“Os clérigos que
estão nas Ordens sagradas têm por obrigação recitar todos os dias as Horas
Canônicas”.
Ele diz: os clérigos se desobrigarão. Será que a
“obrigação” do Breviário subsiste? Sim ou não?
– Sim, acaba de notificar o Secretário
Bugnini: Não há nada mudado, a não ser a palavra.
Porque a mudaram? – Porque, diz ele:
“a mentalidade
moderna prefere obedecer a convicções e não a obrigações”. (“L’Osservatore Romano”, 24-11-71).
Como o autor desta astuciosa substituição verbal
confessou-a em público e publicou-a no jornal, a quem pretende ele enganar?
Estas notas preliminares não nos distraíram do
nosso assunto. Nosso leitor estará melhor preparado para conhecer o alcance
jurídico da Bula que ordena o Missal restaurado de Pio V, se já conhece as
condições formais tradicionais de toda obrigação jurídica, e, ao contrário, o
espírito, o vocabulário e as “espertezas” dos ordenadores do Missal reformado
de Paulo VI.
II – A BULA PROMULGA UMA VERDADEIRA LEI
1 – Uma lei contendo uma obrigação jurídica
expressa nos termos tradicionais do direito: nós os sublinhamos ao longo da
nossa tradução.
2 – Esta lei não é apenas uma determinação pessoal
do Soberano Pontífice, mas notadamente em ato conciliar. Pio V se refere
explicitamente aos decretos do Santo Concílio de Trento, que lhe remetera este
encargo, depois que os Padres tivessem acertado as modalidades por eles
desejadas. Daí o título oficial de nossos Missais: “Missale Romanum ex DECRETO
S.C. Tridentini RESTITUTUM, S. Pio V jussu editum”. O Concílio decretou sua
restauração, o Papa ordenou sua publicação.
3 – A vontade do legislador aparece na sua Bula,
sob modalidades variadas, detalhadas ao curso da longa enumeração final, e da
qual anteriormente havíamos observado que não se trata de uma redundância
enfática:
“… Hanc, paginam
Nostrae permissionis, statuti, ordinationis, mandati, proecepti, concessionis,
indultti, declarationis, voluntatis, decreti et inhibitionis…”
O leitor pode facilmente pôr cada um destes
onze termos à frente de um enunciado da Bula: excelente exercício de atenção
respeitosa.
4 – A Bula especifica minuciosamente as pessoas, o
tempo, os lugares submetidos a estas diversas disposições.
5 – A obrigação é sancionada por penas expressas.
6 – O Pontífice não promulga a lei de um novo
Missal, ele restaura o primitivo, restituído. Entretanto, ele vai claramente
significar o que derroga, parcialmente, do passado e, de outro lado, o que
abroga totalmente.
Observamos o quanto a cláusula final do “Não
obstante” é, a este respeito, precisa, específica e rigorosa, não se
satisfazendo com a menção puramente genérica das leis e costumes precedentes
que quer abolir, mas designando-as pelo seu próprio nome.
III – A BULA RESPEITA OS DIREITOS ADQUIRIDOS
Traço característico do verdadeiro chefe: mais sua
ordem é firme quando ele impõe deveres, mais também ele é atento a respeitar os
direitos, não apenas os direitos gerais e absolutos da pessoa abstrata, mas os
direitos históricos dos indivíduos ou das comunidades particulares, mesmo
adquiridos por simples costume.
Pio V confirma assim, dois direitos:
1º – O direito das Igrejas ou Comunidades que
foram beneficiadas com um Missal próprio, aprovado desde a sua instituição.
2º – Mesmo direito reconhecido a um Missal
igualmente distinto do Romano, quando ele pode justificar seu uso de fato, há
mais de 200 anos.
Esta confirmação (“nequaquam
auferimos”) não deve ser confundida com a “permissão” nem com o “indulto”
que seguem, trata-se aqui de direitos já existentes que a Bula se contenta em
manter.
