Nas vésperas da liberação da Missa de São Pio V para todo o mundo, é muito conveniente citar o que pensava Paulo VI sobre isso.
No livro de Jean Guitton, Paulo VI Secreto, Guitton conta que apresentou a Paulo VI um texto de Proposições tratando dos problemas da Fé na França.
“Vejamos essas Propositions”, disse o Papa. Estendo-lhe o documento. Havia um primeiro parágrafo sobre a fé, no qual se dizia que o problema principal de nossa época era o da fé, da sua permanência. Porque a fé somente é verdadeira se é permanente, isto é, se a fé de hoje é a mesma que a de ontem e que a de amanhã. O Papa diz: "O progresso supõe a tradição. Nós afirmamos isso sempre, solenemente, particularmente em nossa profissão de fé”.
“A dificuldade – respondo – provém do fato que se fala da igreja conciliar como se esta igreja obscurecesse tudo quanto existia antes. Ora, se a igreja conciliar cancela e modifica em pontos essenciais a igreja precedente, reconhece que no passado pode ter errado. E se ela errou no passado, por que não poderá errar atualmente e no futuro?”
“O Santo Padre me disse: ‘Considere a reforma litúrgica. Vou ainda mais longe que o senhor. Não só mantivemos todo o passado, mas reencontramos a fonte que é a tradição mais antiga, a mais primitiva, a mais próxima das origens. Ora, esta tradição fora obscurecida no curso dos séculos, e particularmente no Concílio de Trento”.
“Respondo: Difícil é não dar a impressão que Trento tenha abandonado ou rejeitado o que existia antes de Trento, por exemplo, que a Missa de Trento, lá onde o Concílio insistiu sobre o caráter sacrifical da missa (que renova misticamente o sacrifício da cruz) foi disfarçado por uma reação antiluterana; que Lutero estava mais na verdade do que o Concílio, já que Lutero afirmava retornar à fonte primitiva”.
“Mas – diz o Papa – aqui não está em questão a identidade da fé, a sua verdade permanente. A norma de Vicente de Lérins, quod semper, quod ubique, quod ab omnibus (aquilo que foi acreditado sempre, em toda a parte, por todos), permanecerá sempre o critério da fé”.
O Papa leu, então, o terceiro ponto de meu documento onde se diz que seria desejável a autorização da missa de São Pio V, por um período experimental e provisório; conseqüentemente a anulação da interdição feita na França de celebrar essa missa de São Pio V (que o concílio jamais pretendeu abolir).
O Papa me diz severamente:
“Isso jamais! Desde que se trata de uma disputa má, pois que o cânon de São Pio V eu o conservei na nova liturgia, onde ele é colocado em primeiro lugar”.
[Guitton:] “Mas não se trata do cânon. Trata-se do Ofertório onde, na nova liturgia, a idéia de sacrifício parece restringida”.
[Paulo VI]: “Reconheço que a diferença entre a liturgia de São Pio V, e a liturgia do Concílio (chamada freqüentemente, não sei por que, de liturgia de Paulo VI) é muito pequena. Na aparência, a diversidade [no ofertório das duas Missas] repousa numa sutileza. Mas essa missa dita de São Pio V, como se a vê em Ecône, se torna o símbolo da condenação do Concílio. Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo”. [destaque nosso].
“Se fosse acolhida essa exceção, o Concílio inteiro arriscaria de vacilar. E conseqüentemente a autoridade apostólica do Concílio” .(Jean Guitton, Paulo VI Secreto, editora San Paolo, Milano, 4 a edição, 2.002, versão integral do francês aos cuidados de David M. Turoldo e Francesco M. Geremia, pp. 143-144-145 – Título original Paul VI Secret, Desclée de Brouwer, Paris).
E que a Missa de Paulo VI é aquilo pelo qual o povo fiel mais conhece o Concílio, e que essa Missa é a expressão do Vaticano II foi afirmado por João Paulo II e pelo Sínodo Episcopal de 1985:
“A renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar ' (Synodi Extr. Episc. 1985 «Relatio finalis», II, B, b. 1). Para muitos, a mensagem do Concílio Vaticano II foi percebida antes de tudo por meio da reforma litúrgica.” (João Paulo II, Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, sobre o vigésimo-quinto aniversário da promulgação da constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, 4 de dezembro de 1988, n. 12, tradução e sublinhado nossos, http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_04121988_vicesimus-quintus-annus_it.html ).
Esses textos de Paulo VI falam por si..
Destacaremos três pontos gravíssimos nessas afirmações de Paulo VI:
1 - A afirmação inacreditável de que a “tradição [da Igreja] fora obscurecida no curso dos séculos, e particularmente no Concílio de Trento”.
O Concílio de Trento foi infalível!
Como Paulo VI se atreveu a acusar um Concílio infalível de ter obscurecido a Tradição da Igreja?
2 – “Trata-se do Ofertório onde, na nova liturgia, a idéia de sacrifício parece restringida”, disse Guitton, ao que respondeu Paulo VI:
“Reconheço que a diferença entre a liturgia de São Pio V, e a liturgia do Concílio (chamada freqüentemente, não sei por que, de liturgia de Paulo VI) é muito pequena. Na aparência, a diversidade repousa numa sutileza”.
