Desde seus primórdios a Santa Igreja
favoreceu o culto dos santos para benefício dos fiéis. Evolução histórica e
questões teológicas relativas a essa temática de atualidade.
José Antonio Ureta
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Os precursores de Cristo com Santos e Mártires (detalhe) – Fran Angélico, séc. XV. Retábulo em Fiesole San Domenico (Itália) |
Em cada edição Catolicismo propõe,
para a edificação dos leitores, a meditação sobre a vida de um santo que pode
servir de modelo para os nossos dias. O exemplo dos santos é de molde a
afervorar os fiéis na piedade e excitá-los à prática de virtudes que os santos
exercitam de modo insigne. A revista pode também cair nas mãos de pessoas
afastadas da Religião e que venham a receber graças para iniciar uma vida
orientada pelas virtudes. Com efeito, muitas foram ao longo da História as
almas que se converteram devido à leitura da vida de santos.
Diferença entre santidade e a
“justificação pela fé” protestante
Em sentido estrito, só Deus é santo.
Porque a santidade é a propriedade de seu Ser que Ele revela nas Sagradas
Escrituras e que consiste no fato de que Deus, em sua onipotência, glória e
majestade, está infinitamente acima de tudo que não é Ele, requerendo do homem
uma atitude de adoração e o desejo de O imitar em suas perfeições.
Mas a santidade é também uma das
notas essenciais da Igreja Católica que permitem reconhecê-la como a verdadeira
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso significa que, sendo o Corpo Místico
de Cristo, a Igreja Católica tem os meios sobrenaturais para tirar o homem do
pecado e uni-lo a Deus. E também significa que nunca faltarão em seu seio almas
que testemunhem essa força sobrenatural. Ou seja, santos.
A santidade no homem é o efeito da
graça santificante e consiste na participação da santidade de Deus. Ela é
inseparável das virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade — e, quando
atinge sua plenitude, leva também as virtudes morais a um grau heroico,
principalmente as virtudes cardeais da Prudência, Justiça, Temperança e
Fortaleza.
Nisso reside uma das grandes
diferenças entre a Igreja Católica e as seitas protestantes. A heresia da
“justificação só pela fé” leva os adeptos do Protestantismo a supor que o
Batismo não lava inteiramente a mancha do pecado original, motivo pelo qual até
os atos mais heroicos do homem seriam censuráveis aos olhos de Deus. O homem
apenas se salva, segundo eles, porque sua podridão é coberta exteriormente pela
fé no caráter salvífico da morte de Jesus, mas no seu interior o fiel batizado
permaneceria um pecador.
Os ensinamentos de Nosso Senhor, pelo
contrário, afirmam que o “homem velho” é completamente renovado no seu interior
pela graça e, embora ainda sujeito ao atrativo do mal — chamado concupiscência
—, é capaz de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
E, por sua união com Deus, capaz de fazer obras boas e até heroicas, ganhando
méritos para si e para seus irmãos pela comunhão dos santos.
O estado de união total com Deus a
que o homem está chamado só é possível alcançá-lo após a morte, vendo a Deus
face a face e sem nenhuma possibilidade de afastar-se d’Ele. Mas esse estado de
beatitude já é prefigurado pela união íntima com Deus que possuem as almas que,
nesta vida, correspondem generosamente aos apelos da graça divina. É essa
santidade que a Igreja reconhece e apresenta como exemplo ao canonizar alguns
de seus filhos, para mostrar que a santificação não é apenas uma possibilidade
teórica, mas algo ao alcance de todos os que estão em estado de graça ou até
dos pecadores que lavam sua alma pelo sacramento da Confissão.
Os cultos de dulia e hiperdulia
Em coerência com o que ficou dito, a
Igreja não somente nos apresenta os santos como modelos, mas incita os fieis a
cultuá-los e pedir sua intercessão junto a Deus, porquanto já gozam da vida
eterna e, na corte celeste, são amigos de Deus. A eficácia da intercessão dos
santos é fundamentada na intensidade da amizade existente entre eles e Deus e
em virtude dos méritos que adquiriram na sua passagem pela Terra.
