essencial, fonte de todo bem. De toda a eternidade Deus ama necessariamente esta Bondade infinita que é Ele mesmo, nela encontra sua beatitude essencial. Ele não tinha nenhuma necessidade de nos criar, porque Ele não é maior, nem mais feliz, nem mais sábio por ter criado o universo (ver S. Tomás, 1, q. 19, a. 3). Mas Deus quis manifestar sua bondade livremente, fazer-nos participar das riquezas que estão n’Ele. Ele quis raiar, como o sol; como o rouxinol enche o ar com seu canto, assim quis Ele cantar para fora de Si mesmo, para outras inteligências e outras vidas, suas perfeições infinitas. ‘Coeli ennarant gloriam Dei.’ O amor de Deus é criador: longe de supor que são dignos de ser amados os seres que Ele ama, Deus cria neles a amabilidade por um bem-querer puro, soberanamente livre e gratuito (I. q. 20, a. 3). É por este amor gratuito que Deus nos deu a existência, a vida do corpo, a vida da alma espiritual e imortal; é por amor que Ele no-las conserva livremente, que nos dá a cada instante o socorro indispensável para que possamos fazer os atos de inteligência e vontade indispensáveis à conquista da verdade e do bem. Mesmo aquilo que parece ser exclusivamente nosso, a livre determinação pela qual escolhemos o bem de preferência ao mal, mesmo isso nos vem dele. De nós, com exclusividade, provém apenas a desordem, a fraqueza que se mistura freqüentemente a nossos atos e que exige apenas uma causa deficiente (I, IIa., q. 79, a. 1 e 2). Mas, quando escolhemos o bem, é Deus, causa primeira, inteligência primeira, primeira liberdade e fonte de todo o bem, que no-lo faz escolher vitalmente e livremente (ver  I, q. 19, a. 8 e também q. 83, a. 1, dif. 3). Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos. Se retirássemos de nossa vida, de nossos atos tudo aquilo que provém dele, no mais estrito rigor das palavras não sobraria absolutamente nada. Este é o fundamento da virtude cristã da humildade: o dogma da criação ex nihilo e o da necessidade da graça para o menor ato de salvação. Assim, Deus nos amou de toda a eternidade e manifestou este amor no instante da criação, instante que se renova pela criação quotidiana de almas, que se renovou pela criação de nossa alma individual, a qual Deus conserva livremente neste minuto presente, depois de ter criado. Por amor Ele deu, originariamente, a vida natural ao primeiro homem, que no-la devia transmitir; mas Ele lhe deu também, por um amor ainda mais gratuito, a vida da graça, que ultrapassa sem medida a vida natural da alma e a dos anjos mais perfeitos, porque ela é uma participação na vida divina propriamente dita. Ele deu ao primeiro homem, para no-la transmitir, a semente da vida eterna, que consiste em contemplar a Deus como Ele se contempla e a amá-lo como Ele se ama. Esta graça santificante, semente da glória, o primeiro homem perdeu-a, para si e para nós (Concílio de Trento, ses. V, Denziger 789), do mesmo modo que a havia recebido para si e para nós (I, q. 95 e q. 1 00 e I, II, q. 81).”
Este texto, de Garrigou-Lagrange (L'Amour de Dieu et la Croix de Jesus, t. I, pág. 45, Ed. du Cerf), em sua beleza e simplicidade, exprime de algum modo, conforme pode um ser humano tentar fazê-lo, a grandeza, a suma perfeição, a infinita riqueza de Deus; por outro lado, exprime sua inimaginável bondade, com a qual cria o que não é de si desejável senão porque Ele o torna digno de amor.
Deus, em sua infinita riqueza de perfeições, inclui em si todas e quaisquer perfeições, quer as suas, quer as dos seres que Ele cria e que nada mais são do que reflexos, participações nas perfeições dele. Mas Ele é, nessa infinita superabundância de todas as perfeições, a suma simplicidade, algo assim como o raio de pura luz que sabemos, pela análise do prisma, conter todas as gamas de cor. De todas as perfeições, das mais modestas e fugazes, o brilho momentâneo que um fio de cabelo humano mostra, uma pétala de rosa logo fanada, até as mais sublimes perfeições divinas, as mais misteriosas, que nem podemos conhecer porque não nos foram reveladas, de todas elas não podemos dizer que Deus as tem, e sim que Ele as é. Deus, sumamente simples, não comporta divisões em partes nem está sujeito a mudanças. Dele não podemos dizer que é bom, mas que é a própria Bondade. Não é apenas verdadeiro, mas a própria Verdade subsistente (cf. St. Tomás, I, q. 3a, 1 a 8).
Ser puramente espiritual, eterno e infinito, Deus, como todos os seres espirituais que Ele cria à sua imagem e semelhança, conhece e ama. Sendo suma perfeição infinita que inclui todas as perfeições, Ele se contempla infinitamente e eternamente e se ama infinitamente e eternamente. E se exprime a Si mesmo num Verbo eterno, seu Filho, que gera eternamente, nesse “hodie” que o salmo inspirado e a liturgia que o usa nos fazem cantar. O Pai e o Filho se contemplam na sua única e mesma natureza e se amam num só amor. O Amor do Pai e do Filho é, como eles, uma Pessoa subsistente na mesma e idêntica natureza. O amor que une as três pessoas divinas é um amor que possui eternamente aquilo que ama, é um amor que se compraz no gozo, no júbilo, na felicidade eterna e infinita (cf. S. Tomás, I, q. 19, a. 1, sol. 2). É assim evidente que Deus de nada precisa e, como diz o teólogo, não fica mais rico em perfeições, em sabedoria, em ser pelo fato de criar.
É por ser perfeição pujante que Deus esplende além de Si mesmo. O Bem é, de si, difusivo, dizem os filósofos. Quer o Senhor esplender além de si mesmo, porque de tal modo é digno de admiração e amor que até os seres inferiores que não existem mas poderiam existir são, digamos, exigidos pela Justiça, para que sobre eles raie a luz desse sol e para eles ecoe o som desse canto.
