"A religião não passo do sol ilusório que se move em volta do homem, enquanto o homem não se mover em torno de si mesmo"
Por ALFREDO LAGE
Nenhum pensador atual descreveu com mais
dramaticidade — no plano das idéias — a subversão racionalista e idealista da
inteligência, e as conseqüências que daí resultam para a cultura, do que Marcel
de Corte.
A ciência moderna é um processo peculiar de
investigação da realidade. Incentivada, de um lado, pelos altos vôos do
racionalismo cartesiano e, de outro, pela miúda curiosidade do empirismo, a
ciência de si mesma independe dessas conceptualizações. As falsas filosofias
que, por um paradoxo da nossa condição, outrora impulsionaram a pesquisa — e
que a ciência hoje mais do que nunca dispensa — continuam contudo a espalhar a
sua deletéria influência sobre a cultura e as ciências do homem.
De seu lado, a técnica encontra um justo lugar no
conjunto de uma visualização do mundo que a subordina a um projeto
civilizacional de caráter eminentemente humano e ético. Mas sob a égide do
cientificismo, a atividade técnica exorbita de seus limites, expulsa a
contemplação e substitui a sabedoria por uma astúcia infinitamente aperfeiçoada
de inseto.
O labor da ciência deixa metodicamente de parte as
afirmações sobre o ser e as causas universais. A noção de verdade que utiliza é
relativa. Relativa não à realidade, ou ao que é, mas a uma praxis que
constitui, num domínio estritamente especializado, a verificação de uma
hipótese ou de um programa de trabalho. E, como diz Selvaggi, em ciência não se
busca em primeiro lugar saber se a hipótese é verdadeira ou falsa, mas apenas se
é fecunda.
"Verificar uma teoria não é provar que é
verdadeira, é determinar se é utilizável". A teoria científica (escreve
ainda a autora dessas linhas) "é um meio cômodo de exprimir de maneira
coerente as relações encontradas entre um certo número de fenômenos, num campo
limitado..." Sua finalidade principal portanto é "não propriamente
explicar, mas prever, e levar a um progresso do conhecimento". ("Por
exemplo, as descobertas de Jacob e Monod eram menos uma explicação da síntese
das proteínas do que a descrição de um objeto inventado e um programa de
experiências").
To Know more and more about less and less é
portanto uma conseqüência inevitável dessa opção. E acaba sendo um vezo do
pensamento. Para a inteligência moderna, escreve Maritain, toda espécie de
saber universal e unificante é letra morta" (Ibid.).
Mas que acontecerá se se pretender substituir em
filosofia a noção de verdade pela de verificação, e se uma falsa filosfia, não
contente de deturpar o método científico, tomando-o como um tipo de explicação
das coisas, ainda por cima generalizar essa noção, estendendo-a a uma pretensa
explicação do universo?
Nesse caso "o ideal do engenheiro que age
sobre as coisas substituirá o do sábio que as contempla". Não só a
técnica, ou melhor a perspectiva técnica, se isolará da vida, mas
inevitavelmente pretenderá sobrepor-se e regê-la, "condicionando o
conjunto da visualização do mundo e do homem" (Cottier).
O resultado é a barbárie tecnológica. Contra essa
desgraça é que, com incomparável vivacidade e um precioso senso dramático das
idéias, nos adverte Marcel de Corte no seu recente estudo "L'Intelligence
en Péril" de que damos abaixo, em tradução, os trechos mais importantes.
A INTELIGÊNCIA EM PERIGO
Foi no século XVIII que se romperam de todo as
relações entre a inteligência e o real e entre o homem e o universo. Neste
ponto todos os historiadores estão de acordo. Mas por que se consumou nessa
época a tal ruptura? Porque se esboroa no século XVIII a concepção tradicional
e realista do mundo que, de Atenas a Roma e de Jerusalém a Roma, ainda, fora a
da Europa pensante e atuante?
A razão é simples. Uma concepção do mundo não paira
desencarnada num inacessível éter. Ela se incorpora à vida dos homens, e como é
partilhada por eles, encarna-se também nas instituições criadas pelas
comunidades humanas. Por pouco que as elites portadoras dessa concepção dela se
desapeguem, renunciem a vivê-la, substituam-na por outra menos austera, mais
brilhante e mais acariciante para seu orgulho, eis que a concepção oficial do
mundo começa a vacilar, abalada. Bastam algumas frestas nos pontos críticos
para que o edifício venha abaixo, corpo e alma. Quando o alto clero se diverte
renegando Deus e exaltando o homem nas lojas maçônicas, quando a aristocracia
faz-se discípula de retóricos e rabiscadores de papel, por talentosos que
sejam, pode-se dizer brutalmente que estamos “no fim da picada”. Pequenas
causas, grandes efeitos, diz o provérbio. Como assegura Augusto Comte, com
admirável acuidade, “nessa matéria — essa é uma regra universal — nunca há
proporção entre o efeito e a causa”. Uma mulher atravessa a vida de um chefe de
empresa e eis que uma usina periclita. O nariz de Cleópatra é eterno.
É desnecessário refazer aqui as análises de
Tocqueville, de Taine, de Augustin Cochin, e recordar a fascinação exercida
pelos literatos sobre a aristocracia e o clero do século XVIII, sua crítica da
civilização tradicional, sua deificação da razão, a vontade de destruir uma
sociedade que não lhes concedia o lugar a que se julgavam com direito; os
pruridos de igualdade, a denúncia dos privilégios e sobretudo a prodigiosa
habilidade com que esses intelectuais transformavam as próprias paixões em
princípios imutáveis de direito e resolviam todos os problemas humanos apelando
para o discurso, o escrito, a discussão, a conversação mundana, os colóquios de
salão, de capela, de clube, de cenáculo, os debates de assembléias, as palrices
de sociedade, enfim o “diálogo” universal, como hoje diríamos.
Mas essa inopinada e espetacular ascensão dos
especialistas do verbo, da pena, do manejo de idéias e representações mentais
(e das palavras que as exprimem), não passa do aspecto sociológico de uma
mudança muito mais profunda. Assistimos no século XVIII — e a aventura não
terminou ainda — a umamutação do espírito humano. Chegada esta mutação
agora a seu apogeu, e talvez a seu termo, podemos descrevê-la com precisão.
Com efeito, até o século XVIII os acontecimentos
com que costumamos demarcar a história humana: guerras, invenções técnicas,
descobertas geográficas, migrações, fundações de Estados, reinos, impérios, o
advento de gênios, de santos e de heróis, as transformações sofridas pelas
idéias religiosas etc., os acontecimentos que serviram para assinalar as etapas
da História, repito, afetaram sem exceção o ser humano na sua própria vida.