Dita veneração aos santos é chamada
“culto de dulia”. Este é distinto do “culto de latria” ou de adoração,
reservado somente a Deus. O “culto de dulia” é uma forma indireta de O louvar
pela obra de santificação que Ele operou nesses santos e pelos exemplos de
virtude que estes ostentaram quando residiam entre nós. No culto prestado às
criaturas, sobressai o que é tributado a Nossa Senhora, por ser Ela a Mãe de
Deus, ter uma relação ainda mais íntima com seu divino Filho e ser a Medianeira
Universal entre Ele e nós, merecendo por isso de nossa parte um culto de
“hiperdulia”.
Mas nossas relações com os santos não
se esgotam no fato de admirarmos seus exemplos e pedirmos a sua intercessão.
Pela comunhão dos santos, formamos com eles um só Corpo Místico e tendemos,
todos juntos, a um mesmo fim, que é o de conhecer, amar e servir a Deus e
participar plenamente da vida divina no Céu.
A evolução do culto aos santos na
História
Além dos Apóstolos, os primeiros
santos venerados foram os mártires, cujos corpos o povo recolhia nas catacumbas
e dispunha de maneira a transformar seus túmulos em altares sobre os quais era
celebrada a Santa Missa. Os bispos os colocavam então no catálogo oficial dos
mártires. A partir do século IV, começou-se a incluir nessa veneração também
aqueles cristãos, figuras ímpares, que não tendo vertido o sangue por Jesus
Cristo, haviam entretanto “confessado” seu Nome diante dos homens e passado por
múltiplas provas. A pedido dos fiéis, os bispos autorizavam que suas figuras
também fossem colocadas nos dísticos.
Embora todo fiel tenha o direito de
rezar para pessoas que conheceu e admirou, mortos em “odor de santidade”, a
Igreja percebeu que deveria reservar o culto institucional apenas para aquelas
pessoas a respeito das quais havia fundadas razões para acreditar estarem no
Céu e terem oferecido verdadeiro exemplo aos fiéis aqui na Terra. Por volta do
ano mil, os Papas se empenharam em fazer com que as virtudes e os milagres dos
servos de Deus — isto é, fiéis que praticaram virtudes insignes — e cujo culto
tinha ultrapassado os limites de uma diocese, fossem analisados em sínodos
regionais, e seu culto aprovado coletivamente.
Uma constituição do Papa Alexandre
III (1159-1181) retirou o direito dos bispos de autorizar o culto de um servo
de Deus em suas dioceses. Entretanto, tal decisão tornou-se efetiva somente nas
primeiras décadas do século XVII mediante um decreto do Papa Urbano VIII
(1623-1644), que reservou o processo das causas de beatificação e canonização à
Santa Sé.
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No retábulo, além dos Apóstolos aos pés da Virgem, os primeiros santos venerados foram os mártires. Altar de Maria está em el centro de la nave de la Iglesia de Dios de Creglimgen, Alemanha |
A partir dessa época introduziu-se
uma distinção mais precisa entre “beatos” e “santos”. Os primeiros são
representados com um halo de luz em torno da cabeça, para significar que seu
culto é apenas permitido num conjunto determinado de dioceses ou numa Ordem
religiosa. A beatificação é a etapa prévia à canonização. Os santos
canonizados, pelo contrário, são representados com uma auréola definida e seu
culto é de preceito para toda a Igreja em todos os países.
Dois tipos de causas de canonização
passaram, na mesma época, a serem instruídas pelos Papas. Primeiro, as
“canonizações formais”, assim chamadas por serem objeto de uma sentença formal,
após um longo processo de estudo da vida do candidato, com a intervenção do
assim denominado “advogado do diabo”, ou seja, de um perito encarregado de
levantar as objeções à canonização, procedendo-se a uma análise detida dos
milagres que certificariam ser da vontade de Deus que tal pessoa fosse
canonizada. E também as “canonizações equipolentes”, ou equivalentes, cuja
sentença limita-se a confirmar o caráter imemorial do culto prestado pelo povo
fiel a um servo de Deus e a preceituá-lo para toda a Igreja.
A sentença de canonização envolve
três realidades derivadas logicamente uma da outra: a) que o servo de Deus goza
da visão beatífica no Céu; b) que ele mereceu alcançar essa glória por sua
união com Deus e pelas virtudes heroicas que praticou, as quais são um exemplo
para os fiéis; c) que a Igreja deve prestar culto ao santo e pedir sua
intercessão, agradecendo a Deus pelo benefício de sua vida.