O amor de Deus, como diz o mesmo teólogo no mesmo livro (pág. 256), é feito de “Misericórdia e Justiça, as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus”. Se da Justiça temos possibilidade de, por analogia com o que conhecemos, compreender de algum modo alguma coisa, a Misericórdia é algo de inimaginável, de incompreensível em sentido mais amplo que o dos outros mistérios. Pela Misericórdia o superior se inclina diante do inferior; o perfeito, diante do deficiente; o feliz, diante do que padece. Quando compreendemos que Deus, eternamente e infinitamente transportado de espanto e admiração se contempla a Si mesmo, eterna e infinitamente se ama a Si mesmo num amor infinito de gozo e felicidade, mas também teve como pena, piedade dos seres espirituais que poderiam existir e existindo poderiam contemplá-lo como Ele se contempla, amá-lo como Ele se ama e gozá-lo como Ele se goza, então nossa surpresa e nosso espanto perdem toda e qualquer medida. E, no entanto, se Deus teve misericórdia e se inclinou diante do que não era, esse estupor que já nos fez perder a medida tem ainda maior grandeza, mais ainda nos submerge e nos excede por todos os lados. Deus concebe de toda a eternidade, por eterna Misericórdia, a existência de seres espirituais criados, anjos e homens. Mas há, digamos assim, uma dificuldade de início. Se o amor de Deus é Misericórdia, é também Justiça. Não se pode conceber que o Ser que é Suma Perfeição e, portanto, infinita e eternamente perfeito seja contemplado e amado senão como Ele merece, sob pena de se ter a Justiça ferida. A contemplação e o amor de Deus só podem ser, para serem justos, eternos e infinitos por sua vez. E, é claro, nenhuma criatura pode amar a Deus como Ele merece ser amado em rigor de justiça. Nenhuma lhe pode dar amor eterno, porque não são eternas, nem amor infinito, porque não são infinitas.
A Misericórdia de Deus foi, portanto, mais adiante e não deixou de, atendendo à Justiça, executar o decreto eterno que concebe a Criação. Deus quer de toda eternidade que haja criaturas espirituais que possam participar de sua felicidade. Concebe-as segundo uma ordem admirável: seres puramente espirituais, seres que unem num só composto uma substância espiritual e um corpo material, e ainda seres materiais que constituem o lugar, o cenário e os utensílios de que terão necessidade aquelas criaturas e que por meio delas como se dirigirão, também os mesmos seres sem razão, a seu Criador. Além de conceber as criaturas espirituais, Deus as associa à sua própria obra de criação: anjos que executam seus mandados, e homens que colaboram na completação do número de filhos dos homens que irão atender ao convite formulado para o banquete a que foram convidados.
É ao Verbo, Sabedoria de Deus, que é cometida eternamente a concepção dessas criaturas. Concebidas eternamente para começar a existir no tempo e com o tempo, as criaturas começam, e com elas o seu próprio começar. A criação se faz do nada, quanto à coisa e quanto ao tempo.
Mas como foi atendida a Justiça que pede que a criatura contemple e ame infinita e eternamente Aquele que é infinito e eterno? Disse o Filho: “Eis-me aqui” (Hebr X, 7); “Deus tanto amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo III, 16). Aquela Misericórdia que nos submergiu de espanto vai ao ponto de um sacrifício abismal, inenarrável, incomensurável. O Verbo, Deus de Deus, infinitamente perfeito, que encerra em si toda a Majestade e Grandeza, toda a Glória e Poder, além de se inclinar por misericórdia diante do nada, do inferior, do que poderia ser mas não é, assume uma criatura, escolhida para pináculo da criação, jóia de acabamento, última, mais perfeita e principal obra-prima da obra-prima que é a Criação toda.  
A assunção pelo Verbo dessa criatura que será o elemento de ligação, a ponte lançada sobre os abismos infinitos que separam o Incriado dos seres que Ele cria, é uma inaudita invenção de Deus, pela qual Sua Misericórdia introduz, em união substancial com sua própria natureza infinita e eterna, outra natureza, finita e contingente. É uma união substancial de tal modo completa, que aquilo que essa natureza de criatura fizer serão atos da Pessoa divina que a adotou, compondo com ela, nessa íntima união, um só ser, sem destruir, sem diminuir em nada a realidade dessa criatura como tal. A Pessoa do Verbo, Deus de Deus, tem assim faculdades de criatura. Além de se contemplar em Si mesmo e se amar a Si mesmo eternamente e infinitamente, contempla-se e ama-se com atos de criatura aos quais empresta valor infinito e eterno. A Justiça de Deus está assim atendida. Desembaraçada a Misericórdia de Deus, o Amor de Deus esplende e radia, sobretudo, em primeiro lugar, antes que sejam lançados os alicerces do mundo e contidas as águas dos abismos, sobre o prelúdio das criaturas, pelo qual a Sabedoria de Deus diz que encontra suas delícias em brincar com os filhos dos homens aos pés de Deus (Prov 8, 31). Fundamento primeiro da obra da criação, e que a torna possível, esta invenção de Deus é também seu acabamento último. Por ela é que o convite às criaturas desejadas pela Misericórdia — convite para que contemplem a Deus como Ele se contempla e amem a Deus como Ele se ama — se fará. Por esta criatura, nela e com ela é que a Deus se dá toda a honra e toda a glória. Por ela é que a criatura atenderá à Justiça de Deus entregando-se toda, sem absolutamente nenhuma reserva, numa oblação que, ao contemplar e amar a Deus, se submete inteiramente à Sua vontade, a Ele adora, como requer esta mesma Justiça.
“Toda a Tradição está de acordo em reconhecer que a união hipostática confere à humanidade de Cristo uma santidade especial, eminente e, ao mesmo tempo, distinta da santificação que dá a graça habitual. Esta santificação os Padres da Igreja vêem como uma unção que a humanidade recebe da divindade, em virtude de sua união substancial ao Verbo divino, o que faz de Jesus o Ungido de Deus, o Santo de Deus por excelência... No Cristo, diz S. Tomás, em que a natureza humana está junto com a divindade na unidade do ser hipostático, há perfeita e plena união a Deus, de tal modo que todos os atos da natureza humana, assim como da natureza divina, são atos do ser que as une. O Cristo foi, portanto, cheio de graça não no sentido de ter recebido um dom gratuito especial, mas no sentido de que Ele é o próprio Deus (Coment. s/S. João, cap. 1, lic. 8).
***
“A união hipostática se realiza na ordem do ser [...]. Estamos pois diante de uma verdadeira consagração da humanidade de Cristo à divindade; consagração substancial [...]. E não é sem razão que se chamou a esta consagração de Unção, para assinalar a íntima compenetração da humanidade pela divindade [...].
