"Outrora os pais cristãos antes que abjurar destinavam os seus filhos à miséria e viam-nos, com olhar firme, ser massacrados sob seus olhos: hoje a gente se expõe de melhor grado a vê-los perder a fé do que a ver-lhes faltar um diploma."
Carta de Louis Veuillot
Sobre a indolência dos cristãos
frente aos inimigos de Jesus Cristo e da Igreja
Ao Sr. [Victor-Charles-Maurice] de Foblant,
8 de agosto de 1843
Meu irmão Maurice, tendes coração e concebo o quanto vos faz sofrer a diarreia que acomete nossos católicos em Nancy assim como por toda parte. Tivemos esse espetáculo em Paris e o teremos ainda; estamos destinados talvez a ver a Igreja de França morrer desse mal tanto quanto Igreja pode morrer, e isso alguma hora vai longe.
Eu preferiria muito mais um daqueles tempos quando se crê que ela vá desaparecer em rios de sangue. Teria mais esperança de vê-la reerguer-se. Bem-aventurados os que ouviram Missa nas catacumbas, bem-aventurados os que serviram na Missa para algum padre fugitivo da Vendeia, em meio aos feridos, os órfãos e as viúvas! Esses puderam predizer triunfos. Em nossas catedrais, onde somos deixados em paz, só temos a contar com rebaixamentos. Não é a carne que vos fala e se revolta; é o espírito. Rebaixamentos, eu os quero para mim, com a graça de Deus; mas não os desejo para Jesus, e é a Ele que rebaixam.
Considerai bem isto: não creio que o mundo tenha visto nada de semelhante. Ultraja-se à Igreja, e não somos nem fugitivos, nem reduzidos a nos esconder, nem sem meio de agir. Muito pelo contrário, desfrutamos de nossos bens, de nossa liberdade, exercemos os poderes de cidadãos, somos festivos e de arma a tiracolo, enquanto ela é ultrajada. Nós assistimos passivamente e vamos comungar. O Padre Rohrbacher não citará outros exemplos disso, e, se quisermos refletir, isso é novo e assustador. Temo menos, para um templo, os furiosos que querem demoli-lo do que os fiéis que, em presença desse perigo, só pensam no seu feijão com arroz. Esses destroem verdadeiramente a Igreja, que não fazem para ela uma muralha com seus corpos, que não se fazem massacrar nos degraus dela pela menor de suas prerrogativas.
Outrora os pais cristãos antes que abjurar destinavam os seus filhos à miséria e viam-nos, com olhar firme, ser massacrados sob seus olhos: hoje a gente se expõe de melhor grado a vê-los perder a fé do que a ver-lhes faltar um diploma. Compra-se friamente um título de advogado ou de médico ao preço dos cem pecados mortais que poderão cometer antes de o obter. Chamam isso de “pensar no futuro deles”: essa palavra diz tudo. Quando se era cristão, o futuro estava no Céu; não está mais, está aqui nos comércios, nos negócios, nas transações, na lama: e, para alcançá-lo, pisa-se antes de tudo no crucifixo. Não há mais cristãos, porque não há mais fé. Se houvesse fé, se saberia que com tantas covardias expõe-se a própria alma, e se veria aquilo que não vemos: homens.
Eu vos declaro, cá entre nós, que as sociedades de São Vicente de Paulo e toda essa caridade dos vales-sopa e dos vales-batata, reduzida aos termos em que as vejo, me dão pena! Nada compreendo desse sistema de querer salvar almas mediante moedas de dez centavos e recusar uma palavra todas as vezes que é preciso dizê-la. Encontrou-se a arte de auxiliar os pobres sem auxiliar a Jesus Cristo. Se o Journal des Débats não tivesse inventado para nós o nome de neocatólico, deveríamos inventá-lo, nós, para essa raça poltrã, pois ela é realmente nova. Por toda parte onde eu a sonde, sob a mitra, sob a sotaina e debaixo do hábito burguês, diviso ali lacunas e excrescências que fazem dela uma espécie particular. São cristãos com muito ventre demais e muito coração de menos.