Nenhum deles foi originalmente um evento puramente intelectual, nem mesmo a invenção
da lógica por Aristóteles (da qual o menos que podemos dizer é que conferiu ao
espírito humano o seu definitivo estatuto), pois a arte do raciocínio é obra
menos da razão do que do próprio homem, do homem de carne e osso que utiliza a
sua razão. Conforme o dito profundo do Estagirita, não é o pensamento que
pensa, é o homem que pensa por meio do pensamento. Nenhum desses eventos jamais
afetou a inteligência em si mesma. Sejam quais forem os efeitos e defeitos que
provocaram, nunca a inteligência deixou por causa deles de ser a faculdade que
conhece o real, a ele se conformando. Em nenhum caso foi contestada a primazia
da atividade própria da inteligência, que é contemplar a verdade. A função
primordial do espírito humano jamais deixou de ser a função de conhecer, a
“theoria”. O mais elevado tipo de vida, a vida contemplativa, de que Virgílio
nos transmitiu o segredo:
Felix qui Potuiu Rerum Cognoscere Causas
foi sempre considerada o cume da sabedoria e da
felicidade. Por mais que se diga, essa absoluta prioridade da inteligência
submetida ao seu objeto não foi contestada pelo Cristianismo. O amor não
suplantou a inteligência, pois, se Deus é Amor, foi necessário que ele se
fizesse conhecer como tal aos homens e lhes ensinasse a Boa Nova.
Reconhecer-se dependente em face da realidade e do
seu Princípio transcendente, confessar ao mesmo implicitamente o laço nupcial
que une o ser do homem ao ser universal e à sua Causa, eis a condição essencial
imposta ao exercício da inteligência; condição que, através dos mais diversos
acontecimentos, sempre ela observou. Mas se no seu ato primeiro, ao invés de
voltar-se para a realidade extra-mental, a inteligência se redobra sobre si
mesma e ai deita um olhar noturno de comprazimento, por outras palavras, se
essa faculdade (conforme a fórmula antiga) se recusa a ser medida pelas coisas
para apresentar-se como sua medida, então, tendo repudiado a sua função própria
e rejeitado a lei dessa função, o intelecto deixa de conhecer as coisas. Antes
do século XVIII via-se o conhecimento ligado ao poder intelectivo de
comunicação, logo de consentimento, de aceitação e de docilidade para com o
universo e sua Causa. Depois do século XVIII, o pacto original foi rompido: a
inteligência assume o papel de uma soberana que governa, rege, domina e
tiraniza a realidade. Do alto de sua transcendência, projeta leis exclusivas
sobre o mundo, ordena-o de conformidade com os seus imperativos. A razão
considera-se a força criadora que se desenvolve e progride na humanidade, que
se desdobra através de todo o universo a fim de dar realidade a esse universo e
de converter a humanidade numa “verdadeira” humanidade. A inteligência não mais
recebe do real a sua lei, mas impõe suas normas à realidade.
Os filósofos do século XVIII perceberam a reviravolta,
(de que tinham, aliás, a iniciativa) na atividade da inteligência.
Confessadamente, a Enciclopédia foi criada “para mudar a maneira comum de
pensar”. Com efeito, trata-se de inverter, senão de subverter completamente o
ato do conhecimento. A inteligência deixa de ser feita para contemplar a ordem
do universo, e para compreendê-lo; deve agora constituí-lo a partir das regras
que descobriu conhecendo-se primeiramente a si mesma e que depois impõe à
realidade. Doravante compreender é dominar. Descartes formulou, de uma vez por
todas (no seu modo de ver) a nova carta da razão: o conhecimento que a razão
tem de si mesma e do seu método cognitivo torna o homem “maitre et
possesseur de la nature”.
* * *
Esse império da razão e das luzes se exerce de duas
maneiras, tão discricionárias uma como a outra, e anodinamente denominadas
análise e síntese. A primeira decompõe o real em elementos simples; a segunda o
reconstrói a partir desses mesmos elementos. Em ambas essas fases, a razão
manifesta sua onipotência por meio de um trabalho de dissolução e de
reconstituição conforme normas por ela mesma promulgadas. Daí por diante
conhece o real não porque dele receba uma impressão mas, ao contrário, porque
nele imprime a sua marca de fábrica. Para conhecê-lo realmente, conforme o
espírito do século XVIII, é mister, pois, refazer o objeto,
produzi-lo por composição e, por assim dizer, construí-lo. Só nesse
caso perde o conhecer o seu mistério: uma realidade que não pode ser
inteiramente recriada pelo espírito permanece obscura para o espírito, ao passo
que um ser construído por ele é-lhe inteiramente transparente, de parte a parte
transluminoso. Só conhecemos realmente as coisas feitas por nós. Saber é fazer.
Toda atividade cognitiva é atividade construtiva. A atividade poética suplanta
completamente a atividade especulativa. Esta foi hoje completamente eliminada
pela práxis. O Kantismo sistematizou essa nova atitude do pensamento humano.
Podemos reduzi-lo a três proposições: a inteligência é incapaz de apreender o
inteligível presente no sensível e a ordem “numenal” inteiramente lhe escapa; a
função da inteligência é organizar num todo coerente a multiplicidade das
sensações e das imagens que lhe aparecem, e em vez de ser fecundada pelo mundo
real, ela é que fecunda o mundo dos fenômenos e lhe confere um sentido; o homem
não mais é um ser fundamentalmente relacionado com a plenitude do ser; é uma
Razão identicamente presente em todos os seres humanos, a qual de si mesma fabrica
um sistema de relações cuja trama projeta na diversidade do mundo sensível;
dessa trama a razão é o vínculo inteligível.
Adriano Tilgher, historiador do trabalho na
civilização ocidental, formulou de maneira notável essa inversão da atividade
intelectual do homem moderno: “Kant foi o primeiro a conceber o conhecimento
como um dinamismo sintetizador e unificador que, do caos dos dados sensíveis, e
por meio de procedimentos fundados nas leis imutáveis do espírito, extrai o
cosmos, isto é, o mundo ordenado da natureza. O espírito aparece assim como
atividade que tira de si mesma a ordem e a harmonia. Conhecer é fazer, é
produzir: produzir unidade e harmonia. A idéia de ação produtiva fica
implantada de vez no cerne da especulação filosófica. Desde o criticismo de
Kant até as formas últimas do pragmatismo, toda a história da filosofia
moderna, nas suas correntes significativas, é a história do aprofundamento
dessa concepção do espírito como atividade sintética, como faculdade produtiva,
como criação demiúrgica... Só conhecemos de fato o objeto que produzimos. Mas
que produz o homem realmente? Certamente não produz os dados últimos das
sensações; estas lhe são impostas de fora; estão nele mas não são dele. O que
lhe é facultado, graças à sua atividade, é combinar de diversas maneiras esses
dados últimos, de modo a torná-los obedientes as suas necessidades, à sua
vontade, ao seu capricho; assim substitui pouco a pouco a natureza real,
natureza-naturada, por uma natureza de laboratório, de usina, que conhece porque
a fez, que é clara a seus olhos porque é obra sua. O problema do conhecimento
recebe uma solução prática. A técnica resolve praticamente o problema do
conhecimento.”
