“Quando a onda do sexo passar, e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem grande amor, passarão a matar".
Gustavo Corção
Qualquer pessoa medianamente
dotada e ainda não dopada pelo imperativo de um otimismo que é julgado hoje
virtude máxima, e máxima lucidez, qualquer pessoa, em suma, que ainda não
esteja possessa pelo Sistema,
já percebeu que vive dentro de uma decomposição civilizacional cuja
característica principal é a de um furioso hedonismo. Todos querem sentir, o
minuto que passa, a golfada de ar que respira, a curva que faz a sessenta ou
oitenta quilômetros numa rua movimentada. A fisionomia da juventude em tal
clima é curiosamente apática, em contradição com o frenesi das reações, e quase
se pode garantir que nunca houve em toda a história do mundo uma humanidade tão
destituída de gosto e de prazer. Este paradoxo é aliás a bem conhecida
contradição moral do prazer: o primeiro de seus malogros é a perda do prazer.
Seria, porém, um engano tirar daí uma conclusão tranqüilizadora firmada na
suposição de que tal malogro corrigirá o extraviado. Ao contrário, exaspera-o.
De onde vem esse extravio
moral. Em cada indivíduo a moléstia procede de pequenas e primárias opções
subversivas em que, por uma antiga dolência, essa alma volta sua preferência
para as coisas exteriores e inferiores; e, deixando-se dominar, torna-se
depressa escravo delas. A conquista das coisas inferiores nos afaga ao mesmo
tempo o orgulho e a concupiscência, ao contrário do alcance das coisas do alto
que nos aprimoram a humanidade e o gosto da sabedoria. O praticante da moral do
prazer se torna grosseiro, embotado, às vezes enganosamente aprimorado na
conquista de tais bens, e inevitavelmente, como já vimos, se torna exigente de
doses maiores, de prazeres mais violentos.
Dias atrás dizia-me alguém com
bem fundado estupor:
“Quando a onda do sexo passar,
e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem
grande amor, passarão a matar. A matar em grupos. Comunitariamente. Haverá
cursilhos para ensinar a matar sem ódio, como hoje se ensina o sexo sem amor”.
Como terá começado o fenômeno
coletivo, civilizacional, que hoje tornou o Juízo Final assunto de café-em-pé?
Creio que já abordei este assunto aqui e ali dúzias de vezes. É uma de minhas
obsessões em resposta ao obsessivo rumo do mundo. Pode-se dizer que a história
sofreu esta trágica deflexão no século em que os homens afirmaram um novo
humanismo afrontosamente autônomo, como se fossem deuses, e afrontosamente
afirmou uma nova religião de seu invento, onde Deus entrará somente como objeto
indireto e remoto.
Neste tempo que apenas trouxe a
eclosão de uma longa e misteriosa carga de ressentimentos acumulados, o orgulho
do homem foi espicaçado pelo dilatado domínio das coisas exteriores e
inferiores trazido pelas ciências. Muita gente até hoje não aprendeu que a
Astronomia é um conhecimento inferior à Sabedoria: seu objeto, pelo fato de
serem sóis e galáxias a dançarem numa distância de trinta milhões de anos-luz,
ou mais, nem por isso é ontologicamente superior, à entomologia, que estuda
formigas, cigarras e demais insetos prodigiosamente dotados de vida. Certamente espantarei
alguém, ou confirmarei em alguém a hipótese já alimentada de minha insensatez,
se disser que o cientificismo pós-renascentista foi um dos primeiros afluentes
desta subversão torrencial cuja pororoca já se ouvem os rugidos. A especulação
sobre as coisas inferiores, mas facilmente saborosa que a especulação sobre as
coisas do alto, que pedem virtudes e dons, trouxe consigo o domínio efetivo,
sobre as mesmas coisas materiais. A austera Ciência brindou-nos com a Técnica.
A Técnica presenteou-nos com o delírio das sensações fortes , matar 200.000
habitantes de Hiroxima num segundo, ou ir à Lua como programa de televisão.
Eu já escrevi em Fronteiras da Técnica que a técnica é uma das glórias do homem,
e que o domínio dos elementos é um direito de seus títulos. Racionalidade.
Imagem e Semelhança de Deus. Mas também já escrevei e torno a escrever que
certa catástrofe da história, como a querer repetir coletivamente o Pecado
Original, nos trouxe a subversão cujos efeitos hoje nos afligem.
Não a todos; evidentemente, se
a aflição consciente fosse geral esse temor assim difundido já seria o começo
de uma sabedoria convalescente. Infelizmente, estamos muito longe de tal
difusão. Entre os homens simples, ainda não deformados pela radioatividade da
explosão nuclear do eu humano na Renascença e na Reforma,
encontram-se muitos que já são sensíveis ao temor e tremor que andam nas almas
sensíveis. Mas a maior aberração de nosso tempo não está nas exposições de
pornografia , não está na busca desenfreada do prazer sob todas as formas, não
está no alastramento do ateísmo que ganhou título de mentalidade oficial em
mais da metade do mundo. Não, a maior aberração de nosso tempo está no
entusiasmo com que os homens de Igreja aplaudem o dito mundo moderno e ainda
censuram à Igreja a falta de tato de não ser atraente para os moços que correm
atrás do prazer. Não invento, nem li tal disparate em discurso de algum vigário
de Mato Grosso. Li essa queixa em Le
Monde, que, com isto, exaltava o queixoso: o Cardeal Alfrink. Eis as
palavras aladas do Cardeal holandês:
“Como explicar que a Igreja se
mostre tão pouco atraente para os homens de nossa época? Os moços que andam à
procura de Deus raramente se dirigem à Igreja? Por quê? Que fazer? Não
deveríamos nós indagar se não somos nós que obscurecemos a mensagem evangélica?”
Respondo ao Cardeal holandês e
a todos os outros que dizem coisa parecida, com o atrevimento de atribuir à
Igreja verdadeira, à Tradição, aos Santos, à Nossa Senhora, ao Sangue de Cristo
a fisionomia que os homens de nossa época acham pouco atraente.
E respondo dizendo: a Igreja
verdadeira parece ter-se apagado como a estrela dos Magos, e em lugar de sua
santa visibilidade vê-se um Sínodo, e dentro dele vêem-se e ouvem-se os
senhores cardeais e arcebispos que se inculcam como Igreja, e que publicam,
difundem, com grande aparato, tamanho e tão repulsivo amontoado de asneiras.
Acrescento ainda uma resposta especial à pergunta: “Que fazer?” O programa
mínimo que o pobre homem de nosso tempo ainda espera é a lealdade de dizer que
a Igreja não é isto que fala pela boca dos Alfrinks, dos Arns, e outros
duzentos. Como ninguém diz, e estou velho demais para fazer tais cerimônias,
digo-o eu: eles mesmos dizem aos berros que já não são católicos e se
envergonham de um dia terem pertencido a uma Igreja que não acompanha as orgia
dos moços e dos velhos; eles querem agradar aos homens, ainda que isto os leve
ao desprezo de Deus.
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