“Eu empunhava uma bandeira com o campo semeado de flores de lis. Havia a figura do mundo com dois anjos a seus lados. Era de pano branco, do tipo chamado de boucassin. Nela estava escrito Jesus Maria e a bandeira tinha uma franja de seda”.
Luis Dufaur
Quem foi la Pucelle? Como eram as vozes do Céu que ela
ouvia? Como realizou o impossível? Consideremos depoimentos que narram sua
proeza, seu martírio e a misteriosa efetivação de sua missão sobrenatural.
Em 6 de janeiro de 2012 comemorou-se o sexto
centenário do nascimento de Santa Joana d’Arc na hoje quase esquecida aldeia de
Domrémy-la-Pucelle em 1412, na França.
Pastorinha chamada por Deus para realizar um feito sem
igual no Novo Testamento, ela restaurou a França, país então sem esperança,
arruinado pelo caos político-religioso e ocupado em larga medida pelos
ingleses. Reinstalou no trono o rei legitimo e levou à vitória seus desanimados
exércitos.
Considerada como profetisa do Novo Testamento, a santa
gravou o nome de Jesus na bandeira com que conduzia as tropas ao combate. Dois
séculos e meio depois, o Sagrado Coração viria pedir a Luis XIV, rei da França,
mediante aparição à vidente Santa Margarida Maria Alacoque, que gravasse sua
imagem nas bandeiras reais.
Aprisionada por ocasião de uma escaramuça, Santa Joana
d’Arc foi julgada por um tribunal iníquo que a condenou a ser queimada como
bruxa na cidade de Rouen, em 1431. Hoje, porém, a história da santa, canonizada
em 1920, faz vibrar o mundo.
Muitos eclesiásticos e inúmeros de seus devotos estão
certos de que sua missão não terminou. Pelo contrário, que a santa vai
continuá-la em nossos dias, comandando do Céu a restauração da Igreja e da
sociedade temporal. Ideia que explica a incrível retomada de interesse pela
Donzela de Domrémy.
Quem foi Joana d’Arc e como eram as vozes do Céu que
ouvia? Como fez o que parecia impossível?
Leiamos suas palavras, que expõem a proeza que
realizou, seu martírio e sua missão póstuma, registrados no processo que a
condenou. Analisemos também os depoimentos de muitos que a viram em pessoa. Com
esses dados reconstituiremos não toda a sua história, mas alguns momentos-chave
da odisseia da virgem-guerreira.
Santa
Joana d’Arc enfrenta um tribunal ilegítimo
Numa escaramuça junto às muralhas de Compiègne, Santa
Joana d’Arc foi aprisionada e vendida aos ingleses que haviam invadido a
França. Estes queriam condená-la como bruxa para tentar vencer a fabulosa
reação que ela inspirou. Porém, como simples militares, eles não tinham meios
para realizar isso. Necessitavam recorrer a maus religiosos do país ocupado.
Promoveram então a instalação de um tribunal composto por mais de 50
eclesiásticos e legistas dirigidos pelo bispo de Beauvais, D. Pierre Cauchon.
Este tribunal, que a condenou em 1431, era destituído
de qualquer competência jurídica, civil-criminal ou canônica. As palavras da
santa e de seus injustos interrogadores foram registradas com minúcia pelos
escreventes do tribunal. Anos depois, num processo concluído em 1455 e
validamente conduzido, as legítimas autoridades civis e eclesiásticas
declararam nulo o processo contra a santa, cuja memória reabilitaram1. Por fim,
um processo de beatificação realizado no século XX constatou a heroicidade de
suas virtudes, e Bento XV a canonizou em 1920.
O Bispo Cauchon,
chefe do tribunal
O advogado Nicolas de Bouppeville, contemporâneo de
Santa Joana d’Arc, depôs da seguinte forma sobre o presidente do tribunal: “Eu
jamais acreditei que o bispo de Beauvais estivesse engajado no processo pelo
bem da Fé ou por zelo da Justiça. Ele obedecia simplesmente ao ódio que lhe
inspira o devotamento de Joana ao rei da França; longe de capitular diante do
medo aos ingleses, ele não fez senão executar sua própria vontade. Eu o vi
relatar ao regente [o duque de Bedford] e a Warwick suas negociações para
comprar Joana; ele não continha seu contentamento e falava com animação”.
O escrevente Guillaume Manchon registrou: “Numa
sessão, Frei Isambard dirigiu-se a Joana, tentando orientá-la e informá-la
sobre o alcance da submissão à Igreja. ‘Calai-vos, em nome do diabo’,
interrompeu o bispo aos berros”.
Um dos agentes do bispo foi o cônego da catedral de
Rouen, Nicolas Loyseleur, que fingia simpatizar com Carlos VII e com a Donzela,
a quem dava continuamente péssimos conselhos. D. Cauchon autorizou a santa a
confessar-se somente com ele. Foi um dos signatários da condenação e até propôs
que a santa fosse torturada. Sobre ele, testemunhou o escrivão Guillaume
Boisguillaume: “Eu acredito que o bispo de Beauvais estava bem a par da
situação; sem ele Loyseleur não teria ousado agir como o fez. Muitos assessores
do processo murmuravam isso”.