Indubitavelmente, estamos diante de uma real
mutação da inteligência humana, e portanto do homem. O próprio Kant sabia-o
claramente. Estava convencido de que procedera em filosofia a uma revolução
coperniciana. Em vez de gravitar em torno das coisas, o espírito é o centro em
derredor do qual as coisas gravitam, como os planetas em volta do sol. Só
restará a Marx estipular as conseqüências dessa subversão: “A crítica da
religião remove as ilusões infantis, faz que o homem se ponha a pensar,
agir, a modelar a sua realidade como um homem sóbrio chegado à idade da
Razão, e assim comece a girar em torno de si mesmo, seu verdadeiro sol. A
religião não passo do sol ilusório que se move em volta do homem, enquanto o
homem não se mover em torno de si mesmo.”
Mas antes já de Marx, Feuerbach definira essa
mutação e essa subversão da inteligência, a provocar desastres que ainda
ressoam na alma dos homens de hoje: “O objeto a que se destina essencialmente e
necessariamente o sujeito não é senão o ser próprio do sujeito”; em outras
palavras, o objeto da inteligência humana é a própria inteligência, que a si
mesma se apreende no seu élan criador, e que consigo coincide
enquanto princípio de si mesma e do mundo. A inteligência é um Narciso, não
imobilizado em autocontemplação, mas que, diante do espelho, cria-se a si
mesmo, criando o mundo, e que progride sem esmorecer para a sua própria
apoteose. “O ser absoluto, o Deus do homem, prossegue Feuerbach, é o ser
próprio do homem.”
Tal é a infalível conseqüência da mutação da
inteligência acuada à deificação. Com efeito, se o espírito é uma faculdade
produtora, e o conhecimento é um trabalho de produção, conhecer será não mais
(conforme o brocardo famoso) “tornar-se o outro enquanto outro”; será agir
sobre os seres e as coisas a fim de torná-las inteligíveis, substituindo a
idéia que delas temos por outra idéia e transformando-as conforme essa nova
representação. Doravante, só conhecemos o que fazemos. O mundo só é mundo na
medida em que a inteligência do homem o constrói. Está visto, o homem não cria
as próprias sensações. Recebe-as ainda do exterior. Mas esse mundo exterior, de
que parece tributário, a falar propriamente não é conhecido, não é mais que uma
espécie de matéria plástica em que a inteligência humana imprime a sua efígie.
Graças a esse trabalho da inteligência aplicada sobre os dados sensíveis, pode
o homem transformar portanto o mundo exterior de maneira a torná-lo obediente
aos seus desejos, dócil ao que estima útil ou necessário, enfim plasmável a
todas as exigências de sua vida individual e social. O exterior não mais
resiste ao homem. Graças à fissão do átomo, seu último reduto foi forçado. O
mundo é pois transformável à vontade. Nada tem mais de misterioso e de
sagrado. Caeli et terra non enarrant gloriam Dei. O mundo torna-se
o que o homem discricionariamente determina. Reina sobre ele o homem como um
deus ou um demiurgo. E quanto mais acentua seu império sobre o mundo, tanto
mais o homem se erige em absoluto, e tanto mais se substitui ao Criador,
propondo-se como um ser que prescinde de Deus, que se basta a si mesmo e que
por si só se constrói com total independência e liberdade.
Essa imensa aspiração para a asseidade e a
divindade, essa prodigiosa auto-suficiência e idolatria de si mesmo inaugurada
pelo Cogito cartesiano, entronizada pela Razão Kantiana, levada ao apogeu pelo
Espírito hegeliano, magnificada no homem por Feuerbach e encarnada por Marx no
comunismo (em que o homem faz uma volta completa sobre si mesmo e se reconhece
“como a mais alta divindade”, que “não tolera rivais”) não é apenas apanágio
dos filósofos. Essa aspiração propagou-se na humanidade inteira, com fulminante
rapidez, graças à difusão das “Luzes”, isto é, a expansão universal da
instrução pública e a proliferação da classe dos intelectuais. E isto é bem
compreensível.
Nada é mais difícil do que compreender a realidade
dos seres em toda a sua profundeza: em face do menor grão de areia, a
inteligência é remetida à totalidade do universo e a Deus. O real resiste ao
espírito; apreender a sua natureza íntima é obra de largo fôlego; a experiência
desempenha nisto um papel imenso, que é preciso incessantemente reativar. Não
acontece o mesmo com as idéias e as representações mentais, filhas do
pensamento, dóceis servas que sem rebeldia se submete aos desígnios, desejos e
projetos do seu amo. O intelectual reina discricionariamente sobre o seu mundo
interior. Nada é mais inebriante do que esse jogo de idéias em que o jogador
triunfa infalivelmente, contanto que a idéia distenda ao extremo ou rompa as
comunicações com a realidade e que, no interior do cérebro ou na linguagem,
seja abolida a dura lei de confrontação com a experiência, a submeter as
representações a um implacável controle! Essa fraude é de incrível freqüência
no intelectual. Para ele, quase sempre, os conceitos e as palavras, sinais que
deviam traduzir o real, substituem-no, fazem as vezes do mundo tal como ele se
revela à observação e à inteligência objetiva. O hábito que há tanto tempo
adquiriu de manipular com a maior facilidade esses signos ideais ou verbais
comunica ao intelectual a impressão e logo a convicção de que ao manejar
fórmulas, agarra a própria realidade (...)
* * *
Não espanta pois que a nova concepção do homem e do
mundo chamada idealismo granjeasse tão vivo e tão pronto
sucesso, particularmente entre a gente ensinante onde, sob nomes diversos, que
vão do existencialismo ao marxismo e ao estruturalismo, o idealismo conserva
posições sólidas e, se levarmos em conta as condições de recrutamento do corpo
docente, posições até inexpugnáveis. O idealismo atrai os espíritos que se
arrepiam diante do esforço exigido para desposar o real e que, a despeito de
sua alienação ou por causa dela, pretendem oferecer uma solução para todos os
problemas humanos, mesmo ao preço da supressão desses problemas e do seu
caráter humano. ... Onde — perguntamos — se encontra a verdadeira capacidade
criadora: nos artifícios do discurso, falado ou escrito, ou no labor da
inteligência graças ao qual o germe inteligível contido no sensível floresce e
produz o seu fruto? Que é mais difícil: descobrir a ordem natural do universo
ou encerrar os seres e as coisas no quadro de fórmulas, mesmo matemáticas?
* * *
O caráter distintivo de uma inteligência que se
redobra sobre si mesma e proclama o seu poder demiúrgico é destruir o mundo que
o senso comum considera como real e substituir-lhe um mundo artificial,
construído no cérebro dos filósofos, dos sábios, dos juristas, dos homens de
Estado, construído em parlamentos, centros de administração, “thinking
departments”, laboratórios ou até em células de conventos e em palácios episcopais.