O que se deve fazer, prezado Maurice? Rogar ao Bom Deus antes de tudo; pedir-Lhe como única graça a de amá-Lo loucamente, sem nenhuma espécie de prudência nem de razão no que nos concerne; aceitar as cruzes, as afrontas, as solicitar, nos preparar para nada temer e nunca jurar que não nos aplicaremos um dia um pouco de disciplina. No que se refere aos nossos queridos irmãos, contemplar desancá-los o quanto antes, pois só então é que se defenderão e lembrarão de que são aqui a Igreja militante, e não a Igreja estagnante.
Quando vejo os Bispos suportarem a Universidade, os leigos só pensarem na sua comida quente, as ordens religiosas morrerem de inanição no meio dessa juventude que não tem nada que fazer e que se põe a sustentar os pobres porque custa menos do que raparigas e por ser mais honesto, eu digo que não há mais senão um perigo: o de deixar as coisas nesse pé. Ide atrás das dificuldades e fermentai-as.
Nada tenho de vocação monástica, principalmente beneditina; mas obterei, se aprouver a Deus, a vocação do devotamento. Não há senão servir a Deus. Todo o resto é miserável demais e perigoso demais num tempo como este, para uma alma que pôde uma vez entrever a Cruz em que Jesus morreu. Quando eu estiver de volta a Paris, tratareis de vir me visitar, e nós prepararemos uma campanha de inverno. Adeus, caro filho; eu vos amo de coração. Apresentai as minhas afetuosas saudações à vossa excelente e veneranda mãe. Dizei a ela que Deus a ama e que é-se ditoso de ser do número de Seus mártires numa época em que os cristãos não temem senão a Cruz; ou seja, aquilo que é o sinal mesmo do cristão. (…)
Excerto do boletim Notre-Dame de la Sainte-Espérance n.º 279 (abril de 2013)
O ano de 2013 marca o segundo centenário do nascimento de Louis Veuillot (11 de outubro de 1813). É para nós ocasião de desfrutar dessa pluma incomparável, posta ao serviço de um admirável espírito católico e de um grande coração. A correspondência que acabamos de ler foi escrita durante uma estadia na abadia de Solesmes. Sem dúvida alguma, Louis Veuillot faz-se aí eco dos colóquios que teve com Dom Guéranger e donde saíram as verdades que os dois queriam berrar às famílias católicas. Essa carta é de grande energia, de grande agudeza de pensamento e de uma franqueza que não cuida de precauções. Ela merece algumas explicações.
Os católicos não têm vocação (como se diz em vulgar) para ficar de fora da sociedade. Eles devem, mais do que todo mundo, desenvolver os talentos que Deus distribuiu a eles, devem ocupar postos de influência, para fazer ali reinar o Evangelho de Jesus Cristo, devem poder gozar de um modesto desafogo, para assegurar uma educação cristã a seus filhos.
É necessário que todos tenham aqui na terra um dever de estado preciso, é necessário que cada um ocupe um lugar onde desabroche intelectualmente e moralmente, é necessário que cada qual seja apto a trabalhar pelo bem comum da sociedade em que vivemos. É necessário que haja médicos, pessoal de enfermagem e parteiras, advogados e engenheiros, comerciantes e artesãos, dirigentes de empresas e cientistas, e tutti quanti, que sejam católicos, sem o que, a sociedade abandonará totalmente o que ela recebeu da Igreja, e o Cristianismo não será mais do que uma lembrança.
Tudo isso é verdadeiro. Mas não a qualquer preço. Não ao preço das almas, da virtude, da retidão, do fervor, da perseverança. “De que serve ao homem conquistar o universo se ele vier a perder a alma?” O problema se põe nestes termos: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e todo o restante vos será dado por acréscimo.” Isso quer dizer não apenas que é preciso ter confiança filial e total em Deus, mas significa também que as coisas daqui da terra que não sejam ambicionadas como um acréscimo, como um dom de Deus e um meio de contribuir e de confluir para o Seu Reino, tornam-se veneno para a vida cristã.
