“As estrelas, e os sonhos, e ainda eu mesmo são mais baratos do que o giz: pois eu os comprei por nada”.
G. K. Chesterton
A Sermon on Cheapness, The Speaker, 19/03/1902
Tradução de Raul Martins
JÁ é passada a hora de se desistir da absurda pretensão dos vícios ao romanesco. Desde o tempo de Byron tem-se pegado às mentes dos homens a estúpida idéia de que deve haver alguma conexão necessária entre a ilicitude e a poesia, entre imagens ordeiras e atos desordeiros. Um milhar de exemplos poderiam ser dados para mostrar o vazio da idéia. Por exemplo, tem-se tomado a blasfêmia por coisa ousada e esplêndida, como se a essência mesma da blasfêmia fosse algo outro que o vulgar. É a definição mesma da profanidade ser prosaica no pensar e falar de certas coisas que só podem ser pensadas e faladas, por outros homens, poeticamente. Daí ela ser um malogro da imaginação, e um volume repleto das mais aberrantes imagens e ímpias chacotas permanece, em seu caráter essencial, um pedaço de literalismo pobre, um algo maçudo. Poder-se-ia seguir a mesma verdade geral por através de todos os Dez Mandamentos. O assassinato, por exemplo, é um tanto sobrestimado, esteticamente. Pessoas em cujo juízo confio, e cujas experiências, presumivelmente, têm sido vastas, asseguram-me de que os sentimentos dum assassino têm um caráter de todo fútil. O que poderia ser mais estúpido do que despedaçar a pontapés, puerilmente, uma máquina sobre a qual você não sabe nada, e cuja variedade e engenho deveriam manter qualquer pessoa imaginativa a fitá-la, cheia de prazer, dia e noite? Suponha-se que tenhamos familiaridade com uma máquina assim humana; digamos, um tio ricaço. Não podemos esgotar as possibilidades de uma máquina humana; seja lá quão longo e parco em recompensas possa ter sido nosso conhecer da maquinaria avuncular, jamais teremos como saber se, no momento mesmo em que lhe levantarmos a faca homicida, a coisa não esteja prestes a engrenar algum primoroso epigrama que tornaria a existência digna de ser vivida, ou mesmo, pelo espasmo dum mecanismo interno, a produzir um cheque. Matá-lo é claramente prosaico. Vivo, ele é um milagre; morto, é apenas sucata, uma sucata de desagradáveis tripas e roupas vergonhosamente inapropriadas e antiquadas. De quando em quando erguem-se objeções contra a absoluta doutrina médica e legal de que devemos, sempre, a todo custo e sob quaisquer circunstâncias, esforçarmo-nos por manter acesa a chama da vida. A coisa pode ou não ser moral e humana, mas não há dúvidas sobre ela ser impressionante enquanto puro ideal poético. É o desejo, perfeitamente natural em um homem de ciência imaginativo, de preservar a única coisa que pode realmente ser de algum interesse a alguém.
Tomei estes dois fatos, como os primeiros que me estavam à mão, a fim de exemplificar o fato geral do caráter baixo e literal dos vícios, por um lado, do caráter extraordinário e excitativo das virtudes pelo outro. Poder-se-ia dar muitos outros exemplos dos arrebatamentos e rosas da virtude, dos lírios e langores do vício.² Mas um deles, tanto mais estranho do que qualquer outro por sua veracidade e distância, é o que primeiro ocupa-me a mente. De todas as virtudes convencionais, não há nenhuma que seja tão completamente desprezada pelos filósofos estetas e boêmios quanto a economia. Representam-na como o mais vil dos padrões humanos, um mérito para covardes e burgueses untuosos, coisa que é baixa quando virtude e enfadonha quando vício. Mas, em verdade, não há qualidade que seja tão genuinamente romântica quanto a economia.
A economia é essencialmente imaginativa por ser uma compreensão do valor de todas as coisas. A real objeção estética ao assassinato é que ele é antieconômico. É uma falha em eficiência (quero escrever essa palavra e apenas ficar a fitá-la) desperdiçar todo um homem para andar à cata de uma emoção momentânea que é frequentemente uma decepção. E a real objeção ao desperdício é que todo desperdício é um tipo de assassínio, coisa tão-somente negativa e destrutiva, o obliterar de algo que não podemos estimar nem compreender. Chacinamos um tio por falharmos em perceber a curiosa e estúpida poesia de um tio; jogamos uma moeda fora por falharmos em perceber as deslumbrantes possibilidades de uma moeda. Eu mesmo chacinei muitas moedas, um sem-número de insuspeitos centavos, em minha vida. Pois ninguém vá pensar que esta poesia da economia seja algo fácil para qualquer um de nós manter. Tendemos a esquecer a poesia das moedas assim como tendemos a esquecer a poesia dos céus, e florestas e grandes edifícios, porque os vemos com tanta frequência. Na prática é trabalho árduo ser o Homem Econômico. Todos nós ouvimos sobre o clérigo que palestrava em favor de se ser abstêmio, dizendo que tentara ensinar a bêbedos como beber moderadamente por vinte anos, sem ter jamais logrado êxito. Os repórteres, com amabilidade sem tino, descreveram-no como tendo dito que por vinte anos a fio tentara, ele mesmo, beber moderadamente, sem ter jamais logrado êxito. Assim é com esta grande questão da economia.