Ninguém vive sem mundo em torno de si. Se o mundo que o homem não fez vai
desaparecendo, será preciso inventar outro. Uma inteligência desse tipo gera
necessariamente uma civilização de estilo técnico, como a presente, da qual a
sabedoria, tanto no sentido metafísico como no sentido moral, é eliminada em
proveito dos métodos diretivos de operações que tornam as atividades humanas
capazes de construir um mundo e uma humanidade novas, a que o homem
estará perfeitamente adaptado. As técnicas da inteligência formal permitem
ajustar cada vez mais adequadamente o homem, nas suas atividades psicológicas,
econômicas e sociais, senão na sua consciência pessoal, ao mundo exterior
tecnificado. Do mesmo modo, aproximadamente, uma máquina é ajustada a outra máquina.
Nessa concepção do mundo e do homem, os sábios (sages) que conhecem a
natureza e o sentido do universo e do homem na sua relação com Deus e que, de
maneira eminente, realizam na sua vida o tipo moral do homem que possui um
juízo seguro nessa matéria, os sábios-sages, repito, são substituídos
pelos experts, pelos técnicos dos mecanismos individuais ou
sociais, os sábios-savants, competentes, capazes de dar uma solução
prática ao entrelaçamento dos complexos problemas que os defrontam, enfim
os engenheiros de almas, como dizia Stalin, que em face do mundo e
do homem se comportam exatamente como o engenheiro diante da matéria a que o
seu gênio inventivo imprime uma forma artificial...
Importa dizê-lo e redizê-lo, a tal ponto esse fato,
de uma solar evidência, é desatendido: dos três gêneros de atividade que
caracterizam a inteligência humana, a saber, contemplar, agir e fazer (theorein, prattein e poiein)
apenas o terceiro subsiste. A vida contemplativa cedeu o lugar à vida ativa.
Mas se, com toda a tradição filosófica do Ocidente e com a própria linguagem,
distinguimos entre o domínio do agir, que é o da vida moral, e o domínio do
fazer, ou atividade fabricadora do espírito, cuja amplitude abrange desde os
ofícios mais diversos até as belas artes, e de modo geral refere-se às
modificações causadas no mundo exterior pelo gênio humano, é preciso constatar,
a menos de estar afetado de cegueira, que as esferas até aqui reservadas à
atividade teorética e à atividade prática são agora invadidas pela atividade “poética”
do espírito: nada — nem o próprio homem — escapa à transformação universal
empreendida a partir do século XVIII.
Encontramo-nos na era do pragmatismo anglo-saxão
e da práxis revolucionária, russa ou chinesa, inaugurada pelo
cartesianismo (“por sabedoria entendemos... um perfeito conhecimento de todas
as coisas que o homem é capaz de saber... a fim de manter-se saudável e
inventar todas as técnicas”), instaurada pela burguesia triunfante e coroada
pelo comunismo. A inteligência e os costumes vêem-se ameaçados até as suas
obras vivas.
Com efeito, se a inteligência não mais é medida
pelo que é, pelo que dela não depende, como os princípios imutáveis e as
naturezas que permanecem, não há mais verdade. Condenar ao
ostracismo a sabedoria especulativa equivale rigorosamente a banir toda certeza
objetiva. Ora, se não há mais verdade, tampouco há moralidade, pois a ação
moral pressupõe que conheçamos a natureza do homem e do fim a que ele se deve
orientar. Nihil volitum nisi praecognitum. Sem uma prévia sabedoria
especulativa, ao menos implícita, é impossível distinguir entre o bem
verdadeiro, o bem aparente e o mal. Todas as condutas se relativizam: o que
ontem era bom torna-se hoje mau e vice-versa. Imerso num mundo onde nada mais
é, onde tudo vem-a-ser, o homem carece de um ponto fixo a fim de orientar-se.
Todas as direções se equivalem. Sem estrela e sem bússola, vê-se ele obrigado a
navegar ao acaso. Como não mais obedece a nenhuma indicação, resta-lhe apenas a
sua subjetividade projetada ad-extra, e cujas representações exterioriza na matéria
que transforma. O mundo resulta da objetivação da subjetividade. É obra de uma
inteligência que nenhuma necessidade mais determina, cuja independência é
total, que a nenhuma lei, a nenhuma necessidade se submete, que age a seu
talante, e outra qualquer linha de conduta desconhece a não ser o puro e
simples arbítrio da subjetividade. “Sera-t-il dieu, table ou curvette?”
pergunta o Fabulista. No caso, não é a inteligência que decide: ela fornece
apenas o repertório das representações que se podem imprimir na matéria. Uma
decisão arbitrária emana da vontade isolada, da vontade polarizada e orientada
por seu próprio élan, pelo seu mero empuxo, por sua potência
irresistível e cega, a menos que encontre um obstáculo a suas forças. Sit
pro ratione voluntas. Em toda forma de atividade poética ou técnica a
proscrever e suplantar a contemplação e a ação moral, a inteligência tomada
como faculdade do real vê-se eliminada em favor da irracional vontade de poder.
* * *
Num tal universo não só a inteligência é despojada
de seu objeto próprio: o ser, e de todas essas realidades que nos são
superiores e de que dependemos, mas as substitui pelo imaginário ao
qual a vontade de poder se esforça por conferir um estatuto de realidade e uma
feição racional.
Isso é compreensível. A atividade intelectual não
dispensa um objeto. Sem objeto não pode exercer-se. Exige, pois, um sucedâneo,
e o único que encontra para sair de si mesma e deixar o recinto murado da
subjetividade, são as suas próprias representações, que converte em realidades.
Servindo-se dessas representações, terá que fazer alguma coisa que lhe seja
exterior; o que exige um prévio esquema, uma maqueta, um plano, em suma, uma
imagem materialqualquer da coisa a ser feita. Para exercer uma
atividade fabricadora é preciso recorrer à imaginação. Assim, a recusa de
submeter-se à realidade leva a inteligência a renunciar a direitos, pretensões
e prerrogativas em favor da faculdade imaginativa. Mesclam-se, confudem-se, até
o cerne, o objeto da inteligência e o objeto da imaginação. Mais ainda, o
primeiro se subordina ao segundo: a realidade desmantelada pela análise
intelectual é recomposta e re-articulada segundo novos padrões. Configura-se
assim uma representação imaginária de que a vontade de poder se apodera a fim
de construir um mundo que será por ela dominado. E não é só isso: toda a
atividade intelectual propriamente dita: a intuição, o juízo, o raciocínio, a
interrogação, a pesquisa, o cálculo, a medição, a suputação, a heurística, a
invenção etc., toda a atividade intelectual, repito, é ordenada à produção de
modelos que a imaginação propõe à vontade de poder e que esta tentará converter
em realidade.