É o que exprime vigorosamente Louis Veuillot, é o objeto de uma desgraçada experiência mil vezes repetida. É assim que se veem legiões de jovens partirem, um após outro, ao abatedouro; vão fazer seus estudos para conquistar situações lucrativas: não voltam jamais, porque perdem a fé, perdem a virtude cristã, perdem o Céu.
Ou ainda, se os vê partir cheios de boas intenções, mas sem formação da inteligência, sem armadura moral, sem temor do pecado: também estes, não os revemos jamais, enviscados no pecado ou na mundanidade como estão, inúteis para o Reino de Deus.
A responsabilidade dos pais está gravemente empenhada: no Juízo Final, lhes serão pedidas contas dos filhos que Deus lhes confiou. E aí, as ignóbeis desculpas mundanas não servirão mais para nada: ele ganha bastante dinheiro, ele tem uma bela situação, ele obteve um bom casamento, ele se saiu com o mal menor… E os filhos condenados arrastarão seus pais na sua perda.
É a triste história de apostasias individuais, da apostasia da sociedade nos países que outrora formaram a cristandade. Buscou-se a satisfação das concupiscências e imaginou-se que o Céu seria dado por acréscimo. Erro trágico.
É necessário, portanto, que os pais cristãos meçam a sua responsabilidade; é necessário que estudem os meios para estabelecer os filhos em uma situação que conduza ao Céu, que concorra para o reino de Jesus, quer por si mesma ou pela família que ela permite formar.
Quem, pois, refletiu nisso com a gravidade que isso supõe? Para atravessar uma periferia perigosa, a gente não entra sozinho, vai em grupo. Mas quem pensa nisso para encetar estudos superiores na universidade, que assassina as almas? “Não temei os que matam o corpo. Temei antes aquele que pode enviar o corpo e a alma à Geena.” Não é o Evangelho que foi esquecido?
Eis o que escrevia recentemente, a uma jovem pessoa que esse problema inquieta:
“Minhas incursões pelas dificuldades que as enfermeiras católicas encontram, tanto nos estudos como no exercício da profissão, são motivadas pelo fato de ser um exemplo fácil de expor: a gravidade dos problemas que elas podem ser levadas a encontrar, a cooperação que delas se solicita a jato contínuo, a estreiteza da margem de manobra que lhes é deixada, a promiscuidade incessante em que devem trabalhar: tudo isso realça bem como é difícil exercer uma profissão no mundo, quão necessário é armar-se e cercar-se de defesas espirituais e humanas, o quanto a presunção é suicida. Mas, de fato, problemas análogos se apresentam em mil ramos profissionais, de maneira menos intensa frequentemente, mas muito mais dissimulada também.
“A inconsciência de grande número de católicos faz com que não reflitam no problema apresentado, com que não contemplem soluções menos temerárias (reunir-se a três para lançar-se nos estudos, expatriar-se, entrar pela porta dos fundos, desistir, atuar na clandestinidade, ou outra) e com que vão, cada um a seu turno, para o matadouro. Alguns se saem bem, e é milagre, mas muitos deixam ali sua alma, ou a sua candura, ou o seu fervor.
“É um verdadeiro problema pelo qual as famílias católicas devem reunir-se entre elas e refletir. Os católicos, na medida dos dons que receberam de Deus, devem esforçar-se por ter influência social benéfica e eficaz: mas não a qualquer preço. Seria desastroso, ilusório e derrisório.
“Essa influência social pode aliás exercer-se de outras formas que não uma profissão ad hoc: a educação de uma família, o testemunho da fé, a consciência no dever de estado são ‘agentes sociais’ bem mais verdadeiros e profundos do que os gestos teatrais de um advogado ou os roncos de um deputado.
“Tudo isso exige reflexão, orações e tempo.”
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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Louis VEUILLOT, Carta sobre a indolência dos cristãos frente aos inimigos de Deus e da Igreja, 1843, seguida de Comentário do Rev. Pe. H. BELMONT, 2013; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, nov. 2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2qB
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