Já faz muito tempo que o escritor do presente artigo tem tentado ser econômico, sem tê-lo conseguido por uma vez que fosse. Mas de todo em todo o atribuo a uma falta de poesia em mim mesmo. Não que eu jamais delire com esconder-me atrás de algo tão transparente e hipócrita quanto a noção de que não há nada de artístico ou romântico em se ser extravagante. O homem que não olha seu troco não é um verdadeiro poeta. Dar uma moeda deliberadamente é, com efeito, um dos triunfos maiores da imaginação: quer dizer que quem dá é capaz de perceber o significado da existência de alguma família maltrapilha e empilhada em East London. Mas jogar fora uma moeda é pura falta de imaginação; significa que quem dá não é capaz de perceber nem mesmo o sentido de uma moeda. Quer dizer que ele se esquece de a primeira e mais vibrante dentre todas as lições do universo, as lições de cada semente e germe, a lição do poder terrível e infindo que se pode encontrar nas coisas pequenas. Os franceses, dos povos o mais poético, é ademais o que melhor economiza. O trabalhador inglês, com seu genuíno e sólido senso comum, joga fora cada resto e osso que não lhe pareça útil à primeira vista; o aldeão franco os converte em pratos requintados e civilizados. Economia é tão-somente outro nome para universalismo; o verdadeiro poeta tem cada um dos objetos terrestres em conta de algo que possui um tanto de valor e utilidade secreta — com a possível exceção de um caminhão de lixo. Mantinha-se que o antigo romance da vida consistia em despesas — nas jóias e perfumes das Mil e Uma Noites, nos coxins e cigarros de Ouida.¹ O romance novo e mais realista será o romance da barateza. Ocupar-se-á com a tarefa genuinamente imaginativa de perceber qual é o verdadeiro valor (que pode correr até a casa dos milhões) de um cafezinho para o pedestre fatigado à meia-noite, ou do tabaco para o homem pobre em seu feriado de meia-hora.
Eu e meu amigo do peito, o Pessimista, estávamos ambos do lado de fora de uma pequena loja de brinquedos, os narizes colados ao vidro, quando rompeu o longo silêncio uma observação minha sobre a beleza de um sólido toco de giz azul, que estava a ser oferecido em promoção (nalgum vendaval de generosidade) por meio penny. “Paraste para considerar”, perguntei-lhe eu, “tudo o que este toco de giz azul significa? Por meio penny possuí-lo-ei. Ao anoitecer retorno ao lar, sob as estrelas, cercado por negras paredes e através de labirínticas ruas. Terei a liberdade de escrever nestas paredes sentimentos os mais formosos ou implacáveis, a denunciar os poderes da terra na cor mesma do céu. Em casa, hei de matar o tempo num milhar de esportes inocentes, traçando padrões bárbaros na nova toalha de mesa, a desenhar paisagens sonhosas e ideais na folha de caderno, decorando minha própria figura à guisa de nossos antecessores Britânicos, a rabiscar estranhas e quiméricas aventuras para estranhos e quiméricos personagens. E todo este oceano azul de sonhos é libertado por meio penny“.
O Pessimista lançou-me réplica, triste e sisudo, “Baboseira. É apenas o giz azul que se pode comprar por meio penny. Você não pode comprar as estrelas por meio penny; você não pode comprar as ruas por meio penny; você não pode comprar seus sonhos, ou seu amor pelo desenho, ou ainda seus gostos e imaginação por meio penny“.
“Verdade”, disse-lhe. “As estrelas, e os sonhos, e ainda eu mesmo são mais baratos do que o giz: pois eu os comprei por nada”.
Ele irrompeu em lágrimas e de imediato tornou-se convencido da base da verdadeira religião. Pois a nossa palavra mesma para Deus quer dizer Economia: ou não será a improvidência o oposto de Providência?
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¹ – Ouida, pseudômino de Maria Louise Ramé, romancista inglesa.
² – No original: “Many other examples might be taken of the raptures and roses of virtue, the lilies and languors of vice”. Chesterton faz alusão ao poema Dolores, de Swinburne, trocando os adjetivos de lugar, quase certo que de propósito. O trecho de Swinburne é: Could you hurt me, sweet lips, though I hurt you?/Men touch them, and change in a trice/The lilies and languors of virtue/For the raptures and roses of vice…
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