Jean d’Estivets, promotor no processo, também entrou
disfarçado na prisão de Joana, declarou Boisguillaume. “Esse d’Estivet teve a
função de promotor e, no caso, mostrou-se muito apaixonadamente favorável aos
ingleses, que ele queria agradar. Ele dirigia injúrias ferozes contra Joana.
Acredito que Deus o puniu na hora da morte, pois foi encontrado num brejo às
portas de Rouen. Aliás, ouvi dizer, como fato de domínio público, que todos os
que condenaram Joana pereceram miseravelmente. Foi o caso do clérigo Nicolas
Midi (da Universidade Paris, que pronunciou o sermão na hora de Joana ser
queimada), atingido pela lepra poucos dias depois, e do bispo Cauchon, que
morreu subitamente enquanto fazia a barba”.
Em 24 de fevereiro, enquanto era interrogada, a
Donzela pediu licença para falar e disse ao bispo:
– “Eu vos digo: prestai atenção no que vós tentais,
porque vós sois meu juiz e assumis uma pesada carga tentando me inculpar”.
Cauchon: “Chega, eu exijo, jura!”.
Santa Joana: “Eu direi com todo gosto o que sei, mas
não tudo agora. Eu venho da parte de Deus e não tenho nada a fazer neste
tribunal. Eu vos rogo que me mandeis de volta a Deus, de quem eu venho”. E
acrescentou:
– “O que eu sei bem, é que hoje, quando acordei, a voz
me disse para responder com intrepidez. [E voltando-se para D. Cauchon :] Vós,
ó bispo, dizeis que sois meu juiz; prestai atenção naquilo que estais a fazer,
pois em verdade eu fui enviada da parte de Deus e vós vos colocais num grande
perigo”.
Procura de
pretextos
O tribunal devia declará-la ré de contatos com o
demônio para desmoralizar sua imensa fama. D. Cauchon procurava um pretexto
para declará-la herética, tendo-lhe exigido várias vezes: “Fala teu Pai Nosso”.
A santa respondia sempre: “Ouvi-me em confissão, eu vo-lo direi com muito
gosto”.
Incomodado pelo pedido, respondeu encolerizado o mau
eclesiástico: “Joana, você está proibida de sair da prisão sem nossa aprovação,
sob pena de ser assimilada a um culpado convicto de heresia”.
– “Eu não aceito essa proibição. Se eu fugir, ninguém
terá direito de dizer que violei a palavra dada porque não a engajei a pessoa
alguma”.
– “Em meu país [Domrémy, Lorena] me chamam de
Joaninha. Na França, desde que cheguei me chamam de Joana. Minha mãe me ensinou
o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo. Eu não aprendi minha fé de mais ninguém
senão de minha mãe”.
As vozes sobrenaturais que ela ouvia todos os dias
desde o início de sua missão foram um dos pretextos para tentar fazê-la cair em
erro ou contradição.
– “Quando é que você começou a ouvir as vozes?”
– “Eu tinha 13 anos quando ouvi uma voz de Deus para
ajudar-me a conduzir-me bem. Da primeira vez eu tive muito medo. Esta voz vinha
ao meio-dia, durante o verão, no jardim de meu pai”.
– “Eu ouvi essa voz proveniente do lado direito, do
lado da igreja, e raramente ela chegava até mim sem ser acompanhada de uma
grande luminosidade. Tal luminosidade vinha do lado da voz. E desde que cheguei
à França, ouço a voz com frequência. Se eu estivesse numa floresta, também
ouviria essas vozes”.
– “Como era a voz?”.
– “Era uma voz bem nobre e acredito que era enviada da
parte de Deus. Na terceira vez que eu a ouvi, percebi que era a voz de um anjo.
Ele sempre me protegeu. Eu era uma pobre menina que não sabia cavalgar nem
fazer a guerra”.
– “E você ouve frequentemente a voz?”.
– “Não há dia que não a ouça, e também sinto muito
necessidade dela”.
A Árvore das Fadas
em Domrémy
Não longe de Domrémy havia uma velha e frondosa árvore
chamada Árvore das Fadas, onde as crianças se reuniam para brincar. A camponesa
Hauviette, casada com um homem do povo de nome Gérard, assim descreveu essa
árvore:
– “Havia desde tempos antigos na nossa região uma
árvore apelidada Árvore das Damas. Os anciãos diziam que ela estava assombrada
por damas chamadas fadas. Entretanto, jamais ouvi falar de alguém que tivesse
visto as fadas. As crianças da aldeia, mocinhas e rapazes, iam até a Árvore das
Damas levando pães e nozes, e também à fonte das Groselheiras, no domingo
deLaetare Jerusalem, que nós denominamos domingo das Fontes. Lembro-me ter ido
com Joaninha, que era minha colega, e outras meninas. Nós comíamos, corríamos e
brincávamos”.
D. Cauchon voltava ao assunto com insistência
obsessiva, e a malícia do tribunal aumentava.
Interrogador: “Então, a voz vos proíbe dizer tudo?”.
Santa Joana: “Eu tive revelações relativas ao rei que
não vos contarei”.
