“Em mim reside toda a graça
do caminho e da verdade, em mim toda a esperança da vida e da virtude. Sou como
a roseira plantada à beira das águas”. Ofertório — Nossa Senhora do Rosário
Gustavo Corção
Vale a pena, nestes
meses de outubro e novembro, meditar muitas vêzes na Comunhão dos Santos, e
especialmente na intercessão daqueles que povoam a Igreja do Céu; e vale a pena
consagrar uma especial atenção ao culto de veneração que devemos à Virgem
Santíssima, de cujas mãos recebemos as graças de seu Filho para nossa salvação.
Bem sabemos que os tempos são ingratos para esta forma de piedade, tão
católica e tão comprovadamente boa. Quase devemos ter força de mártir se
quisermos dizer alguma coisa sobre o nono artigo do Símbolo: “creio na Comunhão
dos Santos”, e sobretudo se quisermos meditar aos pés de Nossa Senhora. Ai de
nós!, o tempo em que vivemos gaba-se de ser comunitário em todos os sentidos,
exceto neste que se refere à Comunhão dos Santos; e gaba-se de ser pacífico e
fraterno em todos os sentidos, exceto neste que se refere à nossa Mãe.
Será possível a vida católica com tal esquecimento? Será louvável a
prática dos que desnudam as Igrejas sob o pretexto de que as excessivas imagens
obstruíam o caminho da cruz? A essas duas perguntas a Igreja de ontem e hoje, a
Igreja una e santa responde com uma enérgica negativa. Bem sabemos que não há
nenhum intermediário, nenhuma criatura, anjo ou santo, de permeio entre nós e
Deus no intrínseco processo de um ato de Fé, de Esperança e de Caridade. Nihil aliud quam veritas prima. Mas também sabemos que
o condicionamento, o encaminhamento, a preparação e a preservação desses atos
supõem todo um sistema de agasalhos que Deus mesmo inventou. Sem nada
contribuírem, a não ser com os reflexos e ressonância da graça divina, os
santos formam em torno de nós uma atmosfera de cordialidade sobrenatural, que
nos socorre e nos ampara. Para nossos “olhos de coruja” Deus é invisível por
ser luminoso demais; por isso lançou em sua santa Encarnação, uma ponte sobre o
abismo que nos separava, mas essa mesma ponte, esse mesmo divino instrumento
que é a humanidade do Verbo Encarnado, para atingir-nos com a humildade de
nossa pequenez, fêz-se pequenino e “nasceu de Maria Virgem”. Mais tarde, na
suprema despedida da cruz, ouviremos a recomendação de infinita doçura e de
conseqüência infinita: “Mulher, eis o teu filho”; e em seguida disse ao
discípulo: eis a tua Mãe”. E depois, na socialização de seu Corpo Místico,
renasce Jesus em todos os que crêem e dão o seu testemunho.
E há certa semelhança entre o nascimento em Maria Virgem e o nascimento
em nós. Não temos, como pessoa, a pureza da Mãe de Deus, não tivemos a preservação
do pecado original, mas todos temos em nós, na fina ponta de nossa alma, no
recesso profundo de nosso espírito, um espelho imaculado, capaz de receber a
virtude que nos capacita a depois receber o próprio Deus. O beato Grignon de
Monfort, lembrando Santo Tomás, que diz ver a inteligência, em seu último e
puro reduto, inacessível ao erro, lembra também que Maria, para nós, é pessoa e princípio. Poderíamos
acrescentar também figura. O que
dissemos acima vale para mostrar o estilo de Deus em nossa vocação
sobrenatural: assim como preservou na humanidade uma pessoa intacta com que
pudesse descer até nossa miséria, assim também se valerá da inocência marial do
reduto profundo de nosso ser.
Mas não é somente por essa analogia de princípios e figuras que Jesus
nos vem por Maria. Por outra via se torna pessoalmente nossa Mãe, a partir da
maternidade divina: Mater Dei, Mater Divinae
Gratiae, Mater Misericordiae e, portanto, Mater Nostra. E por essa via chegamos a entrever
as conexões do mistério de Maria que desabrocha na sua função de medianeira
universal das graças do Cristo. “Tal é a vontade de Deus que tudo tenhamos por
Maria”, dizia-nos S. Bernardo, e confirmava mais tarde Leão XIII.
