“A Igreja deve manter diálogo com o mundo em que vive. A
Igreja se faz palavras, a Igreja se faz mensagem, a Igreja se faz conversação.”
Como Paulo VI será
julgado pela Igreja no futuro?
É evidente que a Igreja, um dia, julgará
este Concílio, julgará estes Papas. E em especial, como será julgado o Papa
Paulo VI? Alguns afirmam que foi herege, cismático e apóstata; outros crêem
poder demonstrar que Paulo VI não tinha em vista o bem da Igreja, e portanto
não foi papa, é a tese dos “Sedes Vacans” (sedevacantistas). Não nego que estas
opiniões tenham algum argumento a seu favor. Poderão dizer que em trinta anos
se descobrirão coisas que estavam ocultas ou se verão melhor elementos que
deveriam ter sido mais claros para os contemporâneos, como afirmações deste
Papa absolutamente contrárias à tradição da Igreja etc. Pode ser, mas não creio
necessário recorrer a estas explicações; penso inclusive que é um erro seguir
certas hipóteses.
A solução real me parece que é outra, muito
mais complexa, penosa e dolorosa. O caminho nos é dado por um amigo de Paulo
VI, o Cardeal Daniélou: em suas “Memórias” publicadas por um membro de sua
família, o Cardeal diz explicitamente: “É evidente que Paulo VI é um papa
liberal”.
Essa é a solução que parece ser a mais
provável, historicamente, porque este papa foi ele próprio um fruto do
liberalismo. Toda a sua vida foi permeada com a influência dos homens que ele
escolheu para cercá-lo ou que tomou por mestres, e que eram liberais.
Paulo não escondeu suas simpatias liberais:
no Concílio, em lugar dos presidentes designados por João XXIII, colocou homens
que chamou de moderadores. Estes moderadores foram: Cardeal Agagianian, cardeal
da Cúria sem personalidade, e os Cardeais Lercaro, Suenens e Dopfner; estes
três últimos, liberais e seus amigos pessoais. Os antigos presidentes foram
relegados a uma mesa de honra e foram os três moderadores que dirigiram os
debates do Concílio. Da mesma maneira, Paulo VI sustentou durante todo o Concílio
a facção liberal que se opunha à tradição da Igreja, isto é um fato conhecido.
Como já lhes disse, Paulo VI repetiu ao fim do Concílio as palavras de
Lamennais textualmente: “A Igreja não pede mais do que a
liberdade.” Doutrina condenada por Gregório XVI e Pio IX!
É inegável que Paulo VI esteve fortemente
influenciado pelo liberalismo. Isto explica a evolução histórica vivida pela
Igreja nestas últimas décadas e caracteriza muito bem o comportamento pessoal
de Paulo VI. Como já lhes disse, o liberal é um homem que vive sempre em
contradição; afirma os princípios mas faz o contrário, vive sempre na
incoerência.
Deixem-me citar alguns exemplos destes
binômios tese-antítese, em que Paulo VI se destacava ao propor tantos problemas
insolúveis que refletiam seu espírito ansioso e paradoxal. A
encíclica Ecclesiam Suam, de 6 de agosto de 1964, que é a carta-programa
de seu pontificado, nos ilustra a este respeito:
“Se verdadeiramente, como dizíamos, a
Igreja tem consciência do que o Senhor quer que ela seja, surge nela uma
singular plenitude e uma necessidade de expressão, com a clara consciência de
uma missão que a excede e uma novidade que deve propagar. É a obrigação de
evangelizar, é o mandato missionário, é o dever de apostolado (…). Nós sabemos
bem: ‘Ide e ensinai a todas as nações’, é o último mandamento de Cristo a seus
apóstolos. Isto define sua irrecusável missão, pelo próprio nome de apóstolos.”
Esta é a tese, imediatamente seguida pela
antítese:
“A propósito deste impulso interior de
caridade que tende a se transformar em um dom exterior, nós usaremos o nome que
é atualmente usual: diálogo.
A Igreja deve manter diálogo com o mundo em
que vive. A Igreja se faz palavras, a Igreja se faz mensagem, a Igreja se faz
conversação.”