Por essas palavras, Paulo VI reconheceu que um dos pontos divergentes fundamentais entre a Missa de sempre e a Nova Missa, que ele impôs contra toda a tradição da Igreja, está no Ofertório.
Ele admite que na sua Nova missa a idéia de sacrifício parece restringida, diminuída, mas que a diversidade repousa apenas numa subtileza.
O que é outra confissão gravíssima, pois aproxima a Nova Missa da noção luterana de ceia.
3 - A afirmação categórica que liberar a Missa de sempre é, simbolicamente condenar o Concílio Vaticano II, já que, conforme diz João Paulo II: “Para muitos, a mensagem do Concílio Vaticano II foi percebida antes de tudo por meio da reforma litúrgica ".
Repito a frase de Paulo VI:
“Isso—liberar a Missa de São Pio V – jamais! (...) essa missa dita de São Pio V, como se a vê em Ecône, se torna o símbolo da condenação do Concílio. Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo”.
Realmente, hoje o que o povo conhece como símbolo do Vaticano II é a Nova Missa de Paulo VI.
Portanto, liberar a Missa é entendido como condenação do Vaticano II.
E foi isso que proclamaram vários Bispos franceses.
E Dom Jean-Pierre Longeat, O.S.B., Abade de Ligugé, em recentíssimo artigo intitulado “A Unidade da Liturgia Romana em Questão”, publicado no dia 23/10/06 no Jornal LA CROIX, mostrou que a questão de fundo é a oposição entre uma noção sacrifical na Missa de sempre, que renova misticamente o sacrifício da Cruz, realizado pelo sacerdote, agindo in persona Christi permitindo a transubstanciação do pão e do vinho em Corpo e sangue de Cristo, enquanto que isso é contrariado na Nova Missa de Paulo VI, fundamentada no Vaticano II, em sua Constituição Lumen Gentium que entende a Missa como ação sacerdotal em nome do povo de Deus na qual os sacerdotes “agem como ministros da comunidade eclesial (in persona Ecclesiae, ministros da Cabeça e do Corpo)”. (cf.http://qien.free.fr/2006/200610/20061023_longeat.htm).
Portanto, a Nova Missa exprime uma nova teologia diversa da teologia de Trento. A Nova Missa é a expressão da teologia democrática e antropocêntrica de Igreja da Lumen Gentium do Vaticano II. Por isso, permitir a Missa antiga de São Pio V é abandonar a teologia do Vaticano II, e, como afirmou rotundamente Paulo VI, isso equivale a condenar o Concílio simbolicamente.
Eis as palavras do Abade de Ligugé, revoltado com a notícia de que Bento XVI ia liberar a Missa de São Pio V para todo o mundo.
“Querer encorajar na Igreja Latina o retorno a um outro acento teológico por extensão do Ordo de 1962, é gerar uma perturbação muito profunda no povo de Deus”.
Para o Abade de Ligugé... “A liturgia é um lugar teológico. O Ordo Missae de 1969 -- [o da Missa de Paulo VI] – põe em ação em particular a teologia da constituição dogmática da Igreja. Lumen Gentium apresenta a Igreja ao mesmo tempo como Corpo Místico de Cristo e como Povo de Deus reunido em nome de Cristo; assim , o Concílio diz que a Igreja é “ de algum modo o sacramento, quer dizer ao mesmo tempo o sinal e o meio da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium, n0 1).
“Face aos perigos do individualismo ligado à evolução das mentalidades há vários séculos, o Vaticano II e a reforma litúrgica que saiu dele insistem sobre a reunião eclesial como sacramento global. Um tal sacramento se desenvolve na liturgia, mas também em relação com a comunidade fraternal no interior das comunidades eclesiais e entre elas. A comunidade por excelência é o povo de Deus reunido na Igreja local em torno de seu Bispo, cada membro tendo os eu lugar nessa única eucaristia em estreita comunhão com todos: assembléia, presbyterium (de onde se compreende bem, nessa perspectiva, que seja encorajada a concelebração), diáconos e outros ministros”.
“A prioridade teológica do Concílio de Trento era outra (ainda que o aspecto eclesial aí estava presente): valorizar a realidade da presença de Cristo no pão e no vinho eucaristicizados e o papel sacramental do padre, contra a reforma protestante. É por isso que a ação sagrada do padre aí é tão valorizada. As palavras que ele pronuncia in persona Christi permitem a transubstanciação do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Cristo. Certo, no ritual de 1969, os ministros mantêm um papel essencial nesse domínio, mas a insistência é posta também sobre o fato de que eles agem como ministros da comunidade eclesial (in persona Ecclesiae, ministros da Cabeça e do Corpo)”.
Em suma, a grande afirmação de Paulo VI a Jean Guitton foi que “Isso—liberar a Missa de São Pio V – jamais! (...) essa missa dita de São Pio V, como se a vê em Ecône, se torna o símbolo da condenação do Concílio. Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo”.
A liberação da Missa de sempre é, no fundo, pelo menos simbolicamente, uma condenação do Concílio Vaticano II.
E Bento XVI vai liberar a Missa de sempre.
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Fonte: http://floscarmeliestudos.com.br/paulo-vi-liberar-a-missa-de-sao-pio-v-e-condenar-o-concilio-vaticano-ii-por-meio-de-um-simbolo/
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