IV – A BULA CONDESCENDE A PREFERÊNCIAS PESSOAIS
Depois de ter confirmado na posse pacífica de seu
Missal próprio um Capítulo, uma Ordem Religiosa etc, Pio V “permite” a estas comunidades
renunciar o seu próprio em favor do Romano:
“… si iisdem magis
placeret” (se este Missal de Pio V lhe agradar mais).
Há, porém, uma condição: que esta preferência
receba a consentimento do Bispo ou do Prelado Superior com, e mais, o de “todo o
seu Capítulo”, de tal modo, ainda aqui, o Papa, embora favorecendo (em certos
casos) seu “Missal”, não quer lesar os direitos adquiridos, reconhecendo neles
uma prioridade; – lembramo-nos por outro lado, que estes missais particulares
são fundamentalmente idênticos ao Romano, unicamente com variantes secundárias.
V – A BULA CONCEDE UM PRIVILÉGIO
Aqui está um ponto capital e que ninguém, que
saibamos, chamou pelo nome:
1 – A “mentalidade moderna” (como diz Mons.
Bugnini) quer ignorar os Privilégios: exceções à lei comum, distinções
aristocráticas, indignas de uma época que é simultaneamente igualitária e
totalitária. Este mundo não conhece senão direitos e facilidades.
2 – A “Igreja pósconciliar”, presente no mundo,
acrescenta-lhe duas coisas: “experiências” provisórias e infrações legalizadas
(língua vulgar, comunhão na mão, comunhão de leigos no cálice, concelebrações
generalizadas, etc).
3 – A Igreja Católica personaliza suas leis, e, às
vezes suaviza-as pelo costume e pelos privilégios.
– Será aristocrático? Que seja, e tanto melhor.
Convém singularmente, então, à lei evangélica, que é uma lei de graça e de
livre escolha.
4 – A Bula de São Pio V já admitia, como acabamos
de ver, várias exceções ao uso obrigatório do “Missal”. Agora ele vai conceder
um privilégio.
Este privilégio é o objeto que aqui pretendemos
distinguir (número VII da tradução) e que no original latino começa pelas
palavras: “Atque ut hoc
ipsum Missale…”
Devemos fazer 7 observações capitais sobre as
disposições desta alínea:
1º) – O que distingue esta nova exceção à lei
comum das simples “permissões”, que acabamos de explicar, são os dois verbos “concedimus et indulgemus” que o
introduzem; no vocabulário canônico significam propriamente um favor que toma o
caráter de uma lei particular; como no caso presente este privilegium
se acrescenta à lei, é preciso ser compreendido como lhe conferindo uma nova
força predominante para todos os casos no presente e no futuro onde a lei “Quo Primum” for objeto de
derrogação; ali onde a “lei” cessar, o “privilégio” continuará a subsistir.
2º) – O que frisa a importância que o Pontífice
quer dar a esta “concessão-indulto”, é o recurso à “Autoridade apostólica” que
ele invoca aqui expressamente, antes de conceder o privilégio.
3º) – Este favor é concedido, sem exceção, a todos
os padres, seculares, regulares, de todas as Igrejas, para as Missas cantadas e
para as Missas rezadas (e, na maioria das vezes, para as Missas privadas sem
assistência).
4º) – Nenhum Superior poderá impedir este
privilégio, sob qualquer pretexto de impedimento, nem no foro interno nem no
foro externo.
5º) – O privilegiado não poderá ser “constrangido
ou forçado por quem quer que seja” (a
quolibet cogi et compelli) a usar um outro Missal, nem mesmo a aceitar uma
simples alteração no Missal de Pio V, desse modo concedido.
6º) – Este indulto não tem necessidade de qualquer
permissão ou licença ou consentimento ulterior.
É o sentido do advérbio “omnino”
(omnino sequantur) cujo sentido tem
a melhor tradução na expressão italiana senz’altro
= pura e simplesmente.
A Bula acrescenta “pela força dos presentes
textos” que são assim julgados suficientes.
7º) – Enfim, trata-se de um privilégio à
perpetuidade: “etiam perpétuo”.