Interrogador: “Mas essa voz a que você pede conselho
tem rosto e olhos?”.
Santa Joana: “Vós não extorquireis de mim o que
quereis. Há um ditado das crianças segundo o qual as pessoas acabam enforcadas
por terem dito a verdade”.
As vozes ouvidas
pela Donzela
Em 27 de fevereiro houve o quarto interrogatório
público. O tribunal ocupou-se das aparições de Santa Catarina de Alexandria e
Santa Margarida de Antioquia, pelas quais a Donzela tinha grande devoção.
Interrogador: “Como é que você sabe que estas são duas
santas? Você distingue bem uma da outra?”.
Santa Joana: “Eu distingo bem uma da outra pela
saudação que elas fazem. Elas enunciam seu nome”. E acrescentou:
– “Eu também recebo conforto de São Miguel”.
Interrogador: “Qual foi a voz que você ouviu
primeiro?”.
– “Foi a de São Miguel. Vi-o com meus olhos e ele não
estava sozinho, mas muito bem acompanhado pelos anjos do Céu”.
Interrogador: “Você viu São Miguel e os anjos como
corpos reais?”.
– “Eu os vi com os olhos de meu corpo tão bem quanto
eu vos vejo. Quando eles partiram, chorei e desejei muito que eles me levassem
consigo”.
Interrogador: “Eles estavam nus?”.
– “O Sr. julga que Deus não tem com que vesti-los?”.
Interrogador: “Que efeito produzia sua presença?”.
– “Vendo-os eu sentia uma grande alegria, e ao vê-los
parecia que eu não estava em pecado mortal”.
Interrogador: “Você se julga isenta de pecado
mortal?”.
– “Se eu estou em estado de pecado mortal é sem
sabê-lo”.
Interrogador: “Mas quando você se confessa, você não
acredita estar em pecado mortal?”.
– “Eu não sei se alguma vez estive em estado de pecado
mortal. Acredito não ter praticado más obras. Deus queira que jamais eu tenha
caído em semelhante estado! Deus não permita que eu faça uma ação que pese
sobre a minha alma!”.
Interrogador: “Você sabe se você está em estado de
graça?”.
– “Se eu não estou, que Deus me restaure; e se estou,
que Deus me mantenha nele! Eu seria a pessoa mais infeliz do mundo se soubesse
que não estou na graça de Deus. Mas se eu estivesse em estado de pecado, acredito
que a voz não se dirigiria a mim. Eu desejaria que cada um a ouvisse tão bem
quanto eu a ouço”.
No dia 1º de março, os interrogadores voltaram ao
assunto.
Interrogador: “Desde a última terça-feira você
conversou com Santa Catarina e Santa Margarida?”.
– “Ontem e hoje. Não há dia que não as ouça. Eu as
vejo sempre da mesma forma e suas cabeças estão muito ricamente coroadas. A voz
delas é boa e bela, eu escuto-as muito bem. É uma bela, doce e humilde voz, e
exprime-se em francês”.
Interrogador: “Mas, então, Santa Margarida não fala em
inglês?”.
– “Mas como ia ela falar inglês, se não é do partido
dos ingleses?”. O interrogador mudou de assunto.
Interrogador: “Você tem anéis?”.
– (Dirigindo-se a D. Cauchon): “Vós, senhor bispo, tendes
um que é meu; devolvei-mo”.
Interrogador: “Mas você não tem outro?”.
– “Os borguinhões têm outro que é meu. Mas vós, senhor
bispo, mostrai meu anel, se vós o tendes”. O bispo silenciou.
As vozes e o rei
da França
D. Cauchon prometera aos ingleses que faria Joana cair
em suas rédeas. Estes, por sua vez, precisavam comprovar que as vozes – que
guiaram todo o percurso épico e empolgante da Santa – provinham do demônio.
Essas vozes sobrenaturais levaram a Donzela de início até o pretendente
legítimo ao trono da França, o qual se encontrava no castelo de Chinon. Quando
ela entrou para falar com ele, um cavaleiro riu de sua virgindade. O confessor
de Joana, Pe. Jean Pasquerel, viu o fato: “‘Ah! – disse-lhe Joana – em nome de
Deus, renega isso, tu que estás tão próximo da morte!’. Menos de uma hora
depois, esse homem caiu na água e se afogou”.
É bem conhecido o episódio ocorrido depois: a fim de
testar a autenticidade da missão da Pucelle, o rei colocou um cortesão no lugar
em que se encontrava e fingiu ser apenas um dos presentes. A santa não hesitou.
Dirigiu-se diretamente a ele, dizendo: “Gentil Delfim, meu nome é Joana, a
Donzela. O Rei dos Céus vos manda dizer por meu intermédio que sereis sagrado e
coroado em Reims, e tornar-vos-eis o lugar-tenente do Rei dos Céus que é o Rei
da França”.
O rei dirigiu-lhe muitas perguntas. No fim, Joana
insistiu: “Eu vos digo da parte de meu Senhor que vós sois o verdadeiro herdeiro
da França e filho de rei, e Ele me envia a vós para vos conduzir até Reims a
fim de que recebais vossa coroação e sagração, se vós tendes vontade disso”.
