“Deixa-se de lado o objeto formal da fé, que é a autoridade de Deus
enquanto Revelador da Verdade, para se considerar apenas aspectos
circunstanciais, secundários”
Dom Lourenço Fleichman OSB
A crise da Igreja trouxe para a nossa sociedade matizes religiosos
diferentes e supreendentes. Por si só, a multiplicação dos estudos e o
conseqüente aumento do conhecimento do objeto material da fé, gera discussão,
análise, grupos mais ou menos coesos e diversidade de opiniões. Estas se formam
tanto em relação aos objetos questionáveis da Religião, como também, em muitos
casos, quanto ao que a Religião tem de inquestionável, definido e eterno.
Por exemplo: discute-se se é pecado ou
não uma atitude, um comportamento. Ouvir tal música, ou vestir tal roupa.
Assuntos controvertidos, sujeitos a argumentos a favor ou contra, logo, sujeito
a opiniões. Mas discute-se também sobre o Concílio Vaticano II e nossa adesão a
ele, matéria relativa à fé, onde os critérios já serão dogmáticos e, na sua
argumentação mesma, tenderão a posições definidas, certas ou erradas. Isso faz
parte da vida católica, sem dúvida, e poderia ser saudável.
Mas ocorre freqüentemente das opiniões
livres serem vistas como dogmas e, ao contrário, os dogmas serem discutidos
como sujeitos a opiniões.
Para que desvios desse tipo aconteçam,
é preciso que a discussão seja sempre superficial, muitas vezes camuflada
debaixo de um linguajar pomposo e aparentemente teológico, que dará a impressão
de ser algo profundo e sério. Deixa-se de lado o objeto formal da fé, que é a
autoridade de Deus enquanto Revelador da Verdade, para se considerar apenas aspectos
circunstanciais, secundários, ou certas etiquetas morais pré-concebidas, sem
que o objeto da fé importe. Quando muito tratarão do objeto material da fé, ou
seja, seu enunciado, suas fórmulas, numa vasta erudição material sem
profundidade e sem a visão da fé sobrenatural.
O mundo da opinião
Dar a sua opinião e ter a liberdade
para formar uma opinião é uma das características marcantes do nosso século.
Observa-se, com efeito, um aumento significativo da publicidade oferecida ao
que cada um acha.
Esta facilidade em opinar já fora
constatada por Gustavo Corção em seu primeiro livro, A Descoberta do
Outro. A parte central do seu ensaio consiste em devolver à inteligência e
à razão seu domínio sobre a opinião. Depois de descrever uma familiar guerra de
opiniões, Corção procura descobrir a mola interior que teria levado as pessoas
envolvidas no caso a disputar com tanto afinco e zelo o gozo de “ter razão”. E
conclui:
“A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto
sem que o objeto importe... Ter razão importa sem que o objeto importe” 1
Tomo a liberdade de citar um parágrafo
do que eu escrevi na Revista “Conhecimento Prático de Literatura”, quando esta
dedicou um bom espaço para Gustavo Corção, no seu número 30:
“O professor segue mostrando que a opinião não se
forma na inteligência. Ao contrário do que poderia parecer, ela não é um
conhecimento, pois o objeto a ser conhecido não importa. A opinião reside,
então, naquela parte “mais irritável, mais ferida, aquela que vive a
esbarrar na limitação incômoda dos objetos: a vontade ... O
mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a
inteligência e o objeto.” [lembremos que a verdade é a adequação da
nossa inteligência ao objeto conhecido]
Uma vez isolado o vírus que deforma a nossa
inteligência, o professor ensinará a solução do problema, o antídoto a este mal
que se espalhou pela sociedade dos homens. Tomando o leitor pela mão, se posso
me expressar assim, Gustavo Corção detecta na alma humana os sentidos próprios
das coisas, dos objetos. Em Três sensos pressentem um objeto,
explica:
“Temos três sensos, atrofiados mas persistentes,
e voltados todos para o absoluto: o primeiro é uma espécie de visão; o segundo,
uma audição; o terceiro, um tato. Visão absoluta, audição absoluta, tato
absoluto... Mais claramente, são os seguintes os vértices daquele triângulo:
primeiro o senso da objetividade; segundo o senso da eternidade ou senso
lúdico; terceiro, o senso da pessoa humana no próximo, no outro, ou senso da
altruidade.”