“A união hipostática se realiza na ordem do ser e não na ordem das operações, pois ela vincula a humanidade a Deus sob a relação da subsistência divina e não muda em nada esta humanidade em sua essência e em suas faculdades de agir[...]. Consagrado a Deus em sua própria substância, o Cristo, em sua humanidade, está posto ao serviço de Deus, deputado a seu culto, do modo mais elevado possível. As outras criaturas não são consagradas a Deus senão por uma santificação que lhes é dada depois que são postas na existência [...]. A humanidade do Cristo, ao contrário, é consagrada a Deus desde o principio, porque ela não existe e não pode existir senão unida ao Verbo; sua consagração é absoluta [...]. O Cristo, em sua humanidade, não se pertence, é de Deus; toda a sua vida, do primeiro ao último instante, todos os seus atos, todos os seus empreendimentos, todos os sofrimentos não podem ser senão para a glória de Deus e para contribuir para sua homenagem; são, com efeito, os atos e a vida do próprio Verbo” (V. Heris, O.P., “A Santidade do Cristo”, Apêndice ao vol. II, Suma Teológica de S. Tomás, III, q. 7/15, Désclée & Cia.).
Pela assunção de uma criatura como integrante de Si mesmo, o Verbo se oferece a Deus, ao Pai, a Si mesmo e ao Espírito Santo, em ato de adoração que é um ato de criatura mas também, por ser ato do Verbo, um ato infinito e eterno. Concebido desde toda a eternidade para se consumar no tempo por criar, o Cristo satisfaz plenamente tudo aquilo que a Deus é devido. Ora, a noção de sacrifício e adoração exprime que Deus é e que a criatura não é.
“Para exprimir a infinita grandeza de Deus, seu soberano domínio e, por oposição, nossa fraqueza e nosso nada, o homem se oferece a Deus, oferecendo-lhe uma coisa exterior que ele consome, que ele aniquila de algum modo como para dizer: Deus é o único que é, eu sou aquele que não é. Esta destruição simbólica canta, à sua maneira, a infinita grandeza do Altíssimo. E este Sacrifício de adoração deveria existir mesmo que a homem não tivesse pecado”(Garrigou-Lagrange, L´Amour de Dieu..., op. cit., tomo II, pág. 758).
Estas últimas palavras, destacadas por nós, evocam as considerações que até aqui procuraram mostrar, antes de qualquer referência ao pecado, que a própria idéia de Criação, de pôr na existência criaturas contingentes, exigiria por razão da Justiça — dado que Deus é suma perfeição, infinita e eterna — que estas criaturas lhe prestassem, infinita e eternamente, todo o espanto de admiração e todo o amor dedicado e toda a adoração que correspondem à perfeição de Deus. Ora, esta contemplação amorosa e adorante, para ser infinita e eterna, requereria que uma criatura pudesse, apesar de começar no tempo e com o tempo, fazê-lo eternamente e, apesar de limitada, fazê-lo infinitamente.
S. Paulo, na epístola aos Colossenses, I, 20, diz palavras misteriosas:  
“Porque foi do agrado [de Deus] que residisse n’Ele toda a plenitude e que por Ele fossem reconciliadas conSigo todas as coisas, pacificando pelo sangue de sua cruz tanto as coisas da terra como as coisas do céu.”
E ainda:
“[...] a fim de tornar conhecido o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que tinha estabelecido conSigo mesmo, de restaurar em Cristo todas as coisas quando tivesse chegado a plenitude dos tempos, assim as que há no céu como as que há na terra” (Efésios, I, 10).
A reconciliação quanto às coisas da terra tem um sentido bem claro, mas quanto às coisas do céu, isto é, quanto aos anjos — que também com Cristo, no Cristo e pelo Cristo adoram a Deus — a palavra “reconciliação” tem de ser entendida de modo diferente, já que quanto aos anjos não se pode falar em arrependimento, reconciliação, redenção. Os anjos são de tal modo senhores de suas faculdades, lúcidos na visão intuitiva e íntegros na decisão da vontade, que para eles a prova a que foram submetidos implicou uma única e definitiva sorte: o céu ou o inferno para sempre. Todos os teólogos estão de acordo que, a partir de poucas mas impressionantes referências do Antigo e do Novo Testamento, podemos saber que os anjos foram submetidos, também eles, a uma prova que para uns, os anjos bons, significou humilhar- se diante da graça de Deus, apesar da excelência da natureza deles, por que podiam ver diretamente; para outros, os anjos maus, o grito“Non serviam” de Satanás. Para uns, a eterna bem-aventurança, e para os demônios, no inferno a que foram lançados como estrelas cadentes do alto dos céus, os abismos infernais.
Se não cabe, portanto, a rigor, falar em reconciliação a propósito dos anjos, cabe falar em conciliação e sobretudo ver nos textos citados o fato indiscutível de que é no Cristo que esta conciliação das coisas do céu se faz. Se considerarmos que a Criação se constitui de anjos e homens, ver-se-á que é o Cristo a base, o fundamento que estrutura, concilia, arma e sustenta a obra de Deus. Por outro lado, é em virtude da superabundância infinita da adoração e da antecipada oblação que se consuma no tempo, num sacrifício reparador, que o próprio pecado, de anjos e homens, foi permitido. Sim, porque, segundo um princípio de teologia bem compreensível, Deus não pode permitir o mal senão em vista de um bem maior. Tanto o pecado original, que nos transmitiu uma condição decaída, como o pecado do anjo só foram permitidos porque houve esta suprema manifestação da Misericórdia de Deus que é a assunção de uma criatura pelo Criador, assunção que vai ser uma encarnação redentora para os homens, na qual todos os direitos da Justiça ficam atendidos. (Ver a respeito Garrigou-Lagrange, op. cit., tomo I, pág. 219.) Pois o plano de Deus, para anjos e homens, inclui a assunção de uma criatura como pedra angular de toda a Criação, de modo que, tornando possível haver criação e permitindo que o pecado ocorra, seja também o Cristo a abóbada final, o fim supremo a que ordenarão toda a sua vida anjos e homens para que, por Cristo, com Cristo e em Cristo, a obra toda de Deus lhe renda a adoração e a glória, o louvor e a ação de graças que lhe são devidos, por todos os séculos dos séculos.
