“A potência e o ato de tal
modo dividem o ser, que tudo quanto existe ou é ato puro ou necessariamente
composto de ato e potência como de seus primeiros princípios intrínsecos”
Pe. João
Batista de A. Prado Ferraz Costa
No
quinto aniversário da eleição do bispo de Roma Francisco, parece-me oportuno
pôr em evidência alguns pontos em comum entre Bergoglio e seu predecessor
Ratzinger, tido por alguns ingênuos, sem nenhum fundamento, como um baluarte da
sagrada e imutável tradição da Igreja.
Infelizmente,
aqui no Brasil os blogs dos grupos Summorum
Pontificum atrelados à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei Adflicta não deram a
merecida publicidade ao lançamento do livro do filósofo italiano Enrico
Radaelli, curador da obra de Romano Amerio, Alcuore di Ratzinger – al cuore del mondo.
Na
referida obra, Radaelli imputa a Ratzinger diversos erros filosóficos e
teológicos defendidos em sua obra de juventude Introdução
ao cristianismo, sendo que em alguns desses erros reincidiu o autor
após ter abdicado do trono de São Pedro.
Diz
Radaelli que, segundo Ratzinger, a existência de Deus é a melhor hipótese mas
não é um dado da razão, como ensina São Tomás de Aquino. Ratzinger, portanto,
seria um “tradicionalista rígido”, ou melhor, um fideísta. Quando li que
Ratzinger considera Deus a melhor hipótese lembrei-me do que dizia D. Pestana
sobre a mentalidade materialista de hoje: “Considera-se Deus uma hipótese
inútil”.
Procurei,
então, entender o alcance e as consequências do erro defendido pelo ex-papa. E
logo me acudiram à memória as 24 teses tomistas concebidas sob o pontificado de
São Pio X e publicadas por Bento XV, em 1916. As 24 teses foram
elaboradas e propostas como regras seguras de direção intelectual, a fim de que
se evitassem erros filosóficos que tivessem consequências deletérias nos
estudos teológicos.
A
primeira tese diz: “Potentia et actus ita
dividunt ens, ut quidquid est, vel sit actus purus, vel ex potentia et actu
tanquam primis et intrinsecis principiis necessario coalescat.” (A
potência e o ato de tal modo dividem o ser, que tudo quanto existe ou é ato
puro ou necessariamente composto de ato e potência como de seus primeiros
princípios intrínsecos.)
Como
se sabe, os conceitos de potência (capacidade) e ato (perfeição) foram
elaborados por Aristóteles para explicar o movimento, que nem Parmênides (que o
negava) nem Heráclito (que negava a estabilidade do ser e afirmava um puro
devir da realidade) tinham sabido explicar. Graças ao gênio de Aristóteles e ao
aprofundamento de uma investigação posterior de São Tomás de Aquino à luz da
Revelação, foi possível estabelecer não só uma distinção real entre potência e
ato (que explica a passagem de um ser indeterminado, como um germe, para um ser
determinado, como uma planta, sob o influxo de uma causa extrínseca), mas foi
possível estabelecer também a distinção real entre ser e essência, a partir
daquela famosa passagem bíblica do Êxodo em que Deus diz a Moisés Ego sum qui sum ( Eu sou o que sou).
Quer dizer, em Deus o ser não está limitado. Ele não não tem o ser mas é o Ser.
Os
conceitos de potência e ato e a distinção entre ser e essência são o fundamento
da metafísica do ser. São anteriores à especulação do espírito humano, que, com
muito esforço, os descobre como princípios da realidade. Qualquer inteligência
reta e sã os reconhece e respeita como leis do ser.
Entretanto,
houve filósofos que os deturparam, entenderam mal ou os classificaram como
distinções de razão. Uma vez negados ou deturpados esses conceitos, ou
reduzidos a postulados, o princípio de causalidade (todo ser contingente
depende de um ser necessário), que é fulcro de toda ciência, perde todo seu
valor. O movimento só pode ser entendido à maneira de Heráclito: a
realidade é puro devir, o ser não tem estabilidade. O movimento não é trânsito
de potência a ato, sob o influxo de outro ser em ato. Toda a realidade passa a
ser considerada como em constante evolução sem que se admita um ser em ato que
a presida.
Ora,
a aplicação dessas ideias à teologia tem consequências devastadoras no campo da
dogmática. É evidente que uma teologia que não tenha em conta os conceitos
explanados acima não pode defender a imutabilidade do dogma nem sequer seu
desenvolvimento homogêneo como um aprofundamento da sua inteligência. Cai por
terra o juramento anti-modernista exigido por São Pio X de todos os clérigos: “Fidei doctrinam ab Apostolis per orthodoxos
patres eodem sensu eademque semper sententia ad nos transmissam, sincere
recipio; ideoque prorsus reicio haereticum commentum evolutionis dogmatum…” (Aceito
sinceramente a doutrina da fé transmitida pelos Padres da Igreja no mesmo
sentido e sempre na mesma sentença; por isso repilo a herética doutrina da
evolução dos dogmas.)
É
isto que explica a confusão crescente que se instalou na Igreja, desde que
foram abandonadas as 24 teses tomistas como diretrizes dos estudos filosóficos
e teológicos, desde que a qualquer coisa, por mais aberrante que fosse, como a
filosofia social de um sr. Jacques Maritain (patrocinado por Giovani Battista
Montini) ou a politicagem de um Montoro e toda a democracia cristã se desse o
honroso nome de tomismo. Basta ver um manual de história da filosofia para ver
a que bella roba se atribui uma influência do Santo Doutor.
Garrigou-Lagrange,
em sua Síntese Tomista (Desclé de Brouwer, 1946), diz que, após a Aeterni Patrisde Leão XIII e os vários
documentos de Pio X sobre o modernismo exigindo que se seguisse a doutrina de
São Tomás de Aquino nos estudos filosóficos e teológicos, houve muitos
estudiosos que diziam estar de acordo com Santo Tomás mas na verdade tentavam
adaptar a doutrina do Santo Doutor a suas novidades. Não é à toa que até
Francisco se defendeu da acusação de favorecer heresia dizendo que a
autorização para adúlteros receberem os sacramentos tem base na moral de Santo
Tomás de Aquino. É por isso também que hoje lemos a notícia de que Ratzinger
declarou que o pontificado de Francisco está em perfeita continuidade com o
seu, de modo que, se antes era proibido dar a comunhão aos adúlteros e hoje se
autoriza, tudo se explica por uma evolução das coisas sem necessidade de uma
coerência entre o que se ensinava antes e o que se ensina hoje.
É
a hora e o poder das trevas. É a hora e poder do modernismo.
Anápolis, 13 de março de 2018.
5.º aniversário do pontificado do bispo de
Roma Francisco.
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