Anápolis, 2 de abril de 2008
Este ano comemoramos o trigésimo
aniversário da morte de Gustavo Corção, ocorrida aos 6 de julho de 1978.
Não me proponho analisar aqui o
pensamento filosófico de Gustavo Corção nem sua evolução ao longo dos anos,
impulsionada pela sua reflexão perspicaz sobre o crescimento da crise da Igreja
e do mundo moderno, bem como por sua honestidade intelectual e humildade em reconhecer
seus equívocos na apreciação das coisas e dos homens. Proponho-me simplesmente
dar meu depoimento sobre a influência benéfica de um grande escritor católico
sobre uma ampla parcela da sociedade brasileira.
Posso dizer que ouvi falar de
Gustavo Corção desde pequeno. Nascido numa pequena cidade do interior do Estado
de São Paulo, meu pai, meu avô e meus tios assinavam
um grande diário da
capital que publicava os seus artigos, lidos e comentados pelos meus parentes
mais velhos, a quem ouvia às vezes falar de política com alguma referência às
idéias de Corção. Meu avô e meus tios não eram católicos praticantes, mas eram
homens de um grande bom senso e demonstravam sempre um grande respeito pela
ordem natural das coisas, não se deixando arrastar pela onda revolucionária que
devasta a sociedade contemporânea. Estou convencido de que Corção os ajudou
muito a ver as questões mais graves com maior acuidade, impedindo que se
contaminassem com a demagogia da esquerda católica, sobretudo após a Revolução
de 31 de março de 1964. A esquerda católica fez de tudo para confundir a
opinião pública negando a necessidade de combater a subversão, sempre sob o
pretexto de defesa dos direitos humanos e da justiça social. Corção foi de uma
felicidade única na tarefa de desmascarar os falsos profetas do progressismo
dito católico. Suas vergastadas contra esses homens que traíram sua missão de
defender ou esclarecer (pense-se em Alceu Amoroso Lima, por exemplo) os
católicos acerca do perigo comunista, a corrupção doutrinária e outros
problemas, são inesquecíveis. Lembro-me perfeitamente, e com saudade, dos
comentários dos meus parentes mais velhos aos artigos de Corção. Que bênção!
Em 1968, após uma dolorosa agonia
do Centro Dom Vital, corroído pelo câncer da heresia modernista e do
progressismo, Corção funda o Grupo Permanência no Rio de Janeiro e lança uma
revista com o mesmo nome, com o apoio de um grupo de intelectuais católicos,
alguns monges beneditinos; entre estes Dom Lourenço de Almeida Prado OSB, que
fez grande divulgação da referida revista em Jahu. O sucesso do apostolado
desenvolvido pelo grupo Permanência foi enorme, apesar do boicote imposto pela
maioria da hierarquia eclesiástica. O próprio Corção chegou a escrever que
choveram assinaturas do Brasil inteiro.
Foi assim que começamos a receber
Permanência: minha avó e minhas tias, logo que tomaram conhecimento da
publicação pelos artigos de Corção, fizeram sua subscrição. E posso dizer que o
efeito benéfico foi considerável. À primeira vista, poderia ser tentado pelo
desânimo vendo hoje o estado das coisas, o desastre geral em todos os setores
da sociedade. Mas se não fosse a Permanência muita coisa boa não teria
acontecido. Com licença. Explico-me.
Logo após o Vaticano II a
corrupção doutrinária acelerou-se à proporção que se degradava a liturgia, como
todos sabem. Aos domingos todos os católicos eram bombardeados, envenenados por
verdadeiras monstruosidades exaradas pelos famigerados folhetinhos litúrgicos
que ocuparam o lugar dos veneráveis missais quotidianos de Dom Gaspar Lefebvre.
Infelizmente, a maioria dos católicos, apáticos, inertes, dopados, não soube
reagir. Engoliu goela baixo o veneno, como os jovens de classe média hoje
ingerem em suas baladas de fins de semana o ecstaze.
Pois bem, foi justamente aí que a
Permanência atuou como uma espécie de antídoto. Os católicos (aí compreendida
minha família), por força do hábito ou por questão de consciência, continuaram
freqüentando a missa dominical, não obstante a agressão moral e verbal que
sofriam periodicamente. Mas muitos tinham a graça de ter em casa, em
compensação, uma fonte de doutrina católica pura, autêntica, que os consolava,
fortalecia, preparava para uma reação, uma resposta.