Vivemos assim, ou melhor, fazemos de conta que
vivemos e existimos num mundo de aparências, um mundo que se faz e desfaz
perpetuamente, pois o próprio do feito é ser desfeito; o que caracteriza o
artifício é gastar-se e ser substituído por outros artifícios, sujeitos por sua
vez à mesma sorte. Por isso a tentativa de substituir o mundo das naturezas e
das essências por um mundo criado pelo homem está fadada a um perpétuo
recomeçar. Tão logo é realizado, despedaça-se o imaginário no rude embate com
as realidade permanentes, que o homem em vão se gaba de alterar. A imaginação
repõe-se logo ao trabalho. A exclamação do Fabulista:
“Il Nous Faut du Nouveau, N’em Fût-il Plus au
Monde”
torna-se a divisa e a palavra de ordem do homem
contemporâneo. O culto da novidade, da mudança, do progresso, da revolução,
esse culto que há dois séculos nos oprime, outra origem não tem a não ser essa
escravização da inteligência à imaginação e à vontade de poder.
... A “difusão das luzes” termina num crepúsculo da
civilização em que não só a vontade de potência do homem se desdobra em todos
os azimutes, mas onde a inteligência declina. Prova-o a progressiva cegueira
que a aflige. Contudo, por pouco que abramos os olhos, é manifesto que não mais
nos encontramos num mundo real, mas num mundo de aparências, em que a única
verdade apreendida pelo homem é por ele fabricada e lançada para fora como o
ectoplasma que se projeta da boca de um medium em transe. O
trabalho humano não mais se acrescenta à natureza para levá-la a uma maior
perfeição, mas para recondicioná-la e recriá-la de alto a baixo. A grande
conformidade e amizade do homem com a natureza, de que falava Montaigne, está
prestes a desaparecer. Ou mais exatamente: não há mais natureza. Foi
substituída pelas criações da técnica. Mas essas criações são imagens da
subjetividade. Secretamo-las por assim dizer do nosso organismo. Ejetamo-las ad-extra e
nelas sempre de novo nos reconhecemos, de sorte que não mais saímos da
subjetividade. Vê-se o homem neste mundo como diante de um espelho onde divisa
a sua imagem, nada mais que a sua imagem.
Diz Marx, com toda a razão, que pelo trabalho, pela
técnica e pela atividade poética, o homem se contempla num mundo não de seres e
coisas independentes do pensamento e da consciência, mas num mundo de sua
invenção. O mundo moderno, regido pelo primado da atividade fabricadora do
espírito, é um mundo de ficção, na plena significação do termo. Mundus
est fabula, dizia já Descartes. Contudo, o homem nem sequer o percebe, tão
incapaz se tornou de sair da própria subjetividade e de tomar a necessária
distância em face dela e de suas produções. O mundo da imaginação, graças às
técnicas que lhe conferem uma existência efêmera, parece-lhe mais real do que o
mundo real. Narciso vê só Narciso, mas não vê que essa imagem não tem outra
realidade a não ser a que o próprio Narciso lhe empresta. O homem é o alter-ego do
homem. É a representação do homem, é a semelhança, a efígie, o simulacro, o
reflexo, a reprodução, o duplo, a cópia, o fac-simile de si
mesmo. É o imenso espelho, continuamente aumentado, que lhe duplica a desmedida
imagem.
Por isso, sem levar na mais mínima conta os
protestos que uma tal afirmação pode suscitar, é preciso dizer que o mundo
conhecido pelas ciências modernas e especialmente pela ciência
físico-matemática, modelo e ideal das outras, é um mundo imaginário. Disto não
duvidam os melhores físicos. Ao refletir sobre o seu saber, logo percebem que
aí o pensamento não versa um objeto real. O conhecimento do objeto é uma
construção do espírito, mas tão intimamente entrelaçada com os dados da
experiência, que doravante torna-se impossível distinguir a ficção da
realidade. “Não há experiência objetiva, escreve André Regnier. Os dados
experimentais não são dados, são adquiridos por
nossa atividade, e trazem a sua marca. São abstrações que fabricamos. O
experimentador cria a experiência, assim como o químico cria o corpo puro”. As
leis naturais formuladas matematicamente na teoria dos quanta,
escreve Heisenberg, não mais concernem às partículas elementares propriamente
ditas, mas ao conhecimento que delas temos”. A teoria física contemporânea
atinge não o mundo dos fenômenos físicos tais como se dão, mas só como aparecem
nas construções matemáticas que lhe tomam o lugar. Para o físico, não há
natureza. Todo conhecimento físico é metafórico.
Por isto, não há mais verdade física no sentido
próprio da palavra. O “princípio de incerteza” triunfa em toda a linha. Nunca a
realidade como tal é apreendida pela inteligência ou pelos instrumentos de
medida por ela utilizados. A realidade é conhecida como desconhecida ou como
uma incógnita de que formamos uma representação, cuja coerência lógica importa
infinitamente mais do que a concordância com a realidade. Como poderia então a
física ser ainda uma ciência teórica? A inteligência, ávida de verdade, dela
recebe apenas lições decepcionantes.
Segue-se que a distinção entre ciência especulativa
e ciência prática tende cada vez mais a apagar-se. A teoria remete à explicação
e a aplicação à teoria. Esses dois aspectos da pesquisa, outrora ainda
rigorosamente distintos, tendem a confundir-se, formando um círculo perfeito: a
ciência pura é inseparável da técnica que lhe apura os meios de investigação e
a técnica o é por sua vez da ciência pura que a delimita e calcula com precisão
sempre crescente. É manifesto que as ciências e as técnicas contemporâneas
renunciaram à contemplação do mundo. Doravante visam à sua transformação. A
noção de verdade é substituída pela de ação eficaz. Tudo se passa como se a
segunda tese de Marx sobre Feuerbach se verificasse na metamorfose do mundo
operada pela ciência moderna. “A questão de saber se o pensamento humano é
objetivamente verdadeiro é uma questão prática e não teórica. É
na praxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é a
realidade, o poder, a justeza do seu pensamento.” Para as ciências e as
técnicas contemporâneas, desligadas de toda metafísica, desenraizadas de uma
concepção especulativa do universo, que as submetia à realidade, a verdade
torna-se mudança, inovação, reforma, reviravolta e, de qualquer sorte, a
história é revolução permanente. Ainda uma vez, é impossível que assim não
seja. Sísifo, o mais astuto e o menos escrupuloso dos mortais, segundo a
Fábula, está definitivamente atado a seu rochedo. Para tomar pé novamente no
real, de que se separou, a inteligência não tem outro remédio senão fabricá-lo
e, assim fazendo, submeter-se à imaginação, que materializará na realidade
exterior o mundo interior de que se tornou senhora absoluta, e que fará da
inteligência, sob a direção da imagem dominante ou do mito prevalecente,
a serva-padrona do mundo.