Processos simplificados e
aumento exponencial das canonizações: novidades pós-conciliares
Em vista de todo o acima exposto,
compreende-se que a Igreja tenha sido no passado muito parcimoniosa em
autorizar a inscrição no catálogo dos santos dos servos de Deus mortos em odor
de santidade e venerados pelos fiéis.
Considerava-se, com Santo Tomás de
Aquino,(1) que embora todos os batizados sejam chamados à santidade, havia
poucos santos de altar, devido à fraqueza introduzida em nossa natureza pelo
pecado original e pelo caráter soberano da misericórdia de Deus, que escolhe
quem quer para exceder o estado comum. Por sua vez, a exemplaridade dos santos,
para atrair a atenção, pressupunha algo extraordinário, realmente fora do
comum. E era por essa razão que, não obstante o Céu estar povoado por servos de
Deus, apenas alguns eram elevados à glória dos altares. Multiplicar os santos —
pensava-se — acabaria por diminuir no espírito do comum dos fiéis a sua
exemplaridade.
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Lutero diante ao Cardeal Cajetano, Gravura do século XVI |
Pelo contrário, os Papas posteriores
ao Concílio Vaticano II decidiram, por assim dizer, colocar a santidade ao
alcance de todo o mundo, em conformidade com a insistência do referido concílio
quanto ao chamado universal à santidade. Dessa maneira, só S.S. João Paulo II
elevou 482 santos à honra dos altares, ou seja, um número superior ao que
fizeram todos seus predecessores somados, desde São Pedro até Paulo VI. E
Francisco I, já na primeira cerimônia, canonizou os 800 mártires da cidade de
Otranto, trucidados pelos muçulmanos em 1480, e mais duas religiosas
latino-americanas, praticamente dobrando o número de santos.
Para facilitar esse aumento
exponencial do número de servos de Deus beatificados e canonizados, João Paulo
II realizou uma reforma radical das regras dos processos de canonização:
reduziu de 50 para cinco os anos de espera para a abertura dos processos;
reduziu de dois para um os milagres requeridos para a beatificação e, depois,
para a canonização; eliminou o “advogado do diabo” e atribuiu ao próprio
Promotor da causa o encargo de evocar as objeções; permitiu ao citado Promotor
fazer uma seleção das testemunhas, com a faculdade de descartar as pessoas que
desejassem relatar eventos negativos para a personalidade em questão. Muitos
especialistas e inumeráveis fiéis ficaram muito perplexos com essa
simplificação dos procedimentos, que não oferecem as mesmas garantias de rigor
científico e religioso de outrora.
Falibilidade ou infalibilidade
das canonizações: discussões teológicas
O referido abrandamento do rigor dos
processos propiciou um debate teológico muito antigo, mas que havia diminuído
consideravelmente de intensidade no decurso do século XX: a sentença solene de
canonização é um ato infalível do Papa? Sim ou não?
Há consenso geral de que as
beatificações podem acabar por concernir pessoas que não estão no Céu ou que
não merecem ser veneradas. O argumento é que os decretos de beatificação são
permissivos, e não impositivos, além de a autorização de culto ser restrita a
uma área definida, e não universal.
Mas no que se refere às canonizações,
elas são julgadas infalíveis pela maioria dos teólogos. Porém, o Magistério da
Igreja nunca se pronunciou de modo definitivo. Trata-se, portanto — é
importante frisar —, de matéria em que um teólogo, tendo razões de peso, pode
dissentir da opinião comum — favorável à tese da infalibilidade das canonizações
— e, por isso, nunca deixou de existir uma corrente minoritária que nega essa
tese ou levanta sérias dúvidas a respeito dela.
Tratadistas medievais de grande
autoridade, como o Papa Inocêncio IV e o Cardeal de Susa (conhecido como
Ostiensis), ou o canonista Joannes Andrae, de Bolonha, admitiam a possibilidade
de erro nas canonizações.
No século XVI, o maior e melhor
comentador de Santo Tomás de Aquino, o famoso Cardeal Cajetano, era da mesma
opinião, assim como seus confrades na Ordem dominicana, o Cardeal Tommasso
Badia (que fora um dos contraditores de Lutero na Dieta de Worms) e o
provincial da Toscana, Frei Niccolò Michelozzi.