Finalmente vem a tentativa de síntese, que
não faz mais do que consagrar a antítese:
“(…) inclusive antes de converter o mundo,
principalmente para convertê-lo, é necessário acercar-se dele e falar com
ele.” (Documentos pontifícios de Paulo VI, 1964. Ed. Saint Augustin, Saint
Maurice, págs. 677-679.)
Mais graves e mais características da
psicologia liberal de Paulo VI, são as palavras com que logo após o Concílio
declara a supressão do latim na liturgia. Logo após haver recordado os
benefícios do latim: língua sagrada, língua estável, língua universal, pede em
nome da adaptação o “sacrifício” do latim, confessando inclusive que será uma
grande perda para a Igreja! Eis aqui as próprias palavras do Papa Paulo VI,
citadas por Louis Salleron em sua obra “A Nova Missa” (Coleção “Itineraires”,
Nouvelles Editions latines, 2 ª ed., 1976, p. 83):
Em 7 de março de 1965, Paulo VI declarava à
multidão de fiéis reunidos na Praça São Pedro:
“É um sacrifício da Igreja renunciar ao
latim, língua sagrada, bela, expressiva, elegante. Ela sacrificou séculos de
tradição e unidade da língua, por uma crescente aspiração à universalidade.”
E a 4 de maio de 1967, o “sacrifício” era
consumado com a instrução “Tres Abhinc Annos”, que estabelecia o uso da língua
vulgar na recitação em voz alta do Cânon da missa.
Este “sacrifício”, no espírito de Paulo VI,
parece ter sido definitivo. Em 26 de novembro, ele explica ao apresentar o novo
rito da missa:
“Já não é o latim, mas a língua vernácula a
língua principal da missa. Para quem conhece a beleza, o poder do latim, sua
capacidade de expressar as coisas sagradas, será certamente um grande
sacrifício vê-lo substituído pela língua vulgar.
Perdemos a língua dos séculos cristãos, nos
tornamos intrusos e profanamos o domínio literário da expressão sagrada.
Perdemos assim em grande parte esta admirável e incomparável riqueza artística
e espiritual que é o canto gregoriano. Sem dúvida, temos razão em sentir
tristeza e angústia.”
Portanto, tudo deveria dissuadir Paulo VI
de realizar tal “sacrifício” e persuadi-lo a conservar o latim. Mas não,
acomodando-se em sentido oposto em sua “angústia”, de um modo singularmente
masoquista, vai agir em sentido oposto aos princípios que acabava de enumerar,
e vai decretar o “sacrifício” em nome da compreensão e da oração, argumento
enganador que não passava de um pretexto dos modernistas.
O latim litúrgico nunca foi obstáculo para
conversão dos infiéis ou para a educação cristã; pelo contrário os povos
simples da África e da Ásia gostam do canto gregoriano e desta língua una e
sagrada, sinal de adesão à catolicidade. A experiência prova que onde o latim
não foi imposto pelos missionários da Igreja latina, ficaram ocultos os germes
de cismas futuros.
Paulo VI pronuncia então a sentença
contraditória:
“A resposta parece trivial e prosaica,
porém boa por ser humana e apostólica: a compreensão da oração é mais valiosa
do que as antigas roupas de seda, elegância real com que estava revestida. Mais
preciosa é a participação do povo, deste povo que hoje quer que se fale
claramente, de maneira inteligível que se possa traduzir em sua linguagem
profana. Se a nobre língua latina nos separasse das crianças, dos jovens,
do mundo de trabalho e dos negócios, se fosse um biombo opaco em vez de ser um
cristal transparente, nós, pescadores de almas, teríamos uma atitude certa
conservando-a na exclusividade da linguagem de oração e da religião?”
Que confusão mental! Quem me impede de
rezar em minha língua? Mas a oração litúrgica não é uma oração privada, é a
oração de toda a Igreja. Também outra confusão lamentável, a liturgia não é um
ensinamento dirigido ao povo, mas o culto dirigido pelo povo cristão a Deus.
Uma coisa é o catecismo, outra a liturgia! Não se trata para o povo reunido na
Igreja “que se fale claramente”, mas que este povo possa louvar a Deus de
maneira mais bela, mais sagrada e mais solene que exista! “Rezar a Deus
com beleza”, tal era a máxima litúrgica de São Pio X. Quanta razão ele tinha!