A situação de Carlos VII era miserável até do ponto de
vista moral. Ele duvidava inclusive mesmo ser filho de seu pai, devido à vida
desregrada da mãe. E pedira a Deus luzes sobre a dúvida. Após o encontro, o rei
confidenciou que Joana lhe falou sobre coisas secretas que ninguém sabia nem
podia saber, com exceção de Deus. O monarca acreditou então na providencialidade
da Donzela.
Seu estandarte
inspirava coragem e pavor
“Em Blois ela mandou confeccionar um estandarte onde
nosso Salvador, como Juiz supremo, estava sentado num trono sobre as nuvens do
céu. Havia um anjo em cujas mãos havia uma flor de lis [símbolo da monarquia
francesa] que o Salvador abençoava.
“Todos os dias, de manhã e de tarde, Joana reunia os
sacerdotes em volta desse estandarte e os mandava cantar antífonas e hinos em
honra da bem-aventurada Virgem Maria. Na ocasião, jamais permitia a presença de
homens de armas se antes não tivessem se confessado; ela convocava todos eles a
se confessarem e virem à reunião, pois os padres estavam dispostos de bom grado
a receber todos os penitentes”.
Há diversas descrições da bandeira. A Santa a
descreveu assim: “Eu empunhava uma bandeira com o campo semeado de flores de
lis. Havia a figura do mundo com dois anjos a seus lados. Era de pano branco,
do tipo chamado de boucassin. Nela estava escrito Jesus Maria e a bandeira
tinha uma franja de seda”.
“Eu mesma levava essa bandeira quando atacava os
inimigos, a fim de evitar matar alguém. Jamais matei um homem”, explicou ela ao
tribunal.
As vozes no campo
de batalha
O príncipe Jean de Valois (1409-1476), duque de
Alençon, chefe dos exércitos reais, foi uma dos mais importantes testemunhas da
condução de Santa Joana d’Arc na guerra. Ele a acompanhou lado a lado nos
principais episódios de sua epopeia.
Quando a santa entrou na Guerra dos Cem Anos, o
pretendente inglês e seu aliado, o Duque de Borgonha, dominavam grande parte da
França. Carlos VII, o legítimo pretendente à coroa francesa, era apelidado de
“reizinho de Bourges”, de tal maneira seu território estava reduzido. Seu
exército estava dizimado, desmoralizado, mal vestido e mal alimentado. A
batalha decisiva travava-se em volta de Orleans, sobre o rio Loire. A cidade
era fiel a Carlos VII, mas os ingleses construíram bastiões e linhas que
impediam levar alimentos e munições aos defensores. Orleans ia cair pela fome.
“Tendo visto depois as fortificações construídas pelos
ingleses, posso dizer que os bastiões do inimigo foram tomados mais por milagre
do que pela força das armas. Isso é verdadeiro, sobretudo quanto ao forte de
Les Tourelles, na extremidade da ponte, e ao forte dos Agostinianos”, declarou
o príncipe Jean. Jean de Orléans (1402–1468), conde de Dunois e Mortain, mais
conhecido como ‘Dunois’ ou o ‘bastardo de Orleans’, comandante da cidade
sitiada, declarou: “Eu acredito que Joana foi enviada por Deus. Seus feitos e
gestos na guerra me parecem proceder não da indústria humana, mas de conselho
divino”.
Era urgente levar mantimentos à cidade sitiada. O
único caminho possível era pelo rio Loire, mas o vento não era favorável. O
comando francês decidiu adiar a expedição. Conta Dunois ter dito a Joana: “Eu e
outros mais sábios que eu convocamos um conselho, acreditando que isso [o
adiamento] era o melhor e mais seguro”. “Em nome de Deus, replicou Joana, o
conselho de Nosso Senhor é mais seguro e sábio que o vosso. Vós acreditáveis me
enganar, e vós vos enganastes a vós mesmos; pois eu trago um auxílio melhor do que
jamais cidade ou cavalheiro algum recebeu no mundo, posto que é o auxílio do
Rei dos Céus. Ele vos chega por causa de meu amor por vós, mas procede do
próprio Deus que, a pedido de São Luís e de São Carlos Magno, teve pena da
cidade de Orleans e não quer que os inimigos se apoderem do corpo do duque e de
sua cidade”.
“Imediatamente e como que no mesmo instante, o vento
contrário – que tornava muito difícil aos navios de víveres subir o rio na
direção de Orleans – virou e ficou favorável”.
Santa Joana fez uma gloriosa entrada em Orleans com o
exército francês no dia 29 de abril de 1429.
Dunois ficou pasmo vendo depois a Donzela esmigalhar o
cerco inglês com soldados desmoralizados: “Eu afirmo que até esse momento 200
ingleses punham em fuga 800 ou 1000 dos nossos. Mas nos bastaram 400 ou 500
homens de guerra para lutar contra todo o poder dos ingleses; e impusemos tanto
respeito aos sitiantes, que eles não ousavam sair dos bastiões que lhes serviam
de refúgio”.
Em 4 de maio de 1429, a santa impulsionou a conquista
do bastião de Saint-Loup, vitória que reanimou os abatidos franceses.