São três as principais objeções
teológicas dessa corrente à infalibilidade das canonizações:
·
uma vez que a Revelação pública(2) encerrou-se com a morte do último Apóstolo e
que a Igreja não goza do carisma da inspiração, ela não pode agregar novas
verdades ao depósito da fé;
·
é dogma de fé que ninguém pode saber com certeza, sem uma revelação privada, se
está ou não em estado de graça, e menos ainda pode fazê-lo um terceiro que
observa de fora a vida de uma pessoa; e
·
a Igreja funda seu julgamento sobre testemunhas humanas falíveis, logo sua
conclusão pode ser equivocada.
A corrente majoritária que defende a
tese da infalibilidade das canonizações não discute os três argumentos acima,
mas afirma que o auxílio do Espírito Santo prometido por Nosso Senhor à Igreja
supre as deficiências de um exame meramente humano. E acrescenta que, se a
Igreja propusesse à devoção dos fiéis um santo falso, ela estaria oferecendo um
modelo errôneo de vida moral e, portanto, uma aplicação equivocada das verdades
da fé.
Aparecimento
do conceito de “objeto secundário” da infalibilidade durante a polêmica
jansenista
Essa argumentação viu-se
indiretamente reforçada em razão dos debates suscitados pela condenação, no
século XVII, na França, pelo Papa Inocêncio X (1644-1655), de cinco teses
heréticas do livro Augustinus,de Jansênio, falecido alguns anos
antes. Os seguidores deste último, convidados a retratar-se, disseram que não
tinham problema em rejeitar essas heresias, mas apenas que, contrariamente ao
que dizia o Papa, tais erros não se encontravam no livro incriminado. Diante
dessa recusa, três anos mais tarde, o Papa Alexandre VII (1655-1667), sucessor
do anterior, declarou solenemente que as cinco teses figuravam nos escritos de
Jansênio, e pediu ao Arcebispo de Paris que exigisse dos jansenistas uma
aceitação formal dessa decisão. Estes últimos perguntaram se deviam dar à mesma
um assentimento de fé divina, ou apenas de fé humana (se fosse um assentimento
de fé humana, pensavam eles poder subscrever a fórmula, mas continuar a
considerar que o livro não continha as heresias apontadas). Assistido pelo
célebre Fénélon, o arcebispo declarou que o assentimento devido não era nem de
fé divina, nem de fé humana, mas um assentimento intermediário que ele chamou
de “fé eclesiástica”, por causa da assistência do Espírito Santo à Igreja.
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Papa Bem-aventurado Pio IX durante o Concílio Vaticano I |
Como resultado, nos tratados de
teologia apareceu o conceito do “objeto secundário da infalibilidade”, ou seja,
que a Igreja é infalível não apenas naquilo que foi formalmente ou virtualmente
revelado por Deus (objeto primário da infalibilidade), mas também naquelas
verdades não reveladas necessárias para que o depósito da fé revelado possa ser
preservado na sua integridade, explicado convenientemente e defendido
eficazmente. Por exemplo, verdades filosóficas como a de que a razão é capaz de
conhecer a verdade (sem a qual a ideia de “verdade revelada” perde sentido), ou
o fato de o Papa apontar as heresias contidas numa obra cuja leitura seria
corrosiva para a fé dos fiéis (como no caso do Augustinus).
Em vista do aparecimento desse
conceito de “objeto secundário da infalibilidade”, os tratadistas passaram logo
a incluir, de modo quase sistemático, as sentenças de canonização no objeto
secundário da infalibilidade da Igreja. Tanto mais quanto o Papa Bento XIV
(1740-1758) — que fora anteriormente um renomado canonista e “advogado do
diabo” de várias causas — havia escrito, antes de subir ao trono pontifício, um
livro no qual afirmava, nem mais nem menos, o seguinte: “Quem ousasse
sustentar que o Papa errou nesta ou naquela canonização ou que este ou aquele
santo canonizado não deve ser cultuado, se não for herege, pelo menos deve ser
chamado de temerário, que escandaliza toda a Igreja, injuria os santos,
favorece os hereges que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos
e ao mesmo tempo abre caminho para os infiéis zombarem dos fiéis, sustenta uma
proposição errônea e merece as mais graves censuras”!