Trata, então, da atrofia dos três
sensos:
- A diminuição do senso da
objetividade gera o subjetivismo, o liberalismo e as correntes filosóficas
idealistas, todas voltadas para o sujeito, para a opinião, para as coisas
passageiras e móveis.
- A atrofia do senso lúdico, ou senso
da eternidade, é o que substitui a contemplação da infância pela função social,
pelo fazer: “A ação se intromete e destrói a contemplação; o fazer subordina
o ludus”.
- A deformação do senso da altruidade
deforma o amor, gera a filantropia, o humanitarismo e a solidariedade. “Foi
proposta uma fraternidade sob a singular condição de não se falar em
paternidade”.
Tendo explicado a grandeza dos três
sensos e o que a atrofia deles provoca no homem, Gustavo Corção mostrará como
restaurar a equação própria da nossa alma racional, deixando à inteligência seu
objeto, para que ela realize aquele ato que lhe é próprio, que consiste em
conhecer as coisas por aquilo que elas são e não pelas aparências exteriores ou
pela opinião que uns e outros possam ter delas.
Vocês viram Gustavo Corção estabelecer
as causas principais para este aumento do domínio da opinião: subjetivismo,
liberalismo e idealismo. Ora, qual a religião que se baseia exatamente nessa
linha? Existe uma religião da Opinião?
As origens no livre-exame protestante
O que eu gostaria de assinalar é que o
mundo moderno é movido por esse espírito da opinião. Em termos de religião,
espalhou-se pelo mundo a religião protestante, justamente por causa dessa
facilidade do livre exame, que deixa cada um com total liberdade de opinar
sobre tudo. Essa troca constante de opiniões será necessariamente superficial,
pois parte do princípio de que é a vontade do homem, e não sua inteligência,
que elabora o pensamento; é o sujeito que pensa, ou seja, que “acha”, que
importa, e não o objeto. Já não conta a Revelação, o dogma, a verdade, mas
aquilo que brota de dentro do sujeito.
Por isso, ao debruçar-se sobre as
realidades da sua Religião, todo católico deve estar atento ao espírito com que
a estuda. Se a crise da Igreja é uma condição que obriga a todos a aprofundar
seus conhecimentos do catecismo, da liturgia católica tradicional e da vida da
Igreja, não se deve abusar dessa condição, achando que tal estudo possa ser
feito sem orientação e sem o auxílio do sacerdote, e que todo mundo tem o
discernimento necessário para orientar seu próprio estudo.
Houve época, é verdade, em que as almas
foram abandonadas pelos padres e pelos bispos, logo após o Concílio Vaticano
II. A graça de Deus permitiu, então, que algumas almas privilegiadas
mergulhassem em estudos mais profundos, solitários, sem padres nem paróquias,
pois estas estavam contaminadas pelo progressismo. Foi assim que ganharam
importância fundamental na defesa da fé movimentos como Itinéraires,
na França, ou SiSiNoNo na Itália, Roma, na
Argentina, e outros espalhados pelo mundo. Aqui no Brasil, Gustavo
Corção foi uma dessas inteligências privilegiadas. A fundação da Permanência
foi realizada, em 1968, de modo a fugir da influência dos bispos e padres que,
já então, destruiam a fé obrigando aos católicos a aderirem ao Vaticano II.
Estes grandes defensores da fé foram
perseguidos e agiram para não abandonar a verdade. Serão expulsos das
paróquias, perderão cargos importantes, sofrerão penas injustas e absurdas. A
perseguição continuou por décadas, levando muitos a abandonarem nossas fileiras
com medo de serem excomungados. Nasciam os neo-conservadores, aqueles que
fugiam de Ecône, mas pretendiam manter a missa tradicional, como se isso fosse
sinal suficiente de ortodoxia.
Seria lícita a formação auto-didata da
fé?
Mas até que ponto vai esta necessidade
de proteger a fé num mundo inimigo? Hoje, quando a internet aproximou os
continentes e as pessoas, onde ninguém mais pode se sentir completamente
isolado e sem conhecimentos; hoje, quando a Fraternidade S. Pio X espalhou seus
padres pelos cinco continentes e onde seus bispos passam sempre que os fiéis
precisam; hoje, onde esses padres da Tradição, formados dentro do espírito
católico, rezando seus breviários e suas missas num altar tradicional, aguardam
as almas virem como vinham às verdadeiras paróquias, podem os fiéis continuar a
fazer sua formação sem a orientação sacerdotal? Podem eles tomar o controle de
um apostolado que não lhes cabe, de uma missão que não lhes foi transmitida,
como se não houvesse padres e bispos para fazê-lo?