Essa criatura por assumir poderia, teoricamente, ter sido uma natureza angélica, se o pecado não tivesse existido. Com efeito, sendo a natureza angélica a mais perfeita, falando simplesmente, de todas as naturezas criadas, pareceria cabível que o Verbo assumisse a substância de um anjo, para que, por esta natureza superior tornada divina, as naturezas inferiores adorassem, honrassem e glorificassem a Deus infinitamente. S. Tomás examina na parte III da Suma, questão 1, art. 3, a hipótese: “Ter-se-ia Deus encarnado se o homem não tivesse pecado?” Ele responde, depois de examinar as diversas ponderações de teólogos, que as coisas que dependem apenas da única vontade de Deus, às quais a criatura não tem direito algum, não podem ser conhecidas por nós senão na medida em que Deus no-las quiser manifestar. Ora, Ele nos manifesta pelas Sagradas Escrituras que a Encarnação se fez em razão do pecado e que parece mais provável crer que sem o pecado a Encarnação não teria ocorrido. Mas, diz ele ainda, “é preciso reconhecer que nem por isso o poder de Deus fica limitado e que Deus poderia ter-se encarnado fora da hipótese da queda”.
Na verdade, a Encarnação — que implica não apenas a assunção de uma criatura pelo Verbo mas a de uma criatura humana — éfeita“propter nos homines et propter nostram salutem”, como está dito no Credo. Mas cumpre notar que a Encarnação não se subordina à Redenção como um meio a um fim superior. O motivo da Encarnação é, sobretudo, um motivo de misericórdia pela qual, como ensina S. Tomás, o superior se inclina para o inferior, não, é claro, para se subordinar a ele, mas para, ao contrário, subordinar o inferior, o homem, a Deus, restaurando e engrandecendo a harmonia original da criação. Em outras palavras, Deus quis, de toda a eternidade, uma Encarnação Redentora em razão da qual a Criação renderia ao Pai, ao próprio Verbo e ao Espírito Santo uma adoração e uma glória infinitas por serem atos do Verbo; digamos mais, em razão da qual o pecado foi permitido, os anjos foram provados, salvos os anjos bons, e os homens, nascidos no pecado e pecadores eles mesmos, foram resgatados da condenação eterna, recebendo, porque Ele veio, uma oportunidade nova e a graça. Com a qual graça podem — agora em situação superior à de Adão — voltar a Deus, oferecendo, mediante a invenção que Deus nos deixou — a Missa — o próprio Cristo Crucificado a Seu Pai, e, com Ele, oferecendo-se a si mesmos. Por esta graça os homens são a Ele unidos pela atração que Ele exerce — “E eu quando for levantado da terra atrairei tudo a mim” (Jô XII, 32) — e pelo modelo que propõe e são por ela submetidos à ação do Espírito Santo, que a Ele conforma e a Ele incorpora progressivamente os membros de Seu corpo místico.
Ensina Garrigou-Lagrange: 
“O motivo da Encarnação foi sobretudo um motivo de misericórdia. É o que nos diz o Credo: ‘Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de coelis et incarnatus est’. Insistindo neste ponto, é fácil responder às objeções apresentadas pelos que admitem a opinião contrária. Tais objeções se resumem nisso: o superior não pode ser ordenado ao inferior, o que ocorreria se o motivo da Encarnação a ordenasse à nossa redenção. É fácil responder segundo S. Tomás: É próprio da misericórdia inclinar o superior ao inferior, não, é claro, para subordinar-se a ele, mas para elevar o inferior, para restaurar e enriquecer a ordem primitiva, a harmonia original. O Verbo, encarnando-se, e por isso mesmo inclinando-se por misericórdia para a humanidade pecadora, longe de se subordinar a ela, subordina-a ao Pai, a Si mesmo e ao Espírito Santo e manifesta do modo mais profundo seu poder absoluto e sua bondade. De toda a eternidade a Misericórdia divina quis a Encarnação como redentora. ‘Ratio miserendi est miseria’. Mas não esqueçamos outro aspecto deste grande mistério: como Deus não pode permitir o mal senão em vista de um bem maior, é preciso dizer que o pecado original foi permitido por causa desta suprema manifestação da Misericórdia que é a Encarnação redentora em que todos os direitos da Justiça são, ao mesmo tempo, resguardados” (L'Amour de Dieu..., t. 1, pág. 219). O autor diz ainda, em outro lugar: “O que Deus quis de toda a eternidade, por um motivo que é formalmente um motivo de misericórdia, não é a Encarnação subordinada à Redenção como um meio a um fim superior, é a Encarnação redentora em vista da qual Ele permitiu o pecado do primeiro homem” (op. cit., vol. II, pág. 736). (Os destaques são do original.)
O motivo de misericórdia, sem o pecado, teria sido apenas o compadecer-se das criaturas que poderiam existir e não existiam, e neste caso a assunção de uma criatura pelo Verbo — necessária sempre, como nos parece, para salvaguardar os direitos da Justiça, prestando a Deus um culto de adoração e glória infinito — poderia fazer-se sem que fosse assumida, necessariamente, uma natureza humana. Mas, dado que apenas o homem e não o anjo pode arrepender-se de seus pecados e aceitar, depois do pecado, o socorro da graça e por ela reencontrar a harmonia original em estado superior ao da situação primitiva, Deus realizou, num só ato, toda uma maravilhosa obra que consuma, como pedra angular e coroa da Criação, da Redenção, da Glória no céu, tudo o que Deus quis.
* * *
Porque houve o pecado e o homem ainda podia ser salvo, Ele assumiu uma natureza humana, encarnando-se, mas, além disso, realizou a obra de salvação de modo o mais densamente trágico, por uma vida de pregação evangélica e pela morte de cruz do próprio Verbo de Deus feito homem.
Esta tragédia teria sido necessária? Até onde vai nosso conhecimento da alma humana e até onde podemos perceber a grandeza da obra divina, sentimos que nenhum outro modo teria, como este, tamanha adequação entre a conveniência e a Justiça, entre o infinito poder e a inclinação que a Misericórdia promove a favor do que caiu. Jamais poderíamos conceber mais perfeito modo de derrotar o Demônio do que vê-lo derrotado pela promoção do ponto máximo de sua própria maldade no mundo dos homens. Sim, porque Jesus não se suicidou. Expôs-se à morte, deixou-se matar, mas em nada promoveu a crescente tensão que levantou diante de si a maldade dos homens inspirada pela maldade do Demônio. E foi matando-o que o Demônio foi vencido, contribuindo ele mesmo para realizar os desígnios de Deus e para que estes desígnios se cumprissem de um modo que traria, para os homens que o Demônio incitou ao pecado, a redenção que os põe em situação superior àquela de antes da queda. “O Felix Culpa...”