O objeto da infalibilidade:
deixado em suspenso no Concílio Vaticano I
Durante o Concílio Vaticano I, que
definiu a infalibilidade pontifícia como dogma da fé católica, houve desacordo
entre os padres conciliares quanto à extensão do objeto da infalibilidade.
Enquanto para alguns ele se limitava à Revelação stricto sensu (ou
seja, às verdades formalmente ou virtualmente reveladas e susceptíveis de serem
proclamadas dogmas de fé e impostas aos fiéis para serem cridas com fé divina),
para outros, influenciados pelo debate levantado em torno do Augustinus de
Jansênio, o objeto da infalibilidade estendia-se também às verdades não
reveladas, mas necessárias para a preservação, explicação e defesa do depósito
da fé.
No decurso do debate, chegou-se a
propor fosse declarado explicitamente que o Papa é infalível nas canonizações e
na aprovação das leis universais e das regras das Ordens religiosas; mas a
proposta foi rejeitada pela maioria.(3) De qualquer forma, por sugestão do Papa
Pio IX — que via com preocupação aproximar-se a guerra franco-prussiana de 1870
e o consequente risco de o Concílio vir a ser adiado sem a proclamação do dogma
da infalibilidade pontifícia —, o Secretariado do Concílio, chamado Deputação
da Fé, suspendeu o debate em torno do objeto da infalibilidade e redigiu uma
fórmula que não dirimia a questão. Tal fórmula diz que o Papa é infalível “nas
questões de fides et mores”, expressão consagrada na Teologia para
indicar o depositum fidei, mas acrescentando que suas
definições infalíveis devem ser aceitas pelos fiéis como irreformáveis. Se a
fórmula tivesse dito que deviam ser cridas (termo empregado na teologia
católica exclusivamente para o assentimento devido às verdades divinamente
reveladas), ela teria de fato limitado a extensão da infalibilidade
exclusivamente ao seu objeto primário, a Revelação.(4)
O secretário da Deputação da Fé,
Mons. Gasser, explicando esse detalhe, declarou na aula conciliar: “É
de fé que o Papa é infalível no objeto primário; a infalibilidade no objeto
secundário permanece no nível de certeza teológica”, ou seja, no nível
daquelas doutrinas nas quais o Magistério não se tem pronunciado de maneira
explícita nem definitiva, mas que, segundo parecer mais ou menos unânime dos
teólogos, não se pode negar sem pôr em risco uma verdade revelada.
Não sendo de fé que o chamado objeto
secundário seja coberto pelo carisma da infalibilidade da Igreja, menos ainda é
de fé a tese de que as canonizações sejam infalíveis. Nem sequer o Magistério
definiu ainda qual o grau de conexão que deve haver entre o depósito da fé e
uma verdade não revelada (como uma canonização), para que esta última faça
parte do objeto secundário da infalibilidade.
Existe unanimidade apenas em que o
nexo entre o depósito da fé e uma verdade não revelada deve ser íntimo e
necessário para que o depósito da fé possa ser apropriadamente preservado,
explicado e defendido. Mas não há nenhum consenso quanto ao fato de que esse
nexo orgânico realmente existe no caso das canonizações. Em outros termos, é
certo ser dogma de fé que os homens vão para o Céu se morrerem em estado de
graça; o problema está em saber se, para crer nesse dogma, será preciso crer
também que as pessoas canonizadas gozam da bem-aventurança eterna e intercedem
por nós junto a Deus. Ou se, pelo contrário, acontece como no culto das
relíquias, das quais sabemos que algumas podem ser falsas, mas que nem por isso
Deus — fim último de todas as nossas orações — deixa de aceitar nosso ato de
devoção.
O refluxo da opinião majoritária
desde o início do século XX
Um número crescente de teólogos, a
partir dos anos 1930, começou a contestar, respeitosamente, a quase unanimidade
dos manuais de teologia em favor da infalibilidade das canonizações.