Na festa da Ascensão, narra Dunois: “[A Donzela]
dirigiu aos ingleses uma carta impositiva, […] dizendo-lhes que levantassem o
cerco e voltassem para a Inglaterra, porque do contrário ela lançaria um grande
assalto e os forçaria a irem embora: ‘Vós, homens da Inglaterra, que não tendes
nenhum direito sobre o reino da França, o Rei dos Céus vos manda e ordena por
meu intermédio, Joana, a Donzela, que deixeis vossas bastilhas e volteis a
vosso país. Se não eu farei de vós uma coisa tão espantosa que ficará para
perpétua memória. Eis o que vos escrevo pela terceira e última vez, eu não vos
escreverei mais.
“JESUS MARIA, Joana a Donzela’.
“Após escrever, Joana pegou uma flecha, amarrou nela a
carta com um fio e ordenou a um arqueiro lançá-la aos ingleses, gritando:
‘Lede, são notícias’”. Os ingleses a receberam, leram-na e vociferaram as
piores injúrias contra a virgem.
Após a conquista do grande bastião dos agostinianos,
restava assaltar o bastião de Les Tourelles, sede do comando inglês. Dunois
declarou: “Contarei outro fato, no qual vejo igualmente o dedo de Deus. Em 27
de maio iniciamos bem cedo o ataque. Joana foi ferida por uma flecha, que
atravessou sua carne entre o pescoço e as costas, saindo mais de 15
centímetros. Joana não se retirou da batalha nem aceitou tratamento da ferida.
O assalto durou desde a manhã até as oito horas da noite. Nessas condições não
havia nenhuma esperança de vencer naquele dia. Eu opinava pela retirada do
exército e pelo retorno a Orleans. A Donzela pediu-me aguardar ainda um pouco.
Ao mesmo tempo, ela montou a cavalo e se retirou até um vinhedo, permanecendo
sozinha em oração durante meio quarto de hora. Depois voltou, pegou nas mãos
seu estandarte e posicionou-se sobre as bordas do fosso, espicaçando o inimigo.
Vendo-a os ingleses tremiam, tomados de pavor. Os soldados do rei recuperaram a
coragem e correram para a escalada da muralha. O bastião foi tomado sem
resistência; os ingleses que ali estavam fugiram, mas pereceram todos”.
“[Sir William] Glasdale e os principais capitães
acreditaram poder se retirar na torre da ponte de Orleans. Porém, eles caíram
no rio e se afogaram. Esse Glasdale era o homem que se referia à donzela do
modo mais injurioso, vilão e ignominioso”. Os ingleses abandonaram o sítio.
Ordens do Céu em
Jargeau e Patay
Os ingleses reagruparam-se sob as ordens do duque de
Suffolk em Jargeau, a 15 quilômetros de Orleans, aguardando reforços. Seu
número era muito grande, mas a santa convenceu os franceses a partirem para a
ofensiva. “Joana nos disse: ‘Não temais, qualquer que seja a multidão deles:
não hesiteis em atacar os ingleses, Deus conduz nosso exército”, narrou o duque
de Alençon.
Na hora do ataque, a santa disse ao príncipe:
“Adiante, gentil duque, ao ataque!”. “Eu achava que procedendo apressadamente
na acometida nós nos precipitávamos, mas Joana me disse: ‘Não duvideis. A boa
hora é quando Deus quer. É preciso lutar quando Deus quer. Lutai, e Deus lutará
por vós’.
“Joana – prossegue o duque de Alençon – partiu ao
assalto, e eu com ela. Joana subiu numa escada levando na mão o estandarte.
Joana e o estandarte foram atingidos por uma pedra que caiu sobre seu elmo. O
impacto a jogou por terra. Ela se levantou e disse aos homens de armas:
‘Amigos, amigos, subi! Subi! Nosso Senhor condenou os ingleses. Nesta hora eles
são nossos, tende muita coragem!’ Jargeau foi tomada na hora”.
Conduzidos pela santa, os franceses conquistaram ainda
outras cidades. Reforçado por Sir John Fastolf, o exército inglês, vindo de
Paris, se concentrou na planície de Patay. Era o melhor exército da época,
excelente em batalhas abertas, dominava a técnica dos arcos, a arma mais
temida. Os capitães franceses La Hire e Xantrailles estavam certos de que não
os superariam.
“Mas, testemunhou o duque de Alençon, Joana disse: ‘Em
nome de Deus, é preciso combatê-los. Ainda que eles estejam em posição tão alta
quanto as nuvens nós os derrotaremos, porque Deus nos envia para que os
castiguemos.’ Ela afirmava sua certeza da vitória. ‘O gentil rei, dizia, hoje
terá a maior vitória que há muito tempo ele não teve’. De fato, o inimigo foi
feito em pedaços sem grande dificuldade. Talbot [comandante inglês], entre
outros, foi feito prisioneiro. Houve grande mortandade entre os ingleses”.
Vontade de Deus:
sagrar o rei em Reims
|
Santa Joane d’Arc, Paris |
O rei Carlos VII encontrava-se em Loches quando lhe
chegou a notícia da libertação de Orleans. Em sua companhia encontravam-se
vários nobres e bispos. Joana bateu na porta. Dunois narra o fato:
“Quase imediatamente ela entrou e se pôs de joelhos e,
enquanto abraçava as pernas do rei, disse: ‘Gentil Delfim, não percais mais
tempo em tão intermináveis conselhos, mas vinde a Reims o mais cedo possível
para receber a coroa digna de vós’”.