Tornamos a bem frisar que a união de cada alma com Deus não comporta nenhum
intermediário criado; mas o processo de encaminhamento tem todo um jogo
delicado de instrumentalidade imprescindível e por Deus mesmo organizado para
nossa salvação. Assim como não há salvação fora da Igreja, no sentido que
concerne à qualificação da alma pela graça santificante, também não há salvação
que não tenha vindo por Maria, já históricamente, já no dinamismo da Comunhão
dos Santos.
Podemos dizer que Deus precisa dos santos, e especialmente de Maria,
porque nessas criaturas temos uma espécie de misericórdia que não podemos ter
no próprio Deus: uma misericórdia que, além de vir do amor, vem da própria
miséria. Por puríssima que seja, Maria é criatura, e como tal é miserável. E é
por isto – ouso dizer – que Deus precisa de Maria e dos santos para o exercício
de sua misericórdia e para o contato salvador com nossa miséria.
Todos nós sabemos que Deus e o pecado são incompatíveis; mas também
sabemos que as mais belas tradições de nossa história revelam um como que
privilégio dos pecadores, ou uma inconcebível espécie de atração de Deus por
nossa miséria. Quase diríamos que a marca do cristianismo é a de uma atrevida
predileção pelo pecador. Como pode ser isto? Os evangelhos contam o amor de
Jesus por Madalena, e nos apresentam a parábola do publicano. Jesus veio salvar
“o que estava perdido”. Sua Igreja é uma casa-de-saúde. Seus prediletos são os
pecadores, ou ao menos os que se reconhecem como tais. Na cruz, o primeiro
santo canonizado é o bom ladrão. E daí por diante abundam as histórias em que
os grandes pecadores interessam instantaneamente às almas de eleição. Santa
Catarina correu a visitar o jovem Tuldo em seu cárcere, e recebeu sua cabeça
decepada e seu sangue, gritando: “Io voglio!” Santa Teresinha do Menino Jesus
teve seu primeiro protegido num assassino que mereceu pena de morte: por
intercessão de suas fervorosas orações o pobre monstro humano, a dois passos do
cadafalso, voltou-se bruscamente e beijou com lágrimas a cruz que um padre lhe
oferecia.
Em todas essas histórias tem especial relevo a intercessão de Maria,
refúgio dos pecadores. Henri Lasserre, miraculado de Lourdes, conta-nos uma
história ocorrida com Bernadete. Estando já divulgada a notícia dos milagres da
gruta, antes de Bernadete entrar no convento, era todos os dias visitado pelos
curiosos o cachot onde morava a pobre
família Soubirous. Os visitantes pediam à menina que lhes contasse a história
das aparições e ela repetia tudo, com voz monótona, como se contasse uma
história alheia. Uma tarde apareceu à porta do cachot, junto a Bernadete que remendava meias, um senhor
bem vestido que chegara de Paris. Era um intelectual que levava vida dissipada,
mas sentira um interesse vivo pela história da menina que vira Nossa Senhora.
Põe-se a interrogar a menina, que pela milésima vez reproduz sua narração, e
diz-lhe que não acredita em sua história:
– Diz então o senhor que sou mentirosa?
– Não, isto não! Digo que te enganas... Olhe, eu gostaria que me
mostrasses como é que a Dama te saudava.
Bernadete prestou-se ao jogo e fez as saudações que a Dama Lhe fizera.
– Eu queria agora que me fizesses um sorriso da Dama.
– Ah!, isto eu não posso, porque é coisa do céu.
O visitante ficou silencioso algum tempo, e afinal murmurou mais para si
mesmo:
– É pena, eu querería ver. Sabes? Eu sou um pecador... Bernadete então
voltou-se vivamente e lhe disse:
– Ah! Já que o senhor é um pecador, vou fazer-lhe um sorriso Dama.
E o pobre pecador, vendo diante de si um clarão do céu, saiu procurar a
Igreja e o confessor. Dir-se-ia que “pecador” era um título de recomendação
para Aquela que tem a função maternal de abrigar os que, logo depois, apresenta
ao seu Filho como filho também. Mater Dei, Mater Divinae
Gratiae, Mater Misericordiae, Mater Nostra.
(Publicado na Revista Permanência com o pseudônimo
de Ir. Paulus)
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