“Muitas vezes se observa um resultado a contradizer uma definição:
o erro estará no modo de usar, e não na intrínseca natureza da coisa usada”
Gustavo Corção
É este o mais curioso, e talvez o mais
significativo dos problemas sociais de nossos tempos. O que fazer do saldo
disponível de horas? Como vadiar? Psicólogos, economistas, políticos e
sociólogos americanos já prevêem que o crescente desenvolvimento técnico trará,
inevitavelmente, uma dilatação do ócio; e já se preocupam com tal perspectiva,
pois parece admitido por todos que os mesmos homens que sabem fazer bombas e
satélites, não sabem o que fazer de si mesmos nas horas de folga. Arma-se então
"o problema do lazer".
E aí está um argumento a mais para os
moralistas que vêem na técnica uma força de desumanização. Já foi dito que a
máquina produz desempregos. Um trator é capaz de substituir dez ou vinte
homens. É portanto, concluem, capaz de despedi-los. E o fenômeno realmente se
verifica. Mas, por mais que se verifique a conclusão, não é menos falso o
argumento que o anuncia. A concomitância não basta para determinar uma
causalidade. O fato de haver desempregos onde surge a mecanização não prova que
a causa do desemprego seja a máquina. A técnica, em si mesma, é essencialmente
benéfica e libertadora. E é essencialmente humanizadora, ao contrário do que
dizem alguns moralistas. A técnica imprime no mundo a marca da razão, que é o
traço específico do homem. Uma planície com moinhos é mais humana do que uma
planície atapetada de flores. Um mar com caravelas é mais espiritualizado do
que um mar vazio de navegantes. E se isto é verdade para o moinho e para a
caravela, verdade será também para a chaminé e para o avião. Não é a técnica
que desumaniza o homem, é a filosofia errônea que o guia. Não é a máquina que
produz o desemprego, é a defeituosa estrutura social que a utiliza. A máquina,
por definição, é a racionalização do mundo físico, e portanto é aquilo que
torna efetivo o senhorio do homem sobre as forças da natureza. Muitas vezes se
observa um resultado a contradizer uma definição: o erro estará no modo de
usar, e não na intrínseca natureza da coisa usada.
A polícia, por definição, é um instituto
montado para promover a ordem da sociedade, mas já temos observado
circunstâncias em que é a própria polícia que traz a desordem. Um exército, por
definição, é um órgão destinado a garantir a segurança de uma nação; mas
existem exércitos aparelhados para sua finalidade própria, que só funcionam
como piramidal organização destinada a dar prestígio político a um oneroso
mandarinato de generais. Tudo isso são sinais de enfermidade social, e não
provas da malignidade daquelas instituições.
Agora a técnica dos países superdesenvolvidos
traz um curioso problema. Liberta efetivamente o homem. Permite alta
produtividade com menos horas de trabalho humano. Mas em vez de bater palmas o
psicólogo coça a cabeça. Preocupa-se. O que irá toda essa gente fazer do tempo
que sobra? O problema é real. O psicólogo tem razão de ficar preocupado. Mas
isto — o fato
de existir o motivo de preocupação — isto prova que a sociedade está padecendo
de uma estranha enfermidade. Mais razoavelmente eram as ponderações sobre o
desemprego, porque naquilo havia a estranheza de uma contradição. Os homens se
preocupavam porque a máquina, que parecia um elemento de auxílio, mostrava-se
como inimiga. Agora os homens ficam perplexos porque a máquina realmente
liberta.
No fundo desse problema há um profundo e instintivo
medo da liberdade. E esse medo, na superfície dos conceitos conscientes,
aparece com os postulados de uma filosofia que é respirada, que é possuída e
vivida pelos americanos e pelos russos. Segundo essa filosofia, o homem é
essencialmente produtor. Realiza a plenitude de sua essência quando está
produzindo. É homem, pleno homem, nas horas de eficiência. E daí se tira o
conceito negativo de ócio e lazer.
Ora, por escandalosa que possa parecer tal
afirmação é no ócio, no lazer, no descanso ou na vadiação que o homem atinge,
ou pode atingir, a plenitude de sua condição. O trabalho, em outras palavras,
não tem caráter de fim. É um meio. A vida humana está condicionada para o
trabalho. Metafisicamente, é mais importante chegar à casa do que chegar ao
local do emprego; é mais elevado, mais plenamente humano, levar o filho ao
jardim zoológico, ouvir um quarteto de Bocherini, conversar com os amigos, do
que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. Todos os
títulos extrínsecos são inferiores ao título fundamental que todos possuem em
casa, quando encontram o cerne de sua personalidade e recuperam o nome de
batismo.