O primeiro tratadista a fazê-lo foi
Mons. Bernard Bartmann em seu manual que foi traduzido em várias línguas e
muitíssimo usado nos seminários antes do Concílio Vaticano II. O conceituado
teólogo retomou as dificuldades que a suposta infalibilidade das canonizações
coloca para a teologia desde a Idade Média, ou seja, que a Igreja não pode
acrescentar “novas verdades” ao depósito da fé, que ninguém pode saber sem uma
revelação se um outro está em estado de graça, e, ademais, que as testemunhas
humanas são falíveis. Mons. Bartmann destaca também o fato de que os defensores
da infalibilidade das canonizações, na falta de um argumento teológico
decisivo, apoiam-se num “feixe de indícios” cujo número tenta suprir a fraqueza
de cada argumento isolado. A respeito dessa temática, o teólogo alemão conclui
com as seguintes palavras: “Os atos de canonização não podem ser
aceitos senão com uma fé geral e eclesiástica e não com fé divina. O fiel não
faz, sem dúvida, um ato de fé especial na canonização, mas crê nela mediante um
ato de fé geral. Ato pelo qual ele aceita no seu conjunto o culto da Igreja. —
Se no conjunto dos santos apresenta-se por vezes um “falso” santo [...] o culto
relativo que lhe é prestado reverte finalmente a Deus. Um rei é honrado através
de um falso embaixador. Deus também mediante um falso santo.”(5)
As objeções e reservas de Mons.
Gherardini
Já neste século, outro renomado
teólogo que levantou respeitosamente objeções e reservas à tese da infalibilidade
das canonizações foi Mons. Brunero Gherardini, por muitos anos decano da
Faculdade de Teologia da Universidade Lateranense, que até o Concílio Vaticano
II fora o bastião da chamada “escola romana de teologia”, de orientação
nitidamente conservadora.
Num artigo para a revista Divinitas, posteriormente
reproduzido em Chiesa Viva sob o título “Canonizações e
Infalibilidade”,(6)o ilustre sacerdote florentino observa
preliminarmente que os partidários da infalibilidade das canonizações fazem um
“raciocínio por absurdo”: seria intolerável que as canonizações não fossem
infalíveis porque isso teria repercussões deletérias na vida da Igreja. E
acrescenta que muitos autores contestam hoje esse argumento.
Indo ao fulcro do problema, Mons.
Gherardini põe como premissa que a canonização não define nenhuma verdade
revelada e, por isso, na linguagem teológica, é uma proclamação “non immediate
de fide”, não faz parte daquilo que Santo Tomás chama “hiis quae ad
fidem pertinent” (aquilo que pertence à fé). Tampouco tem um nexo tão
intimo com alguma verdade revelada de molde a transformar a canonização numa
verdade implícita e indiretamente revelada. Se a canonização em si não é de
fide, menos ainda o será a declaração de que tal pessoa é um
bem-aventurado do Céu. Ficaria no plano da “fé eclesiástica”; mas acontece que
a assistência do Espírito Santo prometida por Nosso Senhor à sua Igreja é restrita
a um exercício muito precisamente delimitado, o qual exclui que a canonização
seja equivalente a uma definição dogmática. O fato de ser dito e repetido que a
canonização deve ser assimilada a um “fato dogmático” (como a condenação do Augustinus)
não é um argumento válido: aquilo que é gratuitamente asseverado, pode ser
gratuitamente negado.
O arguto teólogo florentino
acrescenta um outro argumento muito embaraçoso para os partidários da
infalibilidade das canonizações, os quais negam ao mesmo tempo que ela exista
para as beatificações. O raciocínio por absurdo acima aludido não explica, diz
Mons. Gherardini, por que razão o carisma da infalibilidade seria válido para a
canonização e não para a beatificação. Porque a Igreja não é uma soma de
igrejas particulares, pois até a menor e mais recôndita comunidade católica num
subterrâneo da China é a Igreja Católica. Portanto, uma decisão relativa a uma
porção do rebanho (como a autorização do culto a um beato) atinge a Igreja
inteira e tem, de si, uma extensão universal. Qual é, então, pergunta Mons.
Gherardini, o sentido da distinção entre canonização e beatificação, baseada na
ideia de que a segunda é local e a primeira é universal?
Consultor da Congregação para a
Causa dos Santos: considerações teológicas e canônicas
Quase simultaneamente, Frei Daniel
Ols O.P., professor na Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino, o Angelicum (Roma),
e consultor da Congregação para a Causa dos Santos, escreveu um opúsculo
intitulado Fundamentos teológicos do culto aos santos,(7) mediante
o qual se inscreve abertamente na corrente que defende a não infalibilidade das
canonizações.