Ainda bem pequeno, certamente
graças à contribuição de Permanência, pude ver, a partir da minha pequena
cidade interiorana, que havia algo errado na Igreja. De repente, os cônegos
premonstratenses fecham seu antigo colégio São Norberto; as irmãs de São José
de Chamberry fecham igualmente seu colégio cheio de alunas católicas, tendo a
madre reitora a petulância de responder a meu pai que manifestava sua
inconformidade e tristeza: “Não vamos trabalhar mais para a burguesia”. Também
os padres consolatas fecham seu seminário. Todas essas congregações dilapidam de
forma irresponsável e criminosa (o mínimo que se pode dizer) o seu valioso
patrimônio, construído com a ajuda e o esforço da comunidade católica e do
poder público (não se esqueça o prestígio de que então gozava a Igreja junto ao
poder público que ainda reconhecia a sua contribuição para o bem comum).
Os anos se passaram. O menino nascido
no seio de uma família católica que via aturdido tudo aquilo quis ser padre.
Para a escolha de um seminário a revista Permanência e a obra de Gustavo
Corção foram de uma particular importância. De fato, a leitura mensal da
Permanência ajudou-me a entrar em contato com autores católicos de grande
valor. A leitura de Dois Amores Duas Cidades e do Século
do Nada, que reputo os melhores livros de Corção auxiliou-me não só a ter
uma visão da gravidade do processo de decomposição da cristandade e da crise da
Igreja decorrente do Vaticano II, mas também a despertar o desejo de ler Carlos
de Laet, Eduardo Prado, Jackson de Figueiredo, Leonel Franca, Galvão de Sousa,
entre os autores brasileiros. A leitura de Corção avivou-me ainda o interesse
por Eça de Queirós, Machado de Assis, Dostoievski e Paul Bourget. Quanto a este
último, devo dizer que considero injusto o que diz Corção a seu respeito em A
descoberta do Outro, qualificando como detestável sua obra por ser “
esmiuçadora de alcovas” como a de Montherlant. Aqui laborou em erro grave
Corção, não reconhecendo o valor da obra de Bourget que desenvolve em seus
romances de tese uma argumentação sólida em defesa dos princípios e fundamentos
da ordem social cristã, combatendo o divórcio e o igualitarismo. Os romances de
Paul Bourget L’Étape, L’Emigré, Un divorce são ainda hoje
leituras recomendáveis e proveitosas para a formação de uma sã mentalidade
católica.
Fazendo uma síntese da leitura
desses autores sugeridos por Corção, na hora de escolher um seminário para ser
padre, com o propósito de lutar contra a decomposição da sociedade tradicional
e defender a Igreja contra o ataque de seus inimigos infiltrados até na sua
medula, minha escolha só podia recair sobre um seminário que se orientasse
conforme o magistério perene dos papas e preservasse a liturgia romana
tradicional, o que na época só existia nos seminários da Fraternidade
Sacerdotal São Pio X, fundada por Mons. Lefèbvre.
Lembro-me de uma polêmica que
explodiu pouco antes de ingressar no seminário. O grupo Permanência saiu em
defesa dos padres da Diocese de Campos que, em torno do grande bispo Dom
Antonio de Castro Mayer, preservavam a liturgia tradicional e combatiam o
progressismo. Houve um sujeito descarado que não teve pejo de escrever a um
jornal de São Paulo que Corção, no fim da vida, havia aceitado plenamente as
reformas mais desastrosas feitas em nome do Vaticano II. Esse sujeito foi
desancado e saiu desmoralizado da polêmica, que propiciou um retorno aos
melhores artigos de Corção sobre a crise da Igreja. Hoje parece que ocorre algo
semelhante com a obra de Romano Amério, autor do monumental Iota unum –
studio delle variazioni della Chiesa Cattolica nel secolo XX. É
lamentável que haja católicos que, para agradar a autoridades religiosas,
cheguem a ter a desfaçatez de querer falsificar o pensamento de grandes autores
que tiveram o mérito de agradar antes a Deus que aos homens e com valentia
combateram a heresia onde quer que ela se econtrasse.