A Corte ficou perplexa e pediu explicações. Joana,
segundo Dunois, disse então: “Concluída minha oração a Deus, ouço uma voz que
me diz: ‘Filha de Deus, vai, vai, vai, eu te ajudarei, vai.’ E quando ouço esta
voz, sinto uma grande alegria’. E, coisa impressionante, enquanto repetia a
linguagem de suas vozes, ela estava num êxtase maravilhoso, fitando o céu.
“Gentil Delfim, ordenai aos vossos sitiar a cidade de
Troyes, e não percais mais o tempo em longos conselhos. Pois, em nome de Deus,
antes de três dias eu vos farei entrar nessa praça, ou de bom grado e por amor,
ou pela força e pela coragem, e grande será o espanto da Borgonha, a falsa”.
Troyes era a grande cidade no percurso até Reims e
pertencia ao duque da Borgonha. Vendo chegar o cortejo real, a cidade se
aprestou a resistir. Os generais franceses temiam atacar suas muralhas. Dunois
relata que “Joana ergueu sua tenda perto do fosso defensivo e executou
diligências tão maravilhosas como não as teriam realizado dois ou três homens
de guerra dos mais experientes e famosos. Ela trabalhou de tal modo durante a
noite que na manhã seguinte o bispo e os burgueses de Troyes prestaram, cheios
de pavor e tremor, vassalagem ao rei. Soube-se depois que, a partir do momento
em que Joana disse ao rei para não se retirar diante da cidade, os habitantes
perderam toda coragem e não pensaram em outra coisa senão em procurar asilo nas
igrejas”.
“Quando alguém lhe dizia: ‘Mas jamais se viu alguém
fazer coisas como vós o fazeis; em livro algum se leem coisas semelhantes’; ela
respondia: ‘Meu Senhor tem um livro que jamais clérigo algum leu, nem mesmo os
que no clero foram perfeitos’”.
O pretendente chegou a Reims, onde com o nome de
Carlos VII foi sagrado rei. A notícia suscitou entusiasmo na França. Era como
se Deus em pessoa tivesse decidido a guerra em favor de Carlos VII.
A virgem guerreira
no dia-a-dia
O lavrador Colin, morador da cidade natal de Santa
Joana, atestou: “Lembro-me de ter ouvido do nosso antigo pároco daqueles
tempos, Pe. Guillaume Fronte, que Joana era boa católica e que jamais ele vira
alguém melhor do que ela na paróquia”.
“Joana era pura – conta o duque de Alençon – e odiava
muito essas mulheres que acompanham os exércitos. Certo dia, em Saint-Denis,
voltando da sagração do rei, eu a vi de espada na mão perseguindo uma jovem
prostituta, e até quebrou a espada nessa perseguição.
“Ela fazia questão de vigiar para que as mulheres
dissolutas não fizessem parte de seu séquito, pois dizia que Deus permitiria
que fôssemos derrotados por causa de seus pecados.
“Ela também se irritava enormemente quando ouvia os
soldados blasfemar e os repreendia com veemência. Ela me repreendia
especialmente quando eu blasfemava. Quando eu a via, eu parava de blasfemar”,
acrescentou o duque.
“Ao anoitecer, Joana – narra Dunois – costumava
retirar-se a uma igreja. Mandava tocar os sinos aproximadamente durante meia
hora e reunia os religiosos mendicantes que acompanhavam o exército do rei.
Então, dedicava-se à oração e fazia cantar pelos frades uma antífona em louvor
da Bem-aventurada Virgem, Mãe de Deus”.
“Joana era muito devota de Deus e da bem-aventurada
Virgem Maria. Ela se confessava quase todos os dias. […] Sua grande alegria
consistia em comungar com os filhos dos mendigos. Quando se confessava,
chorava”, confirmaram diversas testemunhas.
A sentença iníqua
Os incríveis sucessos de armas e a sagração do rei em
Reims constituíam crimes para os ingleses. Mas esses fatos eram a negação dos
erros doutrinários dos legistas reunidos em tribunal sob a égide do bispo
Cauchon. Eles execravam toda ideia de que o poder vem de Deus para os príncipes
e defendiam a tese de que ele vem por meio do povo. Santa Joana d’Arc devia ser
queimada, concluíam.
Previamente lucubrada, a sentença foi pronunciada em
12 de abril de 1431. Entre outras coisas, dizia: “Essas aparições e revelações
de que ela se ufana e afirma receber de Deus por meio dos anjos e das santas
não aconteceram como ela disse, mas constituem decididamente ficções de
invenção humana, procedentes do espírito maligno; […] mentiras fabricadas,
inverosimilhanças levianamente admitidas por essa mulher; adivinhações
supersticiosas; atos escandalosos e irreligiosos; dizeres temerários,
presunçosos e cheios de jactância; blasfêmias contra Deus e os santos;
impiedade em relação aos pais, idolatria ou pelo menos ficção errônea;
proposições cismáticas contra a autoridade e o poder da Igreja, veementemente
suspeitas de heresia e malsoantes […] ela merece ser considerada suspeita de
errar na fé […] de blasfemar […]”, etc.
