OS DIREITOS DA RELIGIÃO - Fulton Sheen
Qual a relação entre a religião e os negócios públicos? A essa
pergunta foram dadas duas respostas diversas no século passado, ambas erradas:
1) a religião é estranha aos negócios públicos; 2) a religião é inimiga dos
negócios públicos.
1. A época do liberalismo julgou ser
possível servir a um tempo a Deus e a Mammon. A religião era tida como uma
espécie de luxo sentimental a que homem se podia apegar se assim o quisesse,
mas que devia ser mantida num compartimento separado da ordem econômica e
política. Seis dias da semana eram dados ao homem para ganhar a
vida; um dia
por semana devia ser concedido ao repouso. Se, em vez de repousar, um homem
desejasse <<ir à igreja>>, isso só era de sua conta; mas sob
condição alguma devia elevar consigo sua <<igreja>> para o trabalho
na segunda-feira pela manhã. A religião era considerada um assunto <<particular>>;
os negócios eram <<públicos>>. Dai não ser considerado de bom-tom
trazer o assunto de religião a um jantar, embora se pudessem discutir a vontade
as ideias políticas do vizinho ou mesmo sua consciência.
A política e a economia eram terrenos em que cada qual devia
decidir por si, tivesse ou não razão, mas qualquer tentativa da parte da Igreja
de sugerir princípios morais que governassem esses domínios era encarada como
injustificável intromissão. A religião era qualquer coisa que se traz consigo,
que se veste, como um terno de roupa, mas não uma parte integrante da vida, tal
como ver ou ouvir.
Criou-se assim uma atitude mental em que se supunha que o grande
ato redentor do Calvário não tinha significação alguma para a ordem social. A
alma convertia-se num insignificante subúrbio da cidade chamada Negócio. Se a
política e a economia não interferiam na religião, argumentava-se, por que
deveria a religião interferir na política e na economia? A liberdade religiosa
era assim adquirida na suposição de que devia abster-se da ordem secular.
Tornava-se a religião uma área delimitada da vida, isolada de qualquer contato
com o temporal e qualquer tentativa da parte da religião de introduzir
considerações éticas ou morais nos negócios era considerada abusiva, como se a
virtude da justiça fosse qualquer coisa que se pregasse do púlpito num domingo,
mas que não devesse ser praticada numa fabrica na segunda-feira. O mundo
admitia de bom grado que a religião pudesse revelar ao homem seu ultimo fim,
mas recusava-se a permitir que a religião lhe proporcionasse os meios adequados
de atingir tal fim. A religião veio a ficar perante o mundo dos negócios na
mesma relação em que Deus estava para com a astronomia de Newton. Como Newton
pôs o universo debaixo da lei, presumiram os newtonianos que Deus não era mais
necessário para explicar a ordem e harmonia das esferas, como se a descoberta de uma lei abolisse a
necessidade de um Legislador. Newton trouxe Deus até seu
universo para explicar duas irregularidades que nele se podiam ajustar em sua
lei, a saber: por que certas estrelas fixas não caem e por que certos astros,
girando em diferentes órbitas, não colidem. Tornava-se assim Deus um meio cômodo de explicar
irregularidades que a ciência não podia ainda esclarecer, um remédio cósmico qualificado andando de um
lado para outro a tapar os rombos do universo newtoniano. De
modo semelhante permitia-se que Deus cuidasse das irregularidades do universo
político e econômico, isto é, Ele e Seus crentes podiam fazer o serviço de
ambulância para os pobres, os indigentes e os aleijados, que a ordem política e
econômica não tinha ainda meios de atender. Mais tarde, com o progresso e a
ciência, mesmo essas irregularidades sociais desapareceriam e não se
necessitaria mais da religião. Desse modo era a religião relegada para um lugar
retirado do mundo; uma catacumba onde os homens podiam ir repousar, mas só
depois de terem lavado as mãos dos negócios. Chegava-se quase a pensar
que o homem que ia à igreja era diferente do homem que ia ao trabalho,
ou que o homem, como criatura política e econômica, tinha escapado de algum
modo miraculoso a queda do homem. O resultado dessa separação entre a religião
e os negócios públicos era impelir a religião para uma posição de crescente
alheamento dos negócios públicos. <Eu não incomodo a Igreja, por que razão
haveria ela de me incomodar? Tornou-se o falacioso
refrão para justificar o divórcio de duas coisas destinadas a serem tão
inseparáveis como a cabeça e o corpo.