Claro está que os padres dos nossos
priorados poderão ser mais ou menos simpáticos, mais ou menos acessíveis, uns
serão arrogantes, outros humildes; porém isso não é desculpa para ninguém, pois
sempre foi assim na vida da Igreja. A fé sobrenatural é que regula a
aproximação filial para receber do sacerdote ou do bispo, mesmo se alguma
reserva prudencial ainda deva estar presente. Mas não haveria um abuso alegar
que a Fraternidade não é exatamente uma paróquia, o que isentaria os fiéis de uma
submissão filial à orientação dos padres?
Fonte da submissão sobrenatural
Em que se baseia esta submissão
pacífica dos fiéis diante dos seus padres e bispos? Ela vem do sacerdócio. É a
instituição do sacramento da Ordem que separa estes homens do meio do povo para
que “sejam intercessores entre Deus e os homens” (S. Paulo aos Hebreus). Ao
negar aos padres a colaboração e a submissão, escapando de sua orientação, para
fazer sua obrinha pessoal, os leigos da Tradição entram, sem perceber, no mundo
protestante do livre exame. Das duas uma: ou bem eles se acham no direito de
publicar ou ensinar o que querem, o que seria propriamente protestante; ou eles
argumentam que estão nas catacumbas, com a espada na mão, degladiando-se contra
tudo e contra todos, sem perceber que diante deles não está mais um bispo
progressista, mas um bispo da Tradição; não se pede aos fiéis de se submeterem
a um padre laicizado saído do Concílio, mas aos padres formados por Mons.
Lefebvre.
Na nossa Permanência, sempre comentamos
a singular graça que recebemos – no momento mesmo em que Gustavo Corção morria
– da aproximação de Mons. Lefebvre e de seus padres. Corção morreu em julho de
1978. Um ano depois, no início de 1979, recebíamos pela primeira vez a Mons.
Lefebvre no Rio de Janeiro. Iniciava-se uma nova fase da nossa vida de defesa
da fé. Já não teríamos de nos apoiar num sábio leigo abandonado por todos os
padres e bispos, mas iluminado por Deus para conduzir um pequeno grupo de
alunos a guardar a fé. Logo após essa vinda de Mons. Lefebvre, iniciou-se o
trabalho de padres da Fraternidade S. Pio X entre nós: um acampamento foi
realizado numa cidade do interior de Minas Gerais, em 1980, com os padres Faure
e Ceriani; um retiro se realizou no Rio Grande do Sul, em 1981, com os padres
Faure e Galarreta, então recém-ordenado. Mais tarde veremos aproximarem-se os
padres de Campos, com quem manteremos contatos constantes até sua queda em
2001.
Acredito poder afirmar que, pela graça
de Deus, soubemos manter o equilíbrio entre os tempos heróicos do isolamento
total, quando não tínhamos padres nem instituições eclesiásticas para nos
proteger, e os tempos atuais, iniciados naquele ano de 1979, marcados pela
orientação segura dos padres e dos priorados da Tradição.
O farisaismo dos conservadores
Agora tomemos este primeiro elemento, o
livre exame protestante presente na situação atual das almas, mesmo entre
católicos, e acrescentemos uma pitada de legalismo. Este não é exatamente um
respeito à lei, mas o uso da lei como escora para tirar de seus ombros a
responsabilidade por seus atos. O fato das leis atuais serem promulgadas no
sentido de destruir a fé e a Igreja não os abalam, e eles continuam invertendo
o papel da obediência e o da fé. Como não conseguem olhar para a coisa em si,
para o erro tal como ele aparece, mas são viciados na opinião subjetiva e
totalmente livre, preferem dizer-se com o papa mesmo quando este erra. Para
tanto, falsificam a noção de infalibilidade papal, escondem os erros do papa
atribuindo-os a outros, e vivem atados a um sentimentalismo humano em seu
relacionamento com o papa. Essa mistura do liberalismo e do legalismo gera
esses conservadores que confundem suas próprias opiniões com a verdade.