Passados trinta anos da morte de
Corção e mais de dez anos da minha ordenação sacerdotal, vendo os últimos
desdobramentos da crise na Igreja e no mundo, aprendendo a conhecer a grandeza
e a malícia dos homens, aprecio hoje com mais proveito não só a beleza de
estilo da obra de Corção mas sua grandeza moral. O drama que vive hoje a Igreja
resulta em grande medida da covardia dos homens que perderam o amor à verdade.
Em nome de arranjos, combinações, enfim, em nome da prudência da carne, não se
quer mais defender a verdade.
Corção não teve essa pequenez
moral. Amicus Plato, sed magis amica veritas. Corção viveu
plenamente essa frase atribuída a Aristóteles. No fim de sua vida, quando já
via com clareza as causas e conseqüências da crise da Igreja, não teve medo nem
vergonha de combater e denunciar o erro com uma autoridade, uma convicção que
só se podia explicar por uma graça especial de Deus concedida a ele para
cumprir uma missão. Seu estilo literário apurou-se, ganhou mais brilho e vigor.
Mas muitos o abandonaram ou não o entendiam mais. Morreu praticamente isolado,
sem apoio da hierarquia eclesiástica.
Creio que sua obra deve ser lida
e interpretada à luz dos princípios da escatologia. Representa uma graça
especial concedida pela Divina Providência para os últimos tempos, a fim de que
os eleitos tivessem uma orientação segura em dias de borrasca e trevas, onde
parece que tudo naufraga na apostasia e no naturalismo.
Creio também que o que há de mais
admirável, perene e importante na sua obra não é tanto sua reflexão sobre
as causas históricas da crise que vivemos, como, por exemplo, seu minucioso
estudo do affaire Dreyfus e da condenação da Ação Francesa de
Maurras ou dos graves erros da filosofia política de Maritain, ou ainda dos
problemas do Vaticano II, mas sim sua meditação sobre a condição do homem na
terra, as causas da sua angústia, do seu desespero ou de sua felicidade e
esperança. Corção refletiu sobre tudo isso de uma forma admirável, em um estilo
literário de beleza ímpar, analisando páginas de grandes escritores em seu
livro O Desconcerto do Mundo (1965). Nele, Corção faz ver a
inconsistência do humanismo e do naturalismo sem Deus e sem esperança. Aí
Corção faz ver que o homem não foi feito para o mundo e que todas as tentativas
de acomodar o homem ao mundo, em vez de lhe mitigarem o sofrimento, só deformam
e desumanizam o homem. Assim ele explica o famoso pessimismo de Machado de
Assis, como o de alguém que compreende que o destino do homem na terra é
realmente a frustração porque o homem não encontra aqui o seu lugar, mas como
lhe falta a fé, Machado de Assis não sabe remediar tal situação angustiosa. É
um livro que se lê com grande proveito e prazer.
De maneira que, aplicando ao
problema da história e da política essas reflexões sobre o homem, Corção foi
capaz de desmascarar as utopias socialistas e o democratismo cristão. Diz ele,
com efeito, na citada obra: “o socialismo é uma filosofia de vida que pretende
adaptar o homem ao mundo, e cingir a sorte do homem aos horizontes terrestres.
Cada vez que isto for tentado, não é somente a felicidade do céu que se perde,
é inicialmente a felicidade da terra.” (o. c. p. 36).
Foi também, justamente, essa
sabedoria de Corção que lhe permitiu travar tão rígido combate doutrinário e
assistir à agonia da Igreja e da civilização sem assumir um caráter rancoroso
ou desesperado. Pelo contrário, nele tudo era serenidade e confiança. Nelson
Rodrigues, seu grande amigo, dizia em Corção tudo é amor. (cf. Permanência, 1971).
Oxalá essa efeméride propicie um
retorno à obra de Corção, a fim de que ela lance uma luz sobre o caminho
trilhado pela Igreja esses últimos anos e assim se possa fazer uma reflexão,
corrigir tantos erros e distinguir o joio do trigo.
Pelo grande bem que fez, rendo
hoje, através do site Santa Maria das Vitórias, à memória de
Gustavo Corção minha humilde homenagem de gratidão.
Teremos oportunidade de publicar em nosso site os
melhores artigos de Corção sobre a crise da Igreja.
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