Este último caráter nos leva a armar uma questão
que concerne a todas as disposições legislativas da Bula e a cada uma: como um
Papa pode obrigar sucessores? Questão imensa e delicada que limitaremos ao caso
presente.
Não se tratará, evidentemente, do Papa
legislando como intérprete da lei divina, esta se impõe imutavelmente a todos,
mas do Papa apresentando leis eclesiásticas.
VI – A BULA É VALIDA À PERPETUIDADE?
1 – Um princípio rege, antes de qualquer outro,
este assunto: um par não tem poder sobre seu par, pois ninguém pode obrigar os
seus iguais. “Par in parem
potestatem non habet”.
Este princípio é particularmente verdadeiro entre
aqueles que possuem o poder Supremo; essencialmente, este é um e o mesmo nos
diferentes detentores do mesmo poder… Mas é preciso refletir, em seguida,
profundamente, sobre o alcance verdadeiro deste princípio. Se um Papa (para não
falar senão do Soberano religioso) tem o poder de desligar, pelo mesmo poder
que tinha permitido o seu predecessor de ligar, ele não deverá usar desta
faculdade senão por razões gravíssimas: as mesmas que teriam decidido o seu
predecessor a voltar ele mesmo sobre suas próprias ordens. Do contrario é a
essência da autoridade suprema que é atingida por estas ordens sucessivas
contraditórias.
Quando os filósofos disputam sobre o “poder
divino”, recorrem a uma distinção que deve encontrar, no nosso caso, uma
aplicação infinitamente mais premente: o que Deus pode “em poder absoluto” e o
que Ele pode em “poder ordenado”.
Nem tudo estaria resolvido quando se dissesse, por
exemplo: “Paulo VI pode validamente abrogar a Bula de S. Pio V. Seria
necessário mostrar que ele o faz licitamente.
Ora, esta liceidade concerne ao mesmo tempo o
fundo, a forma da nova lei e, previamente, a mutação da lei como tal. A lei
divina leva, ela mesma, as justificativas de sua universalidade e estabilidade;
mas a lei eclesiástica, como toda lei humana, tem necessidade de juntar as suas
justificações intrínsecas, apoios que talvez fossem, no começo, de pura
convenção, mas que o consentimento social acabou por anular o que eles
continham de arbitrário e artificial.
2 – Quanto às exigências de forma, a Bula “Quo Primum” esta revestida de
todas as condições de perpetuidade, nós o demonstramos suficientemente,
sublinhando os termos empregados pelo legislador.
3 – Quanto ao fundo, três traços característicos
confirmam esta perpetuidade:
a) o fim procurado pela Bula: que haja um Missal
idêntico que, pela unidade da prece pública, proteja e desenvolva a unidade da
fé.
b) o método do seu estabelecimento: nenhuma
fabricação artificial entre uma quantidade de outras imagináveis, nenhuma
reforma radical, mas uma restauração do Missal Romano primitivo: a pura
restituição de um passado experimentado, que seria assim a melhor garantia de
um futuro pacífico; e
c) os autores: um Papa agindo com toda a força
expressa de sua autoridade apostólica, em conformidade exata com o voto
igualmente expresso por um Concílio Ecumênico; em conformidade com a tradição
ininterrupta da Igreja Romana; e, enfim, para as partes principais do “Missal”,
em conformidade com a Igreja Universal.
4 – Cada uma destas características tomadas à
parte e, mais ainda, a reunião de todas, nos asseguram que nenhum Papa, jamais
poderá licitamente, abrogar a Bula de São Pio V, admitindo que ele o possa
fazer validamente, sem trair o “depósito da fé”.
5 – Parece-nos indiscutível que Paulo VI não o
fez, mesmo que apenas se considerem as condições de forma requeridas para
semelhante abrogação, e que faltam ao seu Ato.
Mas parece-nos, infelizmente, igualmente
indiscutível, que Paulo VI favorece a abolição de fato do Missal Romano: seja
por vontade deliberada, seja por conveniência, seja por tolerância, seja por
constrangimento obscuro do qual ele não pode mais se livrar e que fazem dele um
prisioneiro.