Os juízes um por um aprovaram o acórdão, aduzindo
agravantes.
Frei Isambard de la Pierre, O.P., que acompanhou todo
o processo, depôs por escrito: “Os juízes, tanto na condução do processo quanto
na elaboração da sentença, procederam mais por malícia e desejo de vingança do
que por zelo da justiça”.
No processo foi exigido da virgem guerreira um ato de
submissão, ao que ela acedeu. O escrevente Guillaume Manchon perguntou ao bispo
Cauchon se devia anotar esse ato. O presidente do tribunal disse que não. “Na
hora, Joana disse ao bispo: ‘Ah! Vós escreveis bem o que se faz contra mim e
vós não quereis escrever o que é por mim’. Acredito que a declaração de Joana
não foi registrada e na assembleia se levantou um grande murmúrio”, contou Frei
Isambard.
Em parecer favorável à condenação elaborado pela
Universidade de Paris, reduto de legistas revolucionários, o tribunal
acrescentou uma nova agravante em 23 de maio: “Por zelo pela salvação de vossa
alma e de vosso corpo, eles [os juízes] transmitiram o exame da matéria à
Universidade de Paris que é a luz das ciências e a extirpadora das heresias.
Após receber as deliberações dessa agremiação, os juízes deliberaram que deveis
ser novamente advertida sobre os vossos erros, escândalos e defeitos […] Não
escolhais voluntariamente a via da perdição eterna como os inimigos de Deus que
cada dia se esforçam em perturbar os homens, adotando a máscara de Cristo, dos
anjos e dos santos, […] recusai pelo contrário semelhantes imaginações e
aceitai a opinião dos doutores da Universidade de Paris e dos outros que
conhecem a lei de Deus e as Santas Escrituras”.
Abjuração obtida
mediante fraude
|
Santa Joana d’Arc,interrogada pelo cardeal de Winchester |
No dia seguinte, Santa Joana d’Arc foi conduzida ao
cemitério de Saint-Ouen, onde o pregador Guillaume Erard, doutor em teologia, a
increpou furiosamente. Depois deblaterou contra Carlos VII: “Carlos, que se diz
rei, como herético e cismático que é, ligou-se a uma malfeitora mulher, infame
e cheia de toda desonra, e não somente ele, mas todo o clero que lhe obedece”.
Com o dedo em riste contra a santa guerreira,
acrescentou: “É a ti, Joana, que eu falo, e eu te digo que teu rei é herético e
cismático”. Ela respondeu: “Pela minha fé, meu senhor, com toda reverência, eu
ouso vos dizer e jurar sob pena de minha vida que não há um cristão mais nobre
entre todos os cristãos e que melhor ame a Fé e a Igreja, e em nada é o que vós
dizeis”. O pregador voltou-se para Jean Massieu, oficial de justiça, e mandou:
“Faça-a calar a boca”.
Por fim, o teólogo apresentou-lhe uma folha com uma
fórmula de abjuração. Joana, que não sabia ler, pediu ao mesmo oficial de
justiça, Jean Massieu, para que a lesse. Ele leu e depois garantiu que o texto
dizia que a santa não portaria mais armas, nem roupas e cabelos como os homens
e outros pontos menores. O texto tinha no máximo oito linhas. A santa assinou,
a execução foi suspensa e ela foi trancada num cárcere.
Porém, os juízes incluíram no processo uma abjuração
extensa, na qual Santa Joana se confessava culpada dos crimes hediondos a ela
imputados. O mesmo oficial de Justiça depôs: “[O texto] não era o mesmo
mencionado no processo; a fórmula que li e que Joana assinou era diferente da que
foi incluída no processo”.
No mesmo dia, uma delegação de juízes foi visitá-la na
prisão, insistindo em que não devia usar mais roupas de homem. O golpe já
estava urdido.
Violências no
cárcere
No domingo da Trindade, segundo depôs o oficial de
Justiça Jean Massieu, quando a virgem acordou, “um dos guardas ingleses pegou
seus vestidos femininos e jogou uma roupa de homem sobre seu leito, dizendo:
‘Levanta-te’. Joana se cobriu com o traje de homem e disse: ‘os Srs. sabem que
isso me foi proibido. Eu não quero esta roupa’. Mas eles se recusaram a lhe
devolver as outras roupas, e o debate durou até meio dia. Por fim, precisando
atender às suas necessidades, ela ficou constrangida de sair fora usando o
traje de homem. Quando voltou, eles não quiseram dar-lhe outro, apesar de suas
súplicas e solicitações. Esta retomada das roupas de homem foi a causa de sua
condenação como relapsa, uma condenação injusta pelo que eu vi e pelo que eu
conhecia de Joana”.
Frei Isambard de la Pierre O.P. testemunhou que ele e
outros ouviram da santa que “os ingleses a maltratavam e praticavam contra ela
violências quando usava roupas femininas. Eu a vi acabrunhada, cheia de
lágrimas, desfigurada e mudada, a ponto de ficar com pena dela”. Massieu
acrescentou: “Ela me disse que o bispo de Beauvais lhe havia enviado uma carpa,
que ela comeu e que ela temia ser essa a causa de seu mal-estar”.