O que vemos, portanto, em toda esta magna e terrível grandeza da Misericórdia de Deus, é que Ele chegou ao ponto não só de entregar Seu Filho à humilhação de tomar a condição de criatura, de escravo, de nada, para que, por esta assunção, a Criação fosse possível, mas de entregá-lo à obediência que vai até a morte, e morte de Cruz, redimindo o decaído, e como que abandonando seu Filho e fazendo dele o portador de todos os pecados, na hora do castigo, conquanto sem mácula no seu próprio Coração. Daí podermos falar, com São Paulo, em “excesso de amor” (“nimiam caritatem suam”, cf. Efésios, II, 4) e em “loucura da cruz” (I Corint., I, 18).
O Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus de Deus, contempla e ama ao Pai, a Si mesmo e ao Espírito Santo, com atos de sua humanidade, atos de ser humano real tornados, de algum modo, infinitos e eternos, mas atos que deveriam consumar-se no tempo e com o tempo. Jesus realiza, desde o primeiro instante de sua concepção, pela graça de união substancial que o vincula ao Verbo e o faz como integrante da natureza divina, a razão e o fim de toda a Criação. Contempla a Deus como Ele se contempla e O ama como Ele se ama. E assim, entregue à contemplação e ao amor de Deus, se entrega todo em suma adoração, que presta a Deus toda a honra e toda a glória que lhe é devida e lhe dá ação de graças e louvor eternamente. Como vimos no texto de V. Heris O.P. citado acima, tudo o que Jesus é e faz, a Deus, à sua glória se dirige, ao seu culto é deputado.
Mas, dado que “propter nos homines et propter nostram salutem” foi uma criatura humana que Ele assumiu, e a assumiu para, no mesmo ato que torna possível a Criação e a consuma, oferecer também a Deus toda a reparação que redime super-abundantemente todo pecado — dotada, ela também, de valor eterno e infinito — Jesus agrada ao Pai mais do que a soma de todos os pecados de todos os tempos e todos os homens e anjos poderia desagradar-lhe. Antecipadamente, a reparação está dada e se consumará no Sacrifício do Calvário com a efetiva e cruenta imolação. O sacrifício de Jesus santifica absolutamente a obra de Deus, apesar do pecado que irá ocorrer. Sacrifício concebido de toda a eternidade, razão pela qual é a humanidade que é assumida pelo Verbo — com que ansiedade Jesus esperava a sua hora, com que ardente desejo queria a Cruz! Por ela repara, redime e salva. Ele oferece a Deus uma oblação que se perpetua para sempre. “Tu es sacerdos in aeternum” (Salmo 109, 4). Ressuscitado, Jesus continua a se oferecer à Santíssima Trindade no céu, numa entrega absoluta e perpétua de adoração e reparação. Esta entrega se faz com um corpo ressuscitado, é verdade, corpo que, vencida a morte, não morre mais. Mas esse corpo não abandona a cruz. Corpo glorioso, como se mostrou no Tabor, é corpo com estigmas gloriosos que honram a Cruz e a perpetuam diante de todo o seu Corpo místico, e até com estigmas de seu corpo místico.
Além de oferecer a Deus perpetuamente esta reparação, Jesus suplica por nós até o último dia. Também para nos salvar é que se encarnou e se ofereceu em sacrifício na Cruz. Ele suplica ao Pai, sem cessar, que nos toque o coração e nos converta e que, convertidos, sejamos atraídos por Ele, a Ele afeiçoados por obra do Espírito Santo. E com Ele, nele e por Ele ofereçamos a Deus toda a honra e toda a glória, como está dito na pequena elevação da Missa. Ele suplica que sejamos conduzidos pelo Espírito de Deus de modo que, como Ele, tomemos a Cruz e sigamos seus passos; que a sua Imitação nos configure por Ele e que por causa d’Ele sejamos amados pelo Pai. Ele suplica por nós querendo restabelecer-nos (e só para nós, homens, é isto possível) na ordem primitiva, isto é, encaminhando-nos ao banquete no céu a que fomos convidados, onde contemplaremos a Deus como Ele se contempla e o amaremos como Ele se ama. O espetáculo terrível que a obra de Deus viu acontecer — Deus em sua comiseração desejando que houvesse criaturas que, como Ele faz, o contemplassem e amassem; algumas criaturas angélicas recusando-se a fazê-lo e condenando-se ao inferno para sempre; o primeiro homem deixando-se arrastar ao pecado e transviando-se do caminho do céu, e arrastando os seus descendentes — este espetáculo foi vencido pela inaudita Misericórdia que dá ao homem uma nova oportunidade: restabelece-o na posição original, recompõe para ele o caminho e o norte, e o conduz pela mão. Mas este homem que é assim socorrido quer ser socorrido? Quer a recuperação? Quer o que Deus quis para ele?
O homem não é um autômato, um robô. Não foi isso o que Deus criou. Não foi de objetos mecânicos que se apiedou. E não é um coração de lata o que busca com ardente desejo. Mas quer o homem o amor de Deus?
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Não se vê como o primeiro homem, Adão, no estado chamado justiça original, poderia conceber o pecado sem que de fora, de outro lhe viesse a notícia e o incitamento. Com efeito, o primeiro homem foi constituído, como toda a obra de Deus, criatura perfeita, isto é, em que a hierarquia dos dois princípios que compõem sua natureza — corpo material e alma espiritual — era também perfeita. A sensibilidade, as paixões do primeiro homem eram assim ordenadas e serviam às faculdades mais altas. Os dons chamados preternaturais consolidavam essa perfeição e relacionavam o homem de modo perfeito com tudo aquilo que o cercava; e ele, dando nomes aos animais (Gen. 2, 19), comandava-os. A natureza o servia. Em tudo ele encontrava motivo de júbilo, no trabalho da terra, na procriação que iria começar e no parto da primeira mulher que daria início à obra com que o Criador associava o homem à Criação, fazendo-o cooperador na formação dos eleitos de Deus. Acima de tudo, o primeiro homem vivia na presença de Deus, consciente da Sua grandeza. O homem sabia que d’Ele recebia tudo e a Ele devia tudo. Sabia que Ele o conduzia, que Ele lhe dera uma companheira e que essa companheira era “o osso de seus ossos e a carne de sua carne”. Toda a Tradição, como está reportado em S. Tomás, III, q. 1, a. 3, ad. 5, vê nessas palavras de Adão a ciência antecipada, por uma revelação de Deus, da encarnação do Verbo, já que aí vê a expressão da união do Cristo com sua Igreja. A objeção de que a revelação do Cristo implicava a antecipação do conhecimento do bem e do mal (que Deus vedava ao primeiro homem preservando sua inocência), S. Tomás responde que se pode revelar um acontecimento sem revelar a causa e que Deus poderia ter mostrado ao primeiro homem o Cristo sem lhe revelar que o mistério da Encarnação se devia ao próprio pecado dele, Adão. Cremos que, com isso, podemos pensar que a “árvore da ciência do bem e do mal”, cujo fruto estava proibido a Adão, era, de algum modo, a visão do Cristo crucificado, num espetáculo cuja magnitude enchia o jardim de delícias como um sol; cuja impressão, que Deus nos permita concebê-lo e exprimi-lo, enchia de transporte profundo a alma de Adão, que, sem compreender por quê, via nela o que de mais elevado e grandioso e imenso e íntimo a todas as coisas havia sido criado por Deus. De algum modo Adão via que àquela árvore tudo estava relacionado, e que com ela tudo se harmonizava, e que nela tudo se subordinava a Deus, incluído ele.