VII – CONSELHO PARA UMA RESISTÊNCIA RESPEITOSA
Em setembro de 1967, apresentamos pela primeira
vez, publicamente e por escrito, o conselho, as razões e os meios regulares
para uma resistência à revolução litúrgica que estava sendo autorizada pelo
Papa reinante. Foi num “Courrier”
hoje desaparecido; dois anos, portanto, antes da “promulgação” do novo “Ordo
Missae”, mas numa data em que os pródromos da revolução eram bastante evidentes
para que um simples fiel ou um padre tivesse o direito e o dever de lhe
resistir.
Temos, desde então, reafirmado esta posição
principalmente em “Itinéraires“,
(fevereiro de 1970): “A Missa de São
Pedro ad-vincula“.
Se esta posição estivesse errada ou escandalosa,
não é crível que a Santa Sé e os Bispos da França e seus “teólogos” não
tivessem condenado e censurado ou simplesmente refutado uma proclamação pública
e repetida.
Não é crível que o autor não tenha recebido até
hoje (13 de Janeiro de 1972), ordem de retratar-se.
É que esta posição, no mínimo, é considerada
“provável” no sentido que os moralistas dão a este termo: conselho que todo
mundo pode seguir prudentemente; prolongado o silêncio do Magistério
Hierárquico, concedendo a uma “opinião privada” a autoridade de sua função.
Em conseqüência, depois de reiterado e tornado
preciso nosso pensamento, corroborado pela leitura comentada da Bula de São PioV, vamos dar, com toda segurança normas práticas de conduta:
Primeira regra – Ainda que se queira abstrair do
seu conteúdo doutrinal e considerar apenas os aspectos jurídicos de sua
publicação, o Missal de Paulo VI não pode se firmar obrigatório, por uma
obrigação estritamente jurídica impondo seu uso, e excluindo o Missal Romano
restituído por decreto do Santo Concílio de Trento e publicado por ordem de
S.Pio V.
Segunda regra – A Bula “Quo Primum Tempore” de S. Pio V não foi abrogada na sua totalidade pela
constituição de Paulo VI, “Missal Romano” de 3 de abril de1969. Este Missal não
traz, afinal, senão derrogações particulares às obrigações do Missal tridentino.
Terceira regra – Estas derrogações, mesmo
supondo-as estritamente obrigatórias, deixam, em todo caso, intatas três
liberdades, inscritas na Bula de São Pio V, e não expressamente abrogados pelo
ato de Paulo VI, como ele devia fazê-lo por uma necessidade de direito:
1) – Liberdade para todo padre de usar o
Privilégio (indulto que comentamos no parágrafo V).
2) – Liberdade para todo o padre de preferir ao
Missal de Paulo VI, o Missal tridentino autorizado pelo costume 15 vezes
secular que o precedeu e que o seguiu.
3) – Liberdade para os religiosos dotados de um
Missal próprio de sua Ordem de conservar o seu uso ou de aproveitar do
privilégio acima referido, de preferência à Missa paulina. (As religiosas
Cartuxas, Carmelitas, Dominicanas estão no direito de exigir este uso de seu
Capelão, mesmo de um recalcitrante).
Como conseqüência: Todo fiel leigo tem o direito
de se beneficiar das suas liberdades supra citadas: por intermédio dos padres a
quem tais liberdades são conferidas diretamente, o privilégio de São Pio V tornou-se
sua propriedade. Eles podem pedir ao seu pároco ou a seu Bispo que sejam
regularmente celebradas Missas de acordo com este rito.
Estamos de tal forma seguros desta doutrina, que
cremos podermos acrescentar este conselho final:
– Se, o que não preze a Deus!, um Superior
qualquer ousasse recusar aos Padres, Religiosos e fiéis, o exercício destes
direitos, estes poderiam e deveriam denunciar, por todas as vias da justiça, à
autoridade competente, esta infração formal à Bula de São Pio V como um abuso
de poder.
Texto escrito pelo Pe. Raymond Dulac
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