Ele afirma que a canonização contém
dois aspectos: de um lado, a afirmação dogmaticamente definível de que uma
pessoa praticante da virtude cristã vai para o Céu; de outro lado, a aplicação
dessa afirmação a uma pessoa particular. Ora, diz o Pe. Ols, se é facilmente
demonstrável estar a proposição geral contida na Revelação, “é evidente
que o fato de que Tizio ou Caio viveu santamente não está contido nela, nem
explícita nem implicitamente”. E, de modo diferente da condenação dos
erros num livro — necessária, para a preservação da fé dos fiéis, que eles
saibam com certeza que tais heresias encontram-se nele —, no caso das
canonizações não haveria um dano mortal para a fé se a Igreja vier a cometer um
erro. Venerar alguém que está no Inferno não tem a mesma gravidade que seguir
Lutero ou um outro herege. Assim sendo, a matéria da canonização não parece
apta a ser matéria de infalibilidade, conclui o Pe. Ols.
A esse argumento de índole teológica,
o Pe. Ols acrescenta outro, de natureza sociológica: se a razão da
infalibilidade das canonizações é de evitar o risco de se apresentar um modelo
falso de santidade, há beatos muito mais conhecidos e muito mais populares —
até mesmo em locais distantes daqueles em que seu culto é permitido — do que
grande número de santos… Por que, então, as beatificações não deveriam ser
contempladas também elas, pelo carisma da infalibilidade?
Refutando a argumentação dos
defensores da tese da infalibilidade de que o teor dos decretos de canonização
provaria que os Papas pretendem engajar neles a sua infalibilidade, o Pe. Ols
mostra que, entre tais decretos e as fórmulas de proclamação de um dogma (por
exemplo, da Imaculada Conceição ou da Assunção de Nossa Senhora), há uma
diferença substancial: na proclamação de um dogma, o Papa diz explicitamente
que a verdade declarada deve ser crida com fé divina pelos fiéis como sendo uma
verdade revelada cuja negação, mesmo que interior, acarreta a perda da fé e a
excomunhão automática da Santa Igreja — isto é, dispensa um documento
condenatório; enquanto que, no decreto de canonização, o Papa apenas afirma que
a pessoa em questão fica inscrita no catálogo dos santos e deve ser cultuada
pela Igreja universal, mas não diz nada no sentido de impor tal crença aos
fiéis no seu foro interior. Apenas ameaça com penas eclesiásticas, no foro
externo, a quem pronunciar-se publicamente contra tal canonização; mas essa é
uma fórmula frequente em muitos outros decretos e bulas sem conotação
doutrinária e que manifestamente não envolvem a infalibilidade.
Tanto Mons. Gherardini quanto o Pe.
Ols — e outros estudiosos antes deles — aduzem também o argumento de que a
Igreja retirou do calendário e suprimiu o culto de várias pessoas de cuja
existência, com o avanço das pesquisas históricas, hoje não se tem mais
certeza. O poder das chaves não autoriza o Papa — comentam — a colocar como
santo na realidade da História alguém que não viveu como santo e, menos ainda,
quem nem sequer viveu, porque jamais nasceu!
Finalmente, em certos ambientes
tradicionalistas que se creem obrigados a sustentar a tese infalibilista comum
em manuais de teologia pré-conciliares, circulam dois estudos do Pe.
Jean-Michel Gleize, da Fraternidade São Pio X, que revelam as deficiências dos
atuais processos de canonização e até a mudança que houve no próprio conceito
de santidade, assim como o caráter colegial que se tem dado aos processos, com
larga participação das dioceses. O que, no parecer do sacerdote lefebvrista,
acarretaria a não infalibilidade do decreto que resulta de tais processos, por
uma deficiência da vontade de definir do Papa — condição indispensável para uma
definição ex cathedra.