Estamos agora neste ponto. O naufrágio da
inteligência passa-se à nossa vista, no momento em que supúnhamos vê-la entrar
triunfalmente no porto. Como diz o provérbio português, a nau que não obedece
ao leme, obedece ao rochedo. A inteligência doravante é a presa das imagens e da
matéria, que a acuam ao repetido fracasso, à falência chamada Evolução,
Dialética, História. É oferecida em holocausto ao mito da matéria. Por querer “faire
l’ange” faz “la bête”. O idealismo, doença da inteligência moderna,
passa por seu último avatar: o materialismo. O idealismo torna-se, ou antes é o
materialismo. Não há nem sombra de diferença entre eles. Por ter recusado o
princípio de identidade: o ser é o que é (e não o que nos aparece) a
inteligência é crucificada na contradição.
Independentemente das rivais de inferior situação
hierárquica e de menor virtuosismo na camuflagem, duas filosofias (eu quase
diria duas teologias antropocêntricas, se fora possível falar assim sem que as
próprias palavras se levantem e protestem) duas filosofias — repito — se
dedicaram, com crescente sucesso, a travestir essa degradação do espírito e a
acelerar a sua queda: o marxismo e o teilhardismo. Representam na ordem do
espírito o papel que na ordem fisiológica desepenham certos produtos da farmacopéia
contemporânea, que combinam uma ação tranqüilizante com um efeito estimulante.
São com efeito o exemplo perfeito da mistificação que, juntamente com as
vítimas, mistifica o próprio mistificador. Comunicam ao impostor a inabalável
tranqüilidade de consciência que o faz acreditar na excelência de sua causa, e
a inflexível convicção de estar libertando as suas vítimas, no instante em que
as escraviza.
A proliferação dos sectários e militantes de tais
doutrinas, a extraordinária voga dessas mitologias, o crédito de confiança que
conservam no seio da opinião pública, a despeito dos severíssimos desmentidos
infligidos pelos fatos, nada tem isto tudo de misterioso. Basta refletir um
instante sobre um fato de capital importância que, há perto de dois séculos, domina
a história da humanidade e cujas conseqüências chegam agora ao seu termo: a
dissolução das comunidades naturais. A natureza do animal racional só
desabrocha e chega à maturidade no seio dos ambientes naturais que lhe
correspondem, e aos quais o intelecto prático acrescenta os prolongamentos
institucionais que amparam e dinamizam a sua vitalidade. Tomada enquanto
faculdade capaz de adaptar-se ao real, especialmente às realidades que
a ultrapassam, a inteligência carece de um ambiente apropriado onde revigore o
seu surto para os seres e as coisas. Nesse ambiente, a descoberta do mundo
exterior não é abandonada às meras impulsões instintivas, mas se realiza graças
à educação recebida nesse ambiente social original, de que os outros não são
mais do que prolongamentos, e cujo nome — a família — aos poucos é esquecido e
substituído por uma expressão carente de toda significação: “família
espiritual”. As disciplinas que aí se transmitem não são apenas morais, são
também intelectuais. Nunca é bastante salientar que no seio do ambiente
familiar torna-se impraticável o abandono aos caprichos da imaginação
fabuladora ou às imposturas do ilusionismo. Tudo que é mentira, falácia,
fanfarronice, vaidade, “bourrage de crâne”, fingimento, aberração,
desregramento imaginativo, sofisma e erro, tudo isso é imediatamente
denunciado. Um comportamento que em face de uma coisa não se paute pelas
exigências impostas pela natureza mesma dessa coisa, manifesta de plano a sua
extravagância. A família é o meio em que se forma a inteligência, faculdade do
real. Os demais ambientes, conexos com este, e que se retemperam na mesma fonte
natural, desempenham análogo papel: sustêm a inteligência na sua conatural
inclinação para adequar-se sem desfalecimento à realidade.
Vê-se então porque todos os desenraizados são
utopistas. A inteligência vagueia sem lugar certo: seu ato não mais se exerce
com a assistência dos meios adequados ao ser humano. Desgarrado nas nuvens do
imaginário, o intelecto fabrica um universo de quimera, de que a vontade de
potência se apodera a fim de dominar o mundo e a humanidade. A propósito, o
padre que a sua vocação superior priva de raízes, e que na humildade da alma
não refaz e transpõe esses laços para a ordem do sobrenatural, torna-se o
agente por excelência de dissolução e destruição do mundo e do homem. Como
utopista varrido, consumado revolucionário, agitador de massas e condutor de
turvas, não tem rival.
A tal ponto nossa compreensão da realidade está
obnubilada pelas quimeras da imaginação, que se nos afigura indubitável que a
maior inovação social e política dos tempos modernos, a democracia,
em favor da qual milhões de seres humanos derramaram o seu sangue, é uma coisa
dotada de existência real, quando na realidade não passa de uma ficção cuja
existência não vai além dos limites do crânio ou das constituições, discursos e
papeladas que lhe difundem o nome nos quatro cantos da terra. O governo pelo
povo só existe quando o povo governa. É claro como água: o povo só pode exercer
essa capacidade nos limites bastante estreitos e nos territórios relativamente
reduzidos em que o cidadão conhece por experiência os
problemas que surgem e as soluções cabíveis. Fora dos limites de uma área
geográfica restrita, a democracia não passa de um nome. Conforme a fórmula sarcástica
de Valery, é o regime em que o cidadão é intimado a opinar sobre questões para
as quais não tem a menor competência, e impedido de responder às questões que
são da sua alçada. As estruturas democráticas subsistem, mas não passam de um
invólucro que recobre um sistema diverso, cuja denominação cada vez mais
prestigiosa, é tecnocracia. A despeito das cataratas de saliva e de
tinta diariamente vertidas sobre as nossas cabeças, quem quer que guarde a
objetividade do juízo não pode deixar de ver que a sociedade evolui para uma
divisão em dois grupos: “os que sabem e comandam”; “os que não sabem” e
obedecem.
Esta casta tecnocrática, por sua vez, compõe-se de
dois tipos de técnicos, cujas funções são complementares, com subordinação dos
primeiros aos segundos: os técnicos do condicionamento dos espíritos e os
técnicos do condicionamento das coisas...
O papel do técnico do condicionamento dos espíritos
é substituir pelo reino da opinião chamada soberana o exercício social da
inteligência que, por falta da experiência que a poria em marcha, de
modo algum pode subsistir sob regimes democráticos de grande raio de
ação, como são os Estados modernos. O próprio da opinião é ser essencialmente
maleável. A exigüidade dos laços que mantém com a realidade tornam-na uma
entidade dúctil, fluída, moldável ao extremo, a que a vontade de poder mais
imperiosa imprime e impõe a sua forma. No sentido mais rigoroso do termo,
nós formamos uma opinião e formamos a
opinião. A opinião é o produto de uma atividade “poiética” ou fabricadora. Com
os meios matérias acessíveis hoje em dia aos técnicos: a imprensa, o rádio, a
televisão etc., não é exagerado dizer que, nas oficinas de informação que
abundam no planeta, a opinião é fabricada em série, com uma
consumada arte da manipulação sensível, da violação subconsciente e da trucagem
visual. Estamos no século da informação deformante. É muitíssimo
provável que o historiador do futuro se veja ante a impossibilidade de conhecer
a verdade histórica dos eventos que se desdobram de meio século para cá sob os
nossos olhos.