2. Essa atitude mental de afastamento da
religião dos negócios públicos levou ao segundo período mais contemporâneo, que
a religião é considerada inimiga dos negócios públicos. A transição é algo um
tanto natural, pois dizer que a religião é impertinente à ordem social vale o
mesmo que conceder à irreligião predomínio na ordem social. Deixar a religião
fora dos negócios públicos não é como deixar o azul fora de uma colcha de
retalhos; é como arrancar os olhos fora
da cabeça. A
cegueira é a consequência da doutrina de que os olhos são desnecessários à
vida; a desavença é a consequência da doutrina de que o mutuo amor é
desnecessário às relações entre marido e mulher; a violência, a desordem, o
derramamento de sangue são a consequência da doutrina de que a justiça é
estranha à ordem econômica De modo semelhante, deixar a religião fora da ordem
social não é a negação de alguma coisa indiferente; é a privação de alguma
coisa indispensável. Deixar fora da ordem secular a justiça, o amor, a
caridade, os direitos humanos, os deveres, todos os quais pertencem à religião,
é como deixar a alma fora do corpo. Deixar a alma fora do corpo não é ficar com
o corpo sem alma, é a morte; Deixar a religião fora da
sociedade não é ficar com uma civilização secular, é o caos. Demonstra a historia que, se uma
sociedade ignora a religião, nunca se transforma exatamente em uma sociedade
irreligiosa; torna-se anti-religiosa. A vida é apenas a soma das forças que
resistem à morte, e uma vez terminada a resistência a essas forças contrárias
começa o desaparecimento. Do mesmo modo, no mesmo instante em que se nega a
religião o direito de interferir na ordem política e econômica apodera-se
destas a antirreligião. A ordem secular nunca vive no vácuo: nem mesmo neutra
pode ser; se os cidadãos de um
Estado abandonaram a religião e o seu dever de dar a Deus o que a Deus
pertence, imediatamente julgará César que até Deus recebe Sua autoridade de
César. E então é permitido a qualquer propagandista barato de
Moscou ou Berlim pregar o seu ateísmo ou o seu racismo, enquanto o homem de
Deus que prega a justiça e a caridade é tido como um inútil intruso. O ódio de
classe é o mau fruto do desprezo da caridade; a desonestidade em política é a
triste herança do desprezo da justiça; o comunismo na vida nacional é o
resultado do desprezo da redenção e do amor fraterno.
O mundo comete um grave erro ao pensar que pode deixar a
religião fora de sua norma de procedimento nacional e continuar a ser o mesmo
mundo de antes. Seria isso verdade se a religião não passasse de um acidente da
ordem social como as corridas de cavalos, e não a soma das virtudes que
condicionam a justiça e a paz. A casa vazia será, afinal,
a casa arruinada e a sociedade religiosa será, afinal, a sociedade
antirreligiosa. A religião que não
interferir na ordem secular logo descobrira que a ordem secular não se absterá
de interferir nela, como a mãe que se abstém de corrigir os seus filhos
desobedientes verá em breve os filhos a corrigi-la.
O mesmo mundo que há vinte anos aceitava ser a religião
desligada da economia e da política é o mundo que hoje hostiliza a religião.
Não é bem porque a violência, o ateísmo, o racismo sejam consequentes ao
declínio da religião, como o castigo se segue ao ato de desobediência; é antes
porque são eles inseparáveis, como um lírio podre e seu desagradável odor, ou a
semeadura e a colheita.