A posição sapiencial de Santo
Tomás de Aquino a respeito da questão
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Santo Tomás de Aquino |
Dado que o Magistério oficial não se
pronunciou de modo definitivo sobre a falibilidade ou infalibilidade das
canonizações e que há uma certa divergência entre os teólogos — dissentimento
que está, aliás, aumentando, visto o número de teólogos que estão engrossando
as fileiras da corrente até há pouco minoritária — a melhor atitude que os
fiéis podem tomar, até que a Igreja se pronuncie, é a de seguir a solução de
senso comum proposta por Santo Tomás de Aquino nos Quodlibet —
questões doutrinárias diversas, que o Doutor Angélico defendeu nas
universidades em que lecionou.
Tratando da questão “Sobre se
todos os santos canonizados estão na glória ou há algum deles no Inferno”(8),
o Doutor Angélico responde que é certo ser impossível que a Igreja erre em
matéria de fé, mas que é possível que Ela erre no julgamento de fatos
particulares, por causa de testemunhas falsas. A canonização, prossegue o
santo, encontra-se “a meio caminho” entre os dois casos
precedentes, dado que a honra tributada aos santos é de certa maneira uma
profissão de fé (na verdade que as pessoas que morrem na amizade de Deus gozam
da glória eterna). Por isso, deve crer-se piamente,pie credendum est, que
tampouco nesses casos erra o juízo da Igreja.
O Pe. Ols destaca a precisão dos
termos empregados por Santo Tomás. Ao falar de matéria de fé, ele diz “é
certo que é impossível”que a Igreja erre; nas canonizações, apenas “pie
credendum est”, expressão sempre usada por Santo Tomás quando “não
existe nem pode existir [matéria] para um ensinamento
infalível por carecer de base na Revelação”.
Trata-se então de adotar, em face das
canonizações, a mesma atitude assumida diante dos ensinamentos
doutrinários do Magistério ordinário não revestidos do carisma da
infalibilidade: dá-se-lhes um assentimento religioso, por provirem de pastores
assistidos pelo Espírito Santo, mas admite-se a possibilidade de um ou outro
erro ocasional, até que a doutrina ensinada não seja definida de modo
extraordinário ou que se torne patente que é uma doutrina que foi ensinada
sempre, em todo lugar e por todos. Em caso de haver razões graves para
se inferir que o ensinamento é contrário à Tradição, o fiel é autorizado a
suspender seu assentimento interior e, por vezes, seu silêncio exterior
obsequioso, para exprimir suas reservas.
No atual estado do desenvolvimento do
Magistério a respeito do objeto secundário da infalibilidade, nada impede de se
proceder da mesma maneira diante de canonizações controvertidas.
__________________
1. Suma
Teológica,I, q. 23, at 7, ad 3.
2. Deus pode
ser conhecido com certeza pela luz da razão natural. Porém, Ele quis dar-nos um
conhecimento sobrenatural de Si mesmo e de seus divinos desígnios naquilo que é
de si inacessível à razão humana — por exemplo, a Santíssima Trindade — por meio
da Revelação pública, a qual se realizou plenamente e completou-se na pessoa de
Nosso Senhor Jesus Cristo e está contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição
oral recebida dos Apóstolos.
3. Cfr.
Umberto Betti, Dottrina della costituzione dommatica Pastor Æternus,
in De doctrina Concilii Vaticani Primi, Libreria Editrice Vaticana, Città
del Vaticano 1969, p. 356.
4. No que
concerne à virtude sobrenatural da fé, a Teologia distingue entre as verdades
reveladas por Deus, cujo assentimento funda-se diretamente sobre a fé na
autoridade da Palavra de Deus— doutrinas de fide credenda — e as verdades
propostas pela Igreja como irreformáveis, ainda que não reveladas, cujo
assentimento funda-se na fé da assistência do Espírito Santo ao Magistério e na
doutrina católica da infalibilidade do Magistério — doutrinas de fide tenenda.
5. Précis de
Théologie dogmatique,tradução francesa, Étitions Salvator, Mulhouse (Alto
Reno), 1947,tomo I, pp. 57-59.
6. http://chiesaepostconcilio.blogspot.fr/2012/02/mons-brunero-gherardini-su.html
7. http://www.scribd.com/doc/47381315/OLS-Fond-Amen-Ti-Teologici-Del-Culto-Dei-Santi
8. http://www.corpusthomisticum.org/q09.html,
questio 8.
FONTE:
Revista Catolicismo, n° 759 – Março
de 2014 – Ano LXIV (Matéria extraída do endereço eletrônico:
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