O pragmatismo que tornou maquinal o ilustre
inventor de todas as máquinas, e que pretende tecnicalizar a própria vida do
glorioso criador das técnicas, dá ao lazer um valor negativo, como o do sono,
ou como o do repouso das máquinas. Mas o repouso humano não se define como
interrupção do trabalho. Ao contrário, é o momento em que a vida ganha nova
dimensão e recupera a plenitude da dignidade. E sobretudo é o momento em que a
alma humana conquista a liberdade para o mais alto, para o mais humano tipo de
atividade: o convívio afetivo, o exercício lúdico, a contemplação da beleza e
da verdade. Completa-se o quadro, em pauta de ordem mais elevada, com a vida de
contemplação e de oração.
A dignidade do trabalho não se mede com escala
tirada do próprio trabalho, não se mede pela eficiência e pela produtividade.
Mede-se pelos frutos que proporcionam, isto é, pela paz e pelo repouso que dão
aos homens. É bom explorar as jazidas de petróleo para que em maior número os
homens possam gozar os benefícios desse mineral, isto é, possam voltar para
casa com conforto, ou levar a criançada ao jardim zoológico. Ver a zebra, ou
passar a noite conversando com amigos, é a finalidade última que dá às
refinarias e aos demais maquinismos sua verdadeira importância.
Mas os dirigentes americanos têm razão. O
lazer é um problema, ou melhor, tornou-se um problema numa sociedade que
respira pragmatismo. São bem fundados os receios dos dirigentes que não vêem
com bons olhos o saldo de liberdades. É preciso, desde já, preparar os povos
para um regime de vida mais folgada... Veja o leitor como é estranha a vida e
como é esquisito o mundo. Se há apertos, haverá o problema do aperto; se há
folga, o problema será o da folga. Outro dia, aparteando um conferencista que
gabava os prodígios dos "cérebros eletrônicos", que resolvem mil e um
problemas, lembrei uma frase impaciente do grande Einstein. "Esta máquina
— disse o sábio — resolve todos os problemas, mas não é capaz de armar um
só". Em outras palavras: a máquina responde, mas não é capaz de uma coisa
maior: não interroga. Em compensação, nisto o homem é exímio. É capaz de armar
problema sobre o que não parecia ser problemático.
E não se diga que o problema do lazer é só dos
abastados. Será dos povos abastados, mas aí a todos interessará. Não é do ócio
dos ricos que estão cuidando os dirigentes americanos; é do ócio de todos. Mas
o que entrevi do problema não me tranqüilizou. Ou melhor, me trouxe outro
problema: o problema dos psicólogos, políticos e sociólogos que estão abordando
o problema do lazer. A tendência geral, ao sabor da mentalidade americana, é a
de promover os recursos e meios para encher o tempo disponível. Eles querem
organizar, ao lado da máquina da produção, a máquina do passa-tempo. A solução
verdadeira, a única a rigor, está no desenvolvimento espiritual que deve
acompanhar o desenvolvimento técnico. Se isto não for feito nós veremos um
mundo em que a força espiritual dos homens, numa espécie de magia como a do
"Retrato Oval" de Edgar Poe, se transferirá para as máquinas. Mas não
é esse caminho o da valorização do lazer, que estão tomando. Ao que parece, a
solução procurada está na linha do divertimento e do passatempo. E não há
maneira mais imprópria, mais anti-humana de resolver o problema das horas
livres. A rigor, o modo correto de resolver o problema é o de providenciar para
que não haja técnico. Se isto não for feito no esquema pragmático, o lazer será
sempre, definitivamente um problema, um medíocre e triste problema. Onde iremos
hoje? E amanhã? Consultemos o cardápio oficial, tiremos para o caso peculiar de
nossos nervos e de nosso orçamento, uma dieta de prazeres que nos escamoteiem
as horas que sobram.
Ao leitor que porventura, ou por desventura,
supõe que o divertimento e a atividade lúdica são a mesma coisa, eu direi, com
ênfase, que está enganado. A experiência lúdica tem qualquer coisa de uma
experiência poética, e assim possui um alto teor de realização; o divertimento,
ao contrário, é evasão. É claro que na linguagem comum, o termo
"divertimento" muitas vezes se emprega para significar os mais
legítimos e puros atos lúdicos, ou as mais genuínas experiências poéticas, mas
em geral significa aquilo mesmo que aqui definimos como evasão e massacre de
tempo. E se o leitor quiser saber o que penso desse esquema de matar o tempo,
releia o seu Pascal. Lá verá, num denso e definitivo resumo, toda a filosofia
do divertimento; e então se convencerá que não há pior receita para um povo e
para uma civilização do que esta que está em vigor nos países
superdesenvolvidos: produzir e divertir-se.
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