Neste estado de perfeição interior de sua natureza, de delícias no relacionamento exterior com as coisas temporais e sobretudo de submissão à ordem sobrenatural pela graça de Deus recebida por uma alma inocente que simplesmente ignorava o mal — que não existia sobre a terra — não se vê como poderia Adão, de si mesmo, conceber o projeto de algo que desejasse como objeto de sua adoração fora de Deus, pois não tinha de si mesmo e de sua própria excelência, como obra perfeita de Deus, a visão direta que só um anjo pode ter. Era preciso, assim, um tentador vindo de fora. Era preciso, assim, que houvesse primeiro o pecado do anjo e que o anjo pecador, perdido e condenado, procurasse corromper o homem para corromper toda a obra de Deus, compondo, em primeiro lugar, para a imaginação dele, um objetivo, algo que se lhe apresentasse como um bem: “sereis como deuses”, sereis mestres de vós mesmos, livres da obrigação de obedecer a Deus. Tereis uma ciência de ordem natural, “a ciência do bem e do mal”, que vos permitirá conduzir-vos a vós mesmos sem precisardes pedir a Deus a luz sobrenatural, o conhecimento da direção, a força, as virtudes necessárias, sem precisardes obedecer. Numa palavra, sereis “adultos”, como dizem hoje os “teólogos da libertação”. Eis por que o caminho da alma que quer a santidade começa pela humildade e pela obediência de quem busca entregar-se totalmente a Deus, e deixar-se por Ele encher da contemplação das coisas divinas, e deixar-se por Ele conduzir, a cada passo, por obra da Sua graça, e deixar-se levar para Ele por recomposição adequada da própria atitude diante da Misericórdia original de Deus. Este é o fundamento, como vimos acima no texto de Garrigou-Lagrange, da humildade católica: de Deus dependemos inteira e absolutamente, tanto para existir como criaturas suas quanto para salvar-nos; tanto na consideração de conjunto de uma vida humana à qual a Salvação é dada quanto na consideração de cada um e todos os atos salvíficos que praticamos, passo a passo.
Ocorrido o pecado, o homem desviou-se do caminho de Deus e portanto recusou o céu. Recusou o convite que lhe fora feito no próprio ato de criação. Recusou aquilo que inspira a Misericórdia divina primeira: apiedar-se das naturezas espirituais que poderiam existir e, existindo, contemplassem a Ele, que é, em Si, toda a Perfeição e toda a Verdade e toda a Beleza e todo o Ser, e, contemplando-o, amassem a Ele, que é toda a Amabilidade, toda a Bondade, todo o Bem. E que assim participassem de Seu júbilo eterno, de Sua exultação, de Seu gozo.
Então, diz o teólogo, “o amor de Deus quis-nos perseguir em nossa queda e em nossa miséria”. Apesar da recusa do primeiro homem, Ele não se afastou de Adão. Longamente, ao correr dos séculos, Deus continuou a tratar diretamente com os homens, antecipando a obra da graça que decorre, como toda graça, do Sacrifício do Calvário que se iria consumar no futuro. E anunciou para ele o Redentor, e preparou Sua vinda.
Assim como a criatura não pode oferecer à Justiça divina toda a contemplação e o amor e a adoração e a ação de graças e a glória que lhe são devidos eternamente e infinitamente e só pode fazê-lo porque Ele mesmo assumiu uma criatura que por todas as demais oferecesse estes atos do modo devido, assim também, ocorrido o pecado, nenhum ser humano poderia oferecer a Deus a reparação infinita e eterna, o resgate infinito e eterno que lhe são devidos. É o Cristo que, no mesmo ato magistral com que Deus torna possível a obra de Sua misericórdia criadora satisfazendo à justiça, se oferece em holocausto que repara e resgata eterna e infinitamente diante da Justiça de Deus, tornando também possível a obra de sua misericórdia redentora. Esta redenção, além de recolocar o homem no estado em que foi concebido e criado, o põe em situação superior, pela honra que lhe é dada — pois por causa do pecado é que a humanidade e não outra natureza foi assumida pelo Verbo — e o enriquece ainda mais, porque por causa do pecado é que lhe foi dado tal Redentor. “O Felix Culpa...”
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Como prelúdio das criaturas, Jesus oferece por toda a Criação os atos de contemplação, amor, adoração e glória, infinitos e eternos, que pode oferecer como Verbo de Deus encarnado. A concepção de Deus incluiria, mesmo sem o pecado, que todas as criaturas espirituais compusessem o Corpo Místico de Cristo, unidos a Ele pela graça santificante que por Ele, de algum modo, conforma anjos e homens. Por Ele e n’Ele é que honrariam e honram, glorificariam e glorificam a Deus. Tendo havido o pecado, e tendo assumido por causa dele a natureza humana e não outra, o Verbo de Deus estabeleceu para nós, homens, de maneira proporcionada à nossa condição de almas encarnadas, o conhecimento das realidades espirituais. Com efeito, é pelos sentidos que conhecemos todas as coisas.