Se o camponês não plantar trigo, não ficará estéril seu campo no
outono; cobri-lo-ão as ervas daninhas. Deixai os homens crescer sem
cuidarem se sua alma pertence a Deus ou a César, e, antes que eles o saibam,
César os possuirá de corpo e alma. Chama-se isso totalitarismo
ou teoria estatal, que diz que o homem todo pertence ao Estado. Tal regime deve
necessariamente perseguir a religião, pois para possuir o homem ele tem de
desprezar a religião que afirma que o homem tem direitos independentes do
Estado. Em princípio, uma filosofia totalitária que nega valor à pessoa humana
fora da raça ou da classe, é necessariamente antirreligiosa. O totalitarismo
tem de agir assim se quiser sobreviver, pois nunca poderá possuir inteiramente
o homem enquanto não alijar a Igreja, que diz que o homem não pertence
inteiramente ao Estado. A Igreja opõe-se a tal absorção do homem pelo
totalitarismo e por esta razão é perseguida. Uma vez que o Estado inclui a
religião sob política, toda e qualquer atividade religiosa da parte da Igreja
passa a ser encarada como uma interferência política. O totalitarismo é errado
não por ter um ditador, mas porque o ditador está dispondo até da alma do
homem, ao fazer da pessoa um meio para um fim, do homem um aspecto econômico do
Estado, ou uma gota de sangue do organismo político, ou um operário do
Estado-fábrica. Quanto mais insistir a Igreja em seu direito à alma do homem,
tanto mais será perseguida; eis por que tem ela sido chamada
<<reacionária>> no México; – antirrevolucionária>> na Rússia;
<<política>> na Alemanha; <<contrarrevolucionária>> em
Barcelona. César crucificará o Cristo
sempre que César julgar que ele próprio é Deus.
O que se dá no mundo moderno é apenas uma repetição do que
aconteceu no começo da era Cristã. A princípio o Filho de Deus é ignorado como
um estranho ao mundo, para depois ser perseguido.
A princípio Ele foi considerado como um estranho ao mundo que
veio salvar. <<Ele veio para o que era seu, e os seus não o
receberam>>. Ele não foi abertamente rejeitado; foi apenas ignorado. Não
houve violência alguma contra Ele quando Sua Mãe batia de porta em porta pela
cidade de Belém. Simplesmente <<não havia lugar>>. Afinal de
contas, que relação teria a religião com a economia, e que relação teria Deus
com o mundo? Os homens estavam então demasiadamente ocupados com seus cofres,
com suas contas e com seus impostos para se incomodarem com o Criador,
exatamente como agora estão ocupados de mais com seus negócios e suas dimensões
políticas. Ele pode vir ao mundo, se quiser, mas que Ele próprio encontre lugar
para Si. Aqui não ha lugar. A fim de melhor dar a entender que o homem havia
rejeitado o seu Criador, Ele é expulso da cidade para os montes, para longe das
estalagens, para os estábulos lá fora, dentre os homens para o meio dos
animais. E quando se deita um olhar nessa Criança, que foi alijada da terra que
criara, e literalmente expulsa para fora da cidade de Seus pais, deitada num
leito de palha entre um boi e um burro, não se podia deixar de ver nesses
animais o símbolo da rejeição humana. <<Não havia lugar na
estalagem>>. A religião, dissemos acima, é primeiro ignorada, depois
perseguida. A indiferença à religião é
o começo do ódio a religião. Assim se deu com o Cristo. Em Seu
Nascimento os homens não Lhe deram atenção; simplesmente batiam as portas no
rosto de Sua Mãe. Dentro de dois anos estarão eles perseguindo-o como a um
criminoso. Primeiro mostram-se indiferentes ao lugar em que ele nasceu; agora,
intolerantes só porque nasceu. Antes apenas não O queriam em suas estalagens;
agora não O querem no mundo. Primeiro Ele é tão estranho às suas vidas que O
deixam com os seus inofensivos animais; agora é Ele considerado inimigo de suas
vidas e mais perigoso do que feras. Nem mesmo O querem agora deixar em seus
estábulos, tal como a Rússia não O quer deixar em seus tabernáculos. Parte de
Herodes a ordem de que toda criança do sexo masculino abaixo de dois anos de
idade deve ser morta. Nenhum rei poderá ser soberano se este novo Rei Infante
também pretender a Realeza. Herodes não poderá possuir inteiramente o homem se
esta Criança se intitular Rei do homem. Aquele que primeiro desprezou a Criança
agora teme a Crença. A caverna do pastor torna-se agora o antro do bandido,
enquanto Herodes despacha seus soldados, que se lançam como moções em
perseguição de um Infante que mal aprendeu a andar. A irreligião apoderou-se do
lugar deixado pela religião; a perseguição seguiu-se à indiferença; o
assassínio dos inocentes veio na esteira do nascimento do Inocente. A
indiferença ao Cristo não termina e nem pode terminar na ausência do Cristo;
acaba no Anticristo.
