(excertos de Lições de Abismo)
Gustavo Corção
(...) há muitos modos de ver um indivíduo. Passou lá na rua um soldado. Eu o vejo, e pela farda digo instantâneamente comigo mesmo: vai ali um soldado. Esta é a visão superficial dos acidentes, e é nesta, helas! que nós baseamos nossas hierarquias, nossos cálculos, e a maior parte de nossas esperanças. E é sobretudo nessa casca, helas! helas!, que reside a nossa vaidade.
Caio então em mim e corrijo, já com uma nota de respeito: não, ali vai um homem. Esta agora é a visão essencial, com que se tecem os silogismos, as frases grandiloqüentes, e as afirmações catedráticas. Mas cuidado! cuidado, ó minh'alma. Não vês que essa visão não agüenta uma certa fixidez? Não vês que há nela não sei quê de irriquieto, de misterioso, que a faz oscilar? Se não, consideremos. Ponha ali na cadeira o bom dr. Aquiles, que não sabe mentir sem modificar o corte da boca. E pergunte-lhe se é lícito matar aquele homem para extrair dele o seu baço perfeito, na hipótese de estar localizada nessa órgão a minha enfermidade. Eu teria tanta coisa interessante que fazer e dizer, se me dessem o baço do soldado!
O dr. Aquiles dirá logo que não é lícito dispor da vida de um homem. Mas por quê? Pelo fato de ser animal racional, bípede implume ou que outra definição lhe atribuam? Não. Basta dizer "uma vida de homem", para que sintamos na alma uma particular ressonância. A menos que ande no ar um vício profundo, todos sabem que uma vida de homem é algo de sagrado. Mas por quê? Procedamos com cautela, prestemos atenção, toda a atenção às ressonâncias que as palavras despertam em nossa alma. Eu disse há pouco: ali vai um homem. Mas essa realidade tem dois lados. O indivíduo que agora dobra a esquina, não é o homem-em-geral. É um homem. Um. Resta saber que sentido tem este um. Se numérico, o objeto de minha percepção entra nas estatísticas, e a definição emagrece. Mas se dou a um o sentido de único, de concreto, de completo, de particular, de substancial, de excepcional, de separado, de total, então a minha visão essencial se alarga e eu me surpreendo a indagar: quem é aquele homem?
E eu sei, e todo o mundo sabe, antes de ficar possuído de delírio coletivista, que essa é a pergunta fundamental que uma alma inteira, com leucemia ou tuberculose no corpo, pode formular, quando vê na calçada fronteira um ser ereto, que se move contra todas as recomendações de estabilidade mecânica, e que às vezes, como aquele que vejo - agora um civil - ainda se permite a fantasia de coçar a perna com o outro pé, enquanto os braços no ar resolvem uma tríplice integral que restabelece o equilíbrio comprometido, enquanto lá no alto dessa absurda torre de ossos e carne o gageiro vigilante dirige duas objetivas castanhas para a silhueta de uma moça que passa...
Ai que me perdi de novo! Escorreguei nas impressões. Voltemos atrás e recapitulemos as sucessivas gradações de nossa exploração. Vi primeiro de raspão: uma farda. Vi depois de um modo mais envolvente: um homem. Agora estou verrumando, tentando uma visão mais penetrante, em busca do quem, do singular, do concreto, do existencial, da pessoa. Quem será aquele ente, único e insubstituível, que me andava a despistar com as aparências marciais, e a me propor a evasão para o domínio das idéias gerais onde a morte é aceitável?
E eu, quem sou eu? Estamos no centro imóvel do ciclone. Detêm-se aqui as aparências, apagam-se os adjetivos, e eu me procuro na escuridão como quem às apalpadelas procura guiar-se à noite entre os objetos familiares. É em mim mesmo que devo encontrar o termo daquela visão pessoal. Só poderei entender o outro se a mim mesmo me entender. Pode ser que o processo inverso me facilite a pesquisa, isto é, que na face do outro, como num espelho, eu descubra o segredo da minha. Não foi isso que eu procurei nos olhos de Eunice? Pode ser. Mas o verdadeiro e definitivo contato só é possível dentro de mim mesmo. Se eu descobrir quem sou, verdadeiramente, nuclearmente, estarei então armado para atribuir ao outro essa eu-dade que o equipara, que o levanta diante de mim, para o amor e para o ódio.
Em outras palavras, a visão profunda do outro só pode ser atingida quando eu descobrir em mim mesmo a base, o princípio radical de nossa semelhança profunda. Tenho pois de cavar-me por dentro, tenho de descobrir o meu nome escondido, pobre! pobre Parsifal canceroso! para saber quem sou, e para saber, por transbordamento de amor, quem é aquele homem que passa.
E a morte? Onde ficou a morte em todo esse filosofar? Que relação existe entre o mistério da pessoa e os trinta ou quarenta dias que me são adjudicados?
A relação existe. Deixamos para trás a certeza da morte, que é luminosa na visão essencial, e que evolui em proporção inversa da evidência, transformando-se em surpresa, em estranheza, em repugnância, em estupor, à medida que emerge a realidade da pessoa. Concluímos pois que há na pessoa, no mistério da pessoa, uma força que empurra a morte para trás, que recusa a morte, que denuncia a morte como um espantalho de contradição.
Estarei eu descobrindo que a alma é imortal?
In Corção, Gustavo. Lições de Abismo. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1958, p. 63-67.
Fonte: http://home.comcast.net/~pensadoresbrasileiros/GustavoCorcao/a_farda_e_o_homem.htm
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