A Misericórdia de Deus se debruça sobre os homens. Jesus poderia, e efetivamente muitas vezes assim procede, oferecer-nos a graça e conduzir-nos à salvação sem utilizar o engenho que construiu para que recebêssemos seus dons de modo compatível com a nossa inferior simplicidade. Assim é que, rogando ao Pai por nós sem cessar, Ele exerce sobre nós uma atração indiscutível: mais intensa para uns, como quando chamou os Apóstolos, menos intensa para outros, quase insensível ou até escondida, como ocorre com selvagens que não receberam ainda a pregação de missionários. Tocado a coração do pecador que se converte, Ele se apresenta como modelo pelo qual devemos configurar toda a nossa vida. Por obra do Espírito Santo dá-nos graças de virtudes e dons com que somos levados, progressivamente, à conversão da vida, à purificação da alma e, conforme os caminhos que Deus assinalou para cada um, à modalidade de contemplação na obscuridade da fé e à caridade que percebe, de algum modo, a presença de Deus na alma, primícias da vida dos bem-aventurados no céu. Essas graças são necessárias para nós cada dia. São necessárias cada instante, para cada ato de salvação que praticamos, para cada passo que nos aproxima de Jesus, para cada traço que nos faz um pouco mais semelhantes a Ele. Semelhantes a Ele, unidos a Ele, somos amados pelo Pai, que O ama, e por Ele, com Ele e n’Ele cumprimos a razão para a qual fomos criados, encontramos o caminho da bem-aventurança na vida eterna.
Mas para nós é às vezes difícil o conhecimento dessas realidades sobrenaturais, sobretudo guardar a consciência dessa obra e a pureza da nossa vontade diante da graça que Deus nos oferece cada instante. Tanto para os mais simples, que não têm estudos teológicos, quanto para os doutos, que correm riscos terríveis de perder o norte do caminho real que leva a Jesus, é muitas vezes difícil guardar a devida lembrança do que se passou, a consciência profunda do que fez Jesus e a do que Ele nos oferece. Por isso é que Ele instituiu a Missa, pela qual perpetua diante de cada um de nós, de modo milagroso, a realidade do que se passou no monte Calvário. Jesus se põe presente, em sua intensa realidade divina, na hóstia e no vinho. Aí se põe, por cima das limitações do tempo e do espaço, não no que diz respeito aos dados da aparência sensível de Seu corpo: a cor, as dimensões de superfície, o volume do corpo, o peso dos ossos. As coisas do corpo que são perceptíveis aos sentidos do homem ficam escondidas e são substituídas pelos dados de aparência sensível do pão e do vinho: a cor, as dimensões quantitativas, o desenho da superfície, o sabor. Mas a substância do Corpo e, com ela, a sua Alma e Sangue e Divindade estão ali presentes. Ali já não há nenhuma substância de pão ou de vinho, mas Jesus. E Jesus que ali está como que transporta por cima do tempo e do espaço a sua morte na Cruz do Calvário e a põe em cada altar, pois aqui Ele se encontra em estado de paixão, “Christus passus”, como diz S. Tomás (III, q. 73, art. 5, ad. 2). Neste momento, pois, em que assistimos a esta determinada Missa, em que Jesus ressuscitado está no céu oferecido perpetuamente à Santíssima Trindade como prelúdio das criaturas e como redentor dos homens, oferecendo um Corpo glorioso marcado por gloriosos estigmas, neste momento Ele faz, por obra de seu poder, transportar a substância de seu próprio ser quando morria no Calvário para milagrosamente pôr aquele mesmo e único sacrifício (Cat. Romano, P. II, cap. IV, § 74) diante dos homens no futuro e no passado, o mesmo que fez na Ceia. O sentido próprio da palavra “memorial” (“Fazei isto em memória de mim”) é o de perpetuar para nós e, segundo nossas deficiências naturais, aquilo que se fez uma vez no Calvário. É o de representar o sacrifício único (ver S. Tomás, III, q. 83, art. 1, e A. M. Roguet, "A Estrutura Sacramental da Eucaristia", Apêndice in S. Teol., ed. du Cerf, III, q. 73-78, pág. 352) e não o de fazer uma recordação sentimental.
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Quando a Igreja diz, quando os teólogos mais santos dizem que é na Missa que encontramos o momento mais importante de nossa vida diária, pareceria um exagero piedoso. Mas, se ponderarmos o que até agora procuramos considerar e se compreendermos à luz de tudo isso o que se passa na Missa, ela é-nos oferecida a fim de que realizemos aquilo para o que fomos criados e salvos, e sejamos socorridos pela graça e levados pela mão para casa.
"Esta devoção à Consagração eucarística é coisa essencial à vida cristã. Sem ela não poderia haver verdadeira vida interior. A dupla consagração, essência do Santo Sacrifício, é o momento mais solene de cada um de nossos dias. Dela, como de um cume e como de uma fonte, fornalha de luz e energia, toda a nossa vida deve descer, e a ela deve conformar-se” (Garrigou-Lagrange, op. cit., tomo II, pág. 869).
Consideremos em primeiro lugar que na Missa a consagração põe diante de nós, no altar, toda a essência do Sacrifício pelo qual Jesus, o Verbo de Deus, se oferece ao Pai, a Si mesmo e ao Espírito Santo num ato infinito e eterno que contempla e ama, adora e glorifica, expia e repara, suplica e agradece. Este ato, o Verbo o realiza eternamente, mas mediante uma criatura assumida para, entre nós, num dia determinado, consumar a oferenda de si mesmo num Sacrifício que na Missa é perpetuado.
“Na Missa, mais do que em qualquer outro ato de culto, Deus é o fim primeiro. Cristo se encarnou e se ofereceu como vítima no Calvário para devolver a Deus a honra que o pecado havia pretendido tirar-lhe” (Manoel Garrido, OSB, Curso de Liturgia, Madri, BAC, 1961, pág. 236).
Este autor nos repete os ensinamentos: são quatro os fins da Missa. A finalidade latrêutica, pela qual Jesus oferece a Deus infinita adoração, toda a honra e glória; a finalidade eucarística, pela qual infinitamente dá graças a Deus por sua bondade, o que é, como cantamos no Prefácio, verdadeiramente digno, justo, razoável e salutar; a finalidade propiciatória e expiatória, pela qual infinitamente expia; e, finalmente, a finalidade impetratória, pela qual o meu Senhor suplica ao Senhor “com poderosos clamores e lágrimas e é ouvido por seu reverencial temor”. “A consagração”, ensina ainda, “é o momento culminante da Missa, porque nela Cristo reatualiza seu sacrifício sob as espécies sacramentais” (pág. 240).