Foi assim no começo; é assim agora, e será assim até o fim;
ensinaram a Europa a cerrar o punho e a cuspir sempre que Seu nome é ouvido;
não O podem deixar só. Eles não são precisamente homens sem religião são homens
contra a religião; não mostram frieza para com Deus; entregam-se ao ateísmo com
todo o ardor.
Donde tiram eles energia para esse ódio? Donde tal entusiasmo
pelo ateísmo? Como conseguem tal apostolado pelo Anticristo, tantas espadas
para a pilhagem das coisas de Deus o assassínio das mulheres de Deus? Donde
tirou a Rússia esse ímpeto para implantar em Valência, pela primeira vez na
história do mundo ocidental, um regime declaradamente contra Deus? Tirou-o da realidade de Deus.
Os homens não se entusiasmam por fantasmas. Os homens não saem a campo para dar
combate às ficções da imaginação nem a mortos. Odeiam e combatem os vivos. Rejeitando-O, estão eles prestando-Lhe
testemunho. Ninguém odeia César, Napoleão ou Genghis Khan. E
por que não? Porque morre o ódio quando perece o objeto odiado. Os homens já não
cerram mais os punhos contra um Bismarck, nem montam mais guarda ao túmulo de
um Nélson. Mas cerram ainda os punhos contra o Cristo. Dizem que Ele está morto, mas põem sentinelas
em Seu <<túmulo>>. Dizem que Ele é inofensivo
enquanto criança, contudo Herodes manda os seus soldados matar a Criança
indefesa.
A verdade é
que eles odeiam porque crêem – não com a fé viva dos redimidos, mas com a fé
dos condenados.
Não haveria nunca vacinação se não existissem germes; não haveria nunca
proibido se não houvesse alguma crise a proibir, e não haveria nunca ateísmo se não houvesse
alguém a negar. Seu ódio é apenas a vã tentativa de desprezo. Odeiam simplesmente porque foram destinados a
amar. O que é de notar é que exatamente nas nações em que Ele
tem sido mais rejeitado, maior tenha sido a derrota do homem. Na mesma
proporção em que Ele é perseguido, persegue-se o homem; quando o mundo rejeita
Aquele que enalteceu o valor do homem, começa este a perder todo o valor. No
momento em que o mundo perde Aquele que amou o homem a ponto de morrer por ele,
o próprio homem deixa de ter qualquer valor; no instante em que ele esquece o
preço outrora pago por uma alma humana, a alma começa a ser um instrumento do
Estado. Esta derrota do homem na Rússia, na Alemanha, no México, e até certo
ponto na Itália, onde o homem não tem direito algum senão aquele que o Estado
lhe concede, torna-se tanto mais flagrante quando ocorre numa época em que o
homem tem tudo o que pode conduzir ao sucesso na vida. Nunca dantes teve o
homem tanto Poder, e nunca dantes foi tal Poder acumulado assim para a
destruição da vida humana; nunca dantes esteve tão defendida a educação e nunca
dantes se esteve mais longe do conhecimento da Verdade; nunca dantes houve
tanta riqueza e nunca dantes tanta pobreza; nunca dantes tivemos tão abundantes
alimentos e nunca dantes tantos homens famintos. O homem vê-se cercado de luxos
e comodidades com que as gerações precedentes nunca sonharam; todavia, nunca
seus esforços foram tão frustrados, nunca se sentiu tão miserável e intranquilo
diante do futuro. Tem tudo, e todavia nada tem, porque esqueceu uma coisa – seu
próprio mérito, seu próprio valor intrínseco, seu préprio alto destino. Somente Alguém que pagou o preço pode
dizer-lhe quanto ele vale. Tendo perdido a etiqueta do preço da
Redenção e, marcada <<Valor Infinito>>, fácil é que os ditadores
pensem não ter ele nenhum valor, julguem que ele é simplesmente uma gota de
sangue na corrente de sangue da raça, um soldado a mais no exército, um dente a
mais na roda us de engrenagem no Grande Trator Proletário.
É preciso
que o homem seja redescoberto, não o homem animal que tanto conhecemos, mas o
homem racional que conhecemos tão pouco. Essa redescoberta está condicionada ao
conhecimento d’Aquele a cuja imagem e semelhança foi o homem criado, pois só
quando reconhecemos os direitos de Deus é que o homem começa a ser livre.
O Problema
da Liberdade. Fulton J. Sheen PH. D. D. D. 7ª edição AGIR. 1962
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