Os teólogos da internet
O advento da internet, como eu dizia,
aproximou as pessoas. As próprias instituições tradicionais, como a
Fraternidade São Pio X ou, a título de exemplo menor, nossa Permanência,
passaram a usar esta ferramenta para difundir a defesa da fé. Pouco a pouco
tudo começou a ficar mais fácil na divulgação virtual. Primeiro esta divulgação
era de ordem doutrinária, nos grandes sites. O mecanismo de atualização do
conteúdo era lento e pesado, e isso limitava os abusos. Os sistema de “blog”
com sua agilidade própria, criou uma rapidez na difusão de idéias e notícias
que provocou uma verdadeira explosão de opiniões. Não falo nem dos sites de
relacionamento, Orkut ou, mais tarde, o Facebook, pois neles atingimos as raias
do delírio, onde o livre exame e o reino da opinião são acrescidos do
narcisismo de quem quer ser visto e admirado. Essa revolução na difusão
das idéias produziu uma nova casta: os teólogos da internet. De repente, por
toda parte surgiram os novos doutores de uma novíssima teologia; cada um com
sua idéiazinha própria, cada um querendo impor seu ponto de vista, cada um com
sua opinião!
Chega a ser engraçado analisar
rapidamente o conteúdo desses blogs. A feira é gigantesca, vende-se de tudo,
dos grandes doutores sede-vacantistas, dogmatizando tudo e levando o seu Livre
Exame Protestante-Tradicionalista ao ponto de esmagar toda e qualquer
autoridade acima deles, passando pelos grandes moralistas desenhando roupas
exclusivas para a mulher Protestante-Tradicionalita, para chegar, lá em baixo,
nos formidáveis jornalistas do neo-Protestantismo-Tradicionalista-Conservador,
que, seguindo de perto a escola de Comunicação da Puc, manipulam as notícias
para formar opiniões.
Todos eles partem do mesmo princípio: o
que eu penso, o que eu acho, minha opinião – isso tudo sendo apresentado como
dogma, como verdade infalível, exigindo dos demais submissão, porque tem lá uma
lei que, segundo eles, obrigaria a obedecer.
Você é um católico da Tradição?
O que deve, portanto, significar de
modo profundo e sobrenatural, o termo Tradição? Apenas porque somos ligados à
Fraternidade S. Pio X? Ou porque assistimos a missa Tridentina? Ou ainda,
porque combatemos Vaticano II? Não é isso que nos faz fiéis da Tradição. Por
outro lado, esses conservadores de todos os matizes, pedantes e falsamente
obedientes, resvalando como estão na religião da opinião, podem pretender ser
católicos da Tradição?
O católico da Tradição é quem, em tudo,
age pela Fé sobrenatural: “Meu justo vive de Fé” (Galatas, 3, 11)
O católico da Tradição baseia seu
conhecimento naquilo que é verdadeiro, infalível e profundo, buscando a coisa
como ela é, na sua realidade, e não na opinião que, subjetivamente, se forma no
coração do homem.
O católico da Tradição fortalece seu
espírito na Esperança teologal ao se deparar com os erros atuais, inclusive
quando são difundidos pelo papa e por Roma; não o escondem, não o justificam,
preferindo considerar, com a Imitação de Cristo, o que foi dito e não quem o
disse.
O católico da Tradição prova seu amor e
seu zelo pela Igreja dando sua vida por Nosso Senhor, não se importando com as
duras perseguições que sofre ao denunciar o erro, mas unindo-se ao Cristo
crucificado, na Paixão da Igreja.
Na prática, deve sempre o católico da
Tradição estudar a doutrina e os eventos relativos à crise da Igreja na sua
profundidade, com humildade e espírito de obediência, sempre se perguntando se
conhece de fato o que é essencial, e não apenas situações secundárias. Jamais
passaria pela cabeça de um católico da Tradição, fazer chacota e piada com os
escândalos que nos massacram, como fazem esses superficiais conservadores. E
isso é sinal de que não podem ser verdadeiros católicos da Tradição.
Finalmente, o Católico da Tradição reza
sem cessar, confia a Deus seus cuidados e seus sofrimentos, pedindo que lhe
venham as graças necessárias para perseverar na verdade acima de tudo,
preservando-o do espírito superficial e subjetivo.
Só assim poderá o católico desenvolver
em sua alma uma personalidade espiritual, a essência do seu catolicismo, a fé
verdadeira fundada na verdade e o amor perfeito que dá a vida por Cristo
crucificado e pela Igreja.
___________
1 A Descoberta do Outro, cap. Gostos e Opiniões, Agir, 1944.
Fonte: http://permanencia.org.br/drupal/node/2016
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