Na hora da Consagração, preparada por tudo o que vem antes e que, depois, na comunhão, frutifica para nós, na hora da Consagração, portanto, é que num só ato se consuma e perpetua para nós aquilo mesmo que é a própria razão de ser da Criação e o fim último visado por Deus quando teve Misericórdia dos que podiam existir; é ainda aquilo mesmo que constitui a felicidade, a ocupação única, o júbilo perpétuo, na eternidade, de todas as almas salvas, de todos os anjos e homens santos que já estão no céu. O Céu é uma Missa perpétua, na qual os anjos e os santos oferecem a Deus, em primeiro lugar e essencialmente, não a si mesmos, que nada são, mas o próprio Cristo, que se oferece em oblação perpétua, e com o Cristo, a Ele unidos pela caridade, se oferecem a si mesmos em plena adoração, e glorificação, e ação de graças, e súplicas pelos que ainda não chegaram à Pátria.
Por isso é que com razão o teólogo pode dizer:  
“Maria viu na perpetuidade da oblação interior do Redentor, sempre vivo no céu e tornado presente sobre o altar, o ponto de conjunção do culto de adoração e ação de graças da Pátria com o que presta a Igreja militante” (Garrigou-Lagrange, op. cit., tomo II, pág. 865).
Nas nossas Missas, portanto, as igrejas e grandes catedrais e as simples capelas enchem-se da numerosa corte celeste, miríades e miríades de anjos e santos, invisíveis à nossa volta, que conosco assistem à Missa, oferecem continuamente o Cristo a seu Pai e se oferecem com Ele.
“À imolação mística da Santa Missa, Maria unia a de seu coração, a aceitação generosa de todos os sofrimentos que experimentava nesses tempos dolorosos da Igreja nascente, em que três séculos de perseguição começavam” (op. cit., pág. 865).
Porque, na santa Missa e no céu, oferecendo-se ao Pai, nosso Senhor Jesus Cristo oferece consigo todo o seu corpo místico, anjos e santos, todos os eleitos, isto é, toda a Criação de seres espirituais que por Cristo podem adorar a Deus infinita e eternamente, como é de justiça que a Ele, perfeição absoluta, infinita e eterna, se adore.
“Na Santa Missa, Nosso Senhor oferece-se a Si mesmo e oferece também todo o seu corpo místico, todas as almas em estado de graça que lhe são unidas pela caridade, especialmente aquelas que, a seu exemplo, suportam sobrenaturalmente seus sofrimentos (segundo a Tradição, o corpo místico assim oferecido com a santa vítima é simbolizado pela gota d’água vertida no vinho no começo da Missa — nota do autor). Oferecendo-se ao Pai, diz Santo Alberto Magno, ‘o Cristo oferece todos aqueles cuja natureza tomou, que purificou com seu sangue e que incorporou a Si”. S. Tomás fala do mesmo modo.
***
“Esta oração [a do Prefácio da Missa], esta adoração de anjos e homens, é Jesus que a oferece ao Pai e que a oferece sobretudo no momento da Consagração eucarística, que é a essência do sacrifício da Missa, na qual a santa comunhão nos faz participar. Quando a última Missa tiver sido dita, já não haverá mais sacrifício de súplica e reparação, mas o culto de adoração e ação de graças continuará no céu toda a eternidade. Será a consumação do sacrifício do Cristo (cf. S. Tomás, III, q. 22, a. 5)” (Op. cit., tomo II, pág. 862-863).
Será a consumação da obra da Criação, que então estará em sua plenitude pelo número completo de criaturas que Deus quis que existissem, as quais, então, sendo salvas, unidas ao Cristo e com Ele oferecidas, constituirão a obra perfeita e santa que Deus realizou: um número incalculável de seres espirituais, que sabem querem e contemplam num transporte inexprimível de espanto e admiração a Verdade intensíssima em sua realidade, Ser que é, Beleza Incriada, a quem amam com ardente amor que quer o bem do Bem subsistente e o gozo e a felicidade da Eterna Bem-aventurança, e que se rejubilam sobretudo por ser Deus quem é, por ser Deus o que é, eterna e infinitamente. A esse gozo, a essa felicidade fomos chamados para toda a eternidade. Disso temos as primícias em cada Missa, caso a Missa seja verdadeiramente Missa — esta nota temos de acrescentar hoje, eis aí o que perdemos, eis aí o que temos, quando ainda temos, como graça remanescente que aprendemos pelo sofrimento a olhar como jóia de nossa vida; aí está Sião que perdemos e por quem choramos sobre os rios de Babilônia. E também na medida em que somos verdadeiramente membros do Cristo pela comunhão, pelas graças que recebemos e que deixamos trabalhar em nós para purificar-nos, para afeiçoar-nos pelo Modelo por imitar e unir-nos a Ele para com Ele, por Ele e n’Ele darmos a Deus toda a honra e toda a glória.
Deus, em sua misericórdia e em seu omnipoder, dá-nos graças e permite-nos unir-nos com Jesus, oferecer-nos a Ele também sem a Missa, embora nesta o devêssemos fazer de modo mais adequado à honra devida à Suma Presença de Deus sobre a terra, a Presença Real na Eucaristia, e também à nossa condição de criaturas espirituais encarnadas. É na continuação do dia, da vida de contemplação e ação apostólica com que colaboramos na obra de Criação e Santificação que Deus quer, que caminhamos pelos caminhos que Ele nos assinala; progredimos levados por sua mão; somos a Ele assemelhados na procura da perfeição interior com que nos preparamos para a Missa de cada dia; por ela e por este Caminho vamos à Missa no céu.
“E, uma vez que no momento mais solene de cada um dos nossos dias, o momento da consagração eucarística, o Cristo Jesus continua a se oferecer por nós e oferece consigo todo o seu corpo místico, devemos deixar-nos oferecer por Ele e oferecer nós mesmos todas as contrariedades, os sofrimentos presentes, os que deverão vir, para que Maria reparadora, a quem foi prometida a vitória sobre a serpente, apresente a seu Filho esta oblação e para que Ele próprio, unindo-a à sua, a apresente a seu Pai. Digamos-lhe então a bela oração do Bem-aventurado Nicolau de Flüe: ‘Nimm mich mir und gieb mich dir’ — Tomai-me de mim e dai-me a Ti.
Consagrada a hóstia, o sacerdote a eleva aos olhos dos assistentes; não é apenas para que a adoremos, é também, diz Santo Alberto Magno, ‘para que todos estendam as mãos e marquem sua intenção de se oferecer agora ao Pai por Aquele que outrora se ofereceu a Si mesmo sobre a Cruz” (destaques do autor) (Garrigou-Lagrange, op. cit., pág. 866).
Oferecermos a Deus o Seu Filho e oferecermo-nos com Ele. É só isto.
(PERMANÊNCIA, ano XI, março/abril, números 112/113)

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