Mas não é apenas o conhecimento dos fatos: a mesma
concepção que os contemporâneos se formam do homem e do mundo
acha-se profundamente alterada. Rompeu-se a relação da inteligência com a
realidade; ou melhor, romperam-na, e em vários pontos, os profissionais do
pensamento: cientistas, filósofos, teólogos, sem falar nos inumeráveis
acólitos, maiores e menores, que vogam nas suas águas. A moldagem e
afeiçoamento da opinião é acompanhada de operações paralelas em todos os domínios
do espírito. Para “formar” a opinião, é mister que estejam de todo rompidos os
laços que unem a inteligência ao ser. Reduzido à subjetividade, amputado das
raízes, despojado das amarras, o homem não passa de um títere largado à inteira
discrição de seus manipuladores. Sua mutação em autômato é tanto mais fácil
porquanto só lhe resta o impulso informe da inteligência e da vontade para os
respectivos objetos desaparecidos. É o que os técnicos da opinião chamam com
orgulho “as exigências do pensamento moderno” ou “as reivindicações da
consciência contemporânea”, ou ainda “as aspirações da humanidade”, etc.
Apoderam-se desse magma amorfo e imprimem-lhe do exterior, mediante as técnicas
da persuasão aberta ou clandestina, uma imagem do homem futuro e de um mundo
futuro, a mais fascinante que consigam elaborar, tendo como coroamento a
promessa: haec omnia tibi dabo. O bom êxito de seu empreendimento
está assegurado no domínio social. A tal ponto é verdade que o homem é animal
político, que a privação das comunidades naturais incita-o de pronto a
edificar comunidades artificiais e castelos em Espanha.
É na malaxagem de opinião política e social que
triunfa o técnico do condicionamento dos espíritos, como bem o demonstra a
experiência.
Manter o homem contemporâneo continuamente em suspense,
projetando no écran da sua imaginação uma sociedade futura,
cujo advento é a toda hora descrito, e na qual ele se contempla convertido em
super-homem, semi-deus ou deus, é a infância da arte. O mito de uma sociedade
em que o homem terá todos os direitos e nenhuma obrigação, plena liberdade e
total irresponsabilidade, em que o eu coincidirá com o gênero humano, conforme
a promessa de Marx, onde o mesmo homem descobre que simultaneamente é
“personalista” e “comunitário” (tal é a transcrição de Marx por Mounier) tem
boa probabilidade de realizar-se um regime em que deixou de haver sociedade, em
que o Estado, que não mais é limitado por comunidade naturais
subjacentes, detém um poder ilimitado e se vê encarregado pela opinião devidamente
condicionada da apavorante missão de criar um novo homem e um novo mundo.
A tecnocracia, seja a do espírito ou a do espírito
convertido em coisa, inclui manifestamente a socialização integral da vida. O
pensamento torna-se coletivo, pois todos os pensamentos são idênticos, sendo
prensados no mesmo molde, e propagados na mesma inenarrável “noosfera”
inventada por Teilhard para assegurar o nosso condicionamento. Todas as
atividades do espírito coletivizado tornam-se desde logo coletivas: a atitude
contemplativa, ou o que dela resta, reduz-se à visão narcísica da Razão comum a
todos os homens, contemplada num espelho que é ainda a mesma Razão; a atividade
prática vê o bem substituído pelo útil e a felicidade pela inscrição num Seguro
Social ilimitado, que se estende do berço à sepultura; a atividade “poiética”
ou fabricadora, esta, celebra o seu próprio triunfo. Os trabalhadores são
considerados como um único e gigantesco trabalhador que, trabalhando cada vez
mais, acabará por levar uma existência idílica num Paraíso terrestre
reconstruído para a eternidade.
Essa socialização dita inevitável só tem um
inconveniente: é que não existe; não existe porque não pode existir, a não ser
no interior da imaginação, sob a forma de mitologia. O pensamento coletivo que
preside à integral socialização da vida humana não pode existir por uma boa e
simples razão: é que há só pensamentos individuais, irredutivelmente unidos a
um cérebro individual e a um corpo também individual. Por trás desse pretenso
pensamento coletivo, subjacente ao assim chamado labor coletivo, o que há
simplesmente, torno a dizer, é a vontade de poder de alguns que se associam
numa “direção colegial” (como se diz), uma estrutura de poder participado, cuja
outorga a um tirano único é a curto prazo previsível. Oulz agathou
polykoiranein, heis koiranos estê.
Sob os nossos olhos uma sociedade estruturada em
dois compartimentos estanques nasce da decomposição da sociedade do Ancien
Régime, derrubada pela Revolução francesa, cujas últimas reservas vitais,
outrora ainda esparsas, acham-se hoje quase esgotadas. A sociedade sem classes,
com que sonhava a liberal democracia, e de que o Comunismo é a lógica viva, não
passa de uma cortina de fumaça por trás da qual se processa a ascensão
da casta mais despótica que a História jamais conheceu, casta sem
entranhas, sem alma, sem vida espiritual, composta de indivíduos cuja
inteligência, limitada à dimensão técnica das coisas, é escrava de uma
desmedida vontade de poder.
Essa revolução em curso torna-se cada vez mais
evidente: o deputado não mais está a serviço do povo, mas o povo a serviço do
deputado; o professor não é feito para o curso, mas o curso para o professor. O
ensino não é para os alunos, ou os programas para a vida, mas os alunos é que
são para o ensino e a vida para os programas; o padre não existe para os fiéis,
os fiéis é que existem para o padre, e assim também a sociedade não de destina
à pessoa, mas a pessoa à sociedade (...)
Quando a inteligência inverte seu natural movimento
para a realidade, a fim de submeter a realidade a suas representações mentais,
é de esperar que a contradição se instale em todos os domínios. O mundo se põe
“de pernas para o ar”.
A linha de demarcação entre a casta dirigente e a
condição de dirigido, entre os detentores reais e reconhecidos do poder e os
que padecem da sua ação, entre a “hierarquia paralela” que exerce o poder real
e os que imaginam ainda obedecer voluntariamente a uma autoridade doravante
decorativa, é geralmente constituída pela pressuposição de superioridade que
o Diploma confere à inteligência formal e técnica. Entre o
pergaminho e a inteligência cortada do real, mas desejosa de substituí-lo por
suas construções existem hoje evidentes afinidades, se não completa identidade.