Como vocês podem ver, o liberal é um
espírito paradoxal e confuso, angustiado e contraditório; assim foi Paulo VI.
Louis Salleron o explica muito bem quando descreve o aspecto físico de Paulo
VI. Ele diz: “tem dupla face”. Não fala de duplicidade, pois este termo
expressa uma intenção perversa de enganar, que não era a de Paulo VI. É um
personagem duplo, cujo rosto contraditório expressa a dualidade: ora
tradicional nas palavras, ora modernista em seus atos; ora católico em suas
premissas e princípios, ora progressista em suas conclusões, não condenando o
que deveria condenar e condenando o que deveria aprovar.
Com esta debilidade psicológica este papa
oferece uma ocasião sonhada, uma grande possibilidade aos inimigos da Igreja de
se servir dele. Sempre guardando uma cara (ou meia cara, como queiram)
católica, não teve dúvida em contradizer a tradição, mostrou-se favorável às
mudanças, batizando-as de mutações e progresso, indo assim na mesma direção dos
inimigos da Igreja que o estimularam.
Não se viu um dia, em 1976 o “Izvestia”,
órgão do partido comunista russo, reivindicar a Paulo VI em nome do Vaticano II
por minha condenação e a de Ecône?
Igualmente, o diário comunista “L’Unitá”
expressou uma solicitação similar, reservando-lhe uma página inteira, quando
pronunciei meu sermão em Lille em 29 de agosto de 1976. Como estava furioso,
por causa de meus ataques ao comunismo! Dirigindo-se a Paulo VI, diziam: “Tomai
consciência do perigo que representa Lefebvre, e continuai o magnífico
movimento de aproximação iniciado com o ecumenismo do Vaticano II.”
É um pouco incômodo ter amigos como estes,
não lhes parece? Triste ilustração de uma regra que temos destacado: o
liberalismo leva do compromisso à traição.
Como devem se comportar sob um papa
liberal os sacerdotes e fiéis ligados à Tradição?
A psicologia de um papa liberal é
facilmente compreensível, mas difícil de suportar! Com efeito, nos põe em uma
situação muito delicada em relação a tal chefe, seja Paulo VI, seja João Paulo
II…Na prática, nossa atitude deve se fundar em um discernimento prévio,
necessário para a circunstância extraordinária que significa um papa
conquistado pelo liberalismo. Eis aqui este discernimento: quando o papa diz
alguma coisa de acordo com a tradição, o seguimos; quando diz alguma coisa
contrária à nossa fé, ou quando sustente ou deixe fazer algo que põe em perigo
nossa fé, então não podemos segui-lo! Isto pela razão fundamental de que a
Igreja, o Papa, e a hierarquia estão a serviço de nossa fé. Não são eles que
fazem a fé, devem servir a ela. A fé não se faz, é imutável, a fé se transmite.
Por este motivo, não podemos seguir os atos
destes papas feitos com a finalidade de confirmar uma ação que vai contra a
tradição. Seria colaborar com a autodemolição da Igreja, com a destruição de
nossa fé!
Fica claro que o que nos pedem sem cessar:
completa submissão ao Papa e ao Concílio, aceitação de toda reforma litúrgica, vai
em sentido oposto à tradição na medida em que o Papa, o Concílio e as reformas
nos arrastam para longe da tradição, como os fatos provam através de anos.
Assim pedir-nos isto significa pedir-nos colaborar com o desaparecimento da fé.
Impossível! Os mártires morreram para defender a fé; temos exemplos dos
cristãos prisioneiros, torturados, enviados a campos de concentração por sua
fé! Um grão de incenso oferecido à divindade, teria salvo suas vidas. Têm-me
aconselhado algumas vezes: “Assinai, assinai que aceitais e tudo continuará
como antes!” Não! Não se brinca com a fé!
(Traduzido de Dom Marcel Lefebvre, Ils
l’ont découronné, Clovis, 3 ª ed, 2008; Pp. 253-260. Disponível em português na
Editora Permanência como “Do Liberalismo à Apostasia” (1991).)
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