É natural portanto que a intelligentzia tecnocrática seja
recrutada principalmente entre os diplomados. Para ingressar nessa intelligentzia é
preciso demonstrar não a capacidade de penetrar no real, mas mecanismos mentais
ou materiais. De resto, a “pele de asno” só é conferida graças a uma conversão
do qualitativo em quantitativo. Os imponderáveis tais como o caráter, a
vocação, o talento, a largueza de espírito, a curiosidade, o bom gosto, a honra,
o dever, o senso moral, o senso estético, enfim tudo o que não pode ser
expresso em algarismos vê-se relegado a um plano secundário. A falsa gravidade
do conhecimento enciclopédico e de sua irmã gêmea afligida de nanismo, a
especialização, eliminou a concepção do mundo própria do “homem de bem”. A
elite é recrutada e julgada em função de capacidades técnicas: o mundo
artificial construído pelo homem moderno não tolera outros critérios.
Destarte as Universidades tornam-se escolas
profissionais superiores. Se nelas ainda se tolera a filosofia, é na medida em
que essa filosofia contribua para a deturpação dos espíritos, e procure
justificar por meio de sofismas a tese de que o homem é a medida de todas as
coisas. O santo, o gênio, o herói, o sábio ou simplesmente o espírito livre e
criador em qualquer domínio gozam de uma influência mínima. A sociedade inteira
oscila e pende para o lado do Diploma e do Mandarinato.
Doravante, os títulos escolares são universalmente
exigidos e, tanto mais rigorosamente, por quanto os espíritos unicamente
formados (ou deformados) por cursos, discursos, lições, “ciclagens” e
“reciclagens” etc. vêem-se separados das realidades por um écran de
representações mentais, faladas ou impressas, cuja espessura aumenta
incessantemente, e que convém particularmente à fabricação de um homem novo e
de um mundo novo. O intelectual moderno passa a maior parte do tempo longe das
realidades, na leitura de jornais, revistas, livros, ou em reuniões,
conversações, colóquios, “diálogos” etc. Para ele a presença do mundo real e do
homem real não tem o menor sentido. O intelectual só se sente à vontade num
mundo artificial de homens artificiais, onde reencontra a sua própria imagem. A
esse propósito, pode-se dizer que a inteligência é a faculdade menos usada pelo
intelectual. “Considero o intelectual moderno como o último dos imbecis, até
que me prove o contrário”, rugia Bernanos.
Cada vez mais nos esquecemos que as sociedades
humanas precisam de uma certa proporção de espontaneidade, de originalidade, de
anarquia natural, ingênua, viva, sob pena de degenerar em sociedade animal
estereotipada. Sem essas forças criadoras, a sociedade se congela. O mecânico
suplanta então o vital e o esteriliza, muitas vezes sob a capa de um
não-conformismo cujo caráter artificial e premeditado reforça os automatismos
sociais que pretende romper. Essa observação vale para todos os tipos de
comunidade; nenhuma há que mais cedo ou mais tarde não deva revigorar-se graças
à contribuição de elementos expogenos. São bem conhecidas as conseqüências dos
casamentos consangüíneos nas dinastias e aristocracias. As universidades, as
administrações, as corporações, as empresas etc. se ancilosam sob o efeito de
regras rígidas de admissão. É necessário recorrer a personalidades “fora de
série” a fim de restituir-lhes o élan e o vigor. O mundo das
técnicas e dos artifícios em que vivemos exclui esse recurso. É obra de
especialistas a quem são confiados os planos para a sua elaboração. Para ser
admitido entre os seus membros é preciso que cada um por sua vez se
especialize. Como as técnicas que o criaram e que continuamente renovam a sua
existência cada dia se tornam mais numerosas e mais complexas, exige-se um
número cresce de estudos e de diplomas aos que pretendem penetrar no santo dos
santos, ou melhor, na casa de máquinas da sociedade contemporânea. Uma vida
inteira não basta para se ter acesso à dignidade de tecnocrata superior. A
sociedade compõe-se de técnicos escalonados a partir do seu cume. Essa pirâmide
assenta com todo o seu peso sobre a base formada pelo comum dos mortais. A
sociedade progride rapidamente para o “perfeito e definitivo formigueiro” onde
cada um encontrará um lugar e uma função catalogada conforme regras que ninguém
pode transgredir.
O Estado, que organiza e dirige esse tipo de
sociedade, se arroga o direito de conceder o alvará que permitirá a cada um
ocupar o lugar e exercer a função que lhe compete. E mais: não só fiscalizará o
exercício dessas funções, mas se atribuirá o controle de toda a evolução da
vida profissional, à qual se reduz hoje a vida social. Atualmente o Estado
examina, inspeciona, verifica, calcula, prevê, provoca e determina todas as
mudanças que se operam no fluido universo submetido ao seu poder. O mundo
funcional em que vivemos é um mundo funcionalizado (ou burocratizado) sob a
égide e a impulsão do Estado. Os cidadãos tornam-se direta ou indiretamente
funcionários do Estado; os patrões são empregados do fisco para os seus clientes;
são também empregados dos institutos de seguro social etc. Um economista russo
calculou que em 1980 a população inteira do seu país será insuficiente para
desincumbir-se das tarefas atribuídas à burocracia estatal. Atingiremos a
situação grotesca em que o gracejo de Péguy: “há os que estão diante dos guichets e
os que estão atrás deles” não mais se verificará. Todos estarão por trás de
algum guichet. Até nos países menos burocratizados verifica-se já
plenamente a célebre lei de Parkinson: um mais um é igual a três; e os que se
encontram diante do guichet fazem desesperados esforços a fim
de passar para o outro lado. A “desnaturação” do mundo que os cerca
angustia-os. Precipitam-se para o setor abrigado do funcionalismo estatal.
Precisam abandonar-se ao Poder supremo do Estado, para que os mecanismos ou
automatismos desatados por eles, e aos quais não querem renunciar, possam ser
disciplinados. Nada mais pode torna-los felizes nesse mundo chamado “novo”, que
é a sua obra. Ávidos de estabilidade, no seio da perpétua mudança que os
arrasta, recorrem ao Estado, poder de estabilização. Assim se ergue o grande
deus moderno: o Estado-Providência, que assegura a felicidade dos homens, mas
cuja sombra imensa e tutelar esteriliza a inteligência, mecanizando-a, e, como
a raiz da liberdade está na inteligência, extingue a liberdade.
Cumpre-se a profecia de Tocqueville: “O Estado
trabalha para a felicidade dos homens, mas timbra em ser o único agente e o
árbitro supremo. Provê à segurança de todos, calcula as necessidades e assegura
a sua satisfação, facilita os prazeres, incumbe-se dos principais negócios,
dirige as indústrias, regula as sucessões, reparte as heranças; de bom
grado pouparia aos homens o esforço de pensar e a pena de viver. Desse
modo, o Estado torna gradualmente mais infreqüente e mais dispensável o
uso do livre-arbítrio; cada dia confina o exercício da vontade num espaço que
se vai estreitando, e pouco a pouco arrebata aos cidadãos o senhorio que cada
um deve exercer sobre a sua própria pessoa.”
(Progresso e Progressismo,
Cadernos da Permanência, Agir, 1970) Tradução: Alfredo Lage
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