O Pe. Martin Ladvenu O.P. ouviu dela “que após a sua
abjuração ela foi torturada na prisão, molestada e surrada, e que um lorde
inglês tentou violá-la. Ela dizia publicamente que essa era a causa pela qual
retomou o traje de homem”. O mesmo frade estava na cela quando “entraram o
bispo de Beauvais [D. Cauchon] e alguns cônegos de Rouen. Quando ela viu o
bispo, disse-lhe: ‘Vós sois a causa de minha morte. Vós prometestes me pôr nas
mãos da Igreja e vós me entregastes nas mãos de meus piores inimigos’.
“Na presença de todos, esses eclesiásticos a
declararam herética, obstinada e relapsa. Ela disse: ‘Se vós, monsenhores da
Igreja, me tivésseis conduzido e guardado em vossas prisões, não teria
acontecido isto’”. Na época, existiam cárceres eclesiásticos onde os detentos
eram tratados com respeito.
Após a visita, o bispo de Beauvais se dirigiu aos
ingleses, que aguardavam do lado de fora: “’Farewell (adeus); jantem bem, está
feito’. Eu mesmo vi e ouvi – continua o Pe. Ladvenu – quando o bispo se
regozijava com os ingleses e dizia ao conde de Warwick e a outros diante de
todo mundo: ‘Ela foi pega’”. Tudo acontecera como D. Cauchon desejara.
A Donzela na
fogueira
|
A prisão de Joana D'Arc – Adolphe Alexandre Dillens (1847-1852) |
Na segunda-feira, 28 de maio, a santa foi
imediatamente conduzida ao tribunal, que formalizou sua condenação final. Dois
dias depois, por volta das 9 da manhã, ela foi levada ao local da execução: a
Praça do Velho Mercado.
Num estrado estavam os chefes do tribunal – D. Pierre
Cauchon, bispo de Beauvais, o juiz Fr. Jean Lemaître O.P., Enrique de Beaufort,
cardeal da Inglaterra e os bispos de Thérouanne e de Noyon. O escrevente
Guillaume Manchon registrou que “Joana foi conduzida ao suplício por uma grande
escolta de soldados, por volta de 80, armados de espadas e varas. Na praça
havia uma formação de 700 a 800 soldados. Eles rodeavam tão estreitamente a
Joana que ninguém tinha coragem de lhe falar, com exceção de frei Ladvenu [o
confessor] e [o escrevente] mestre Jean Massieu. Eu vi como a subiam à pira”.
Ato contínuo foi lido o acórdão final: “Essa mulher,
obstinada em seus erros, jamais desistiu sinceramente de suas temeridades e
crimes infames. E, indo ainda muito mais longe, mostrou-se evidentemente mais
condenável pela malícia diabólica de sua obstinação, fingindo uma contrição
falaciosa e uma penitência e emenda hipócritas com perjúrio do santo nome de
Deus e blasfêmia de sua inefável majestade. Posto que ela se mostrou obstinada,
incorrigível, herética e relapsa – indigna de todo o perdão e da comunhão que
nós lhe tínhamos oferecido misericordiosamente na nossa primeira sentença, tudo
isso considerado, por resolução e conselho dos numerosos consultores, nós
chegamos a nossa sentença definitiva, nestes termos: […]
“Nós, juízes competentes neste caso, declaramos que
tu, Joana, vulgarmente chamada de a Donzela, caíste em diversos erros e crimes
de cisma, idolatria, invocação de demônios e muitos outros delitos. […] nós te
declaramos reincidente nas sentenças de excomunhão em que tu primitivamente
incorreste, relapsa e herética, e com este acórdão nós te denunciamos e te
declaramos membro apodrecido que deve ser amputado e jogado fora do corpo da
Igreja para que não infecciones outros membros. Com a Igreja, nós te repelimos,
cortamos e abandonamos ao poder secular, rogando a este poder que modere sua
sentença sobre ti na hora da morte e da mutilação dos membros…” etc.
A terrível e
emocionante execução
Após ouvir pacientemente a condenação, a virgem elevou
orações e lamentações tão piedosas que até juízes, bispos e muitos presentes
custavam a conter as lágrimas. Ela encomendou sua alma a Deus, a Nossa Senhora
e a todos os santos, pediu perdão pelos juízes e pelos ingleses, pelo rei da
França e por todos os príncipes do reino.
Frei Jean Toutmouillé atestou que, voltando-se em
direção de D. Cauchon, a santa lhe disse: “Bispo, eu morro por vossa causa”. Ao
que, insensível, o prelado revidou: “Joana, tenha paciência, você morre porque
não cumpriu o compromisso e você reincidiu em seu primeiro malefício”.
– “Eu apelo contra ti na presença de Deus”, foram as
últimas palavras desse diálogo.
A pedido da santa, frei Isambard de la Pierre, O.P.
segurava uma cruz, pois ela queria ver o símbolo de Jesus até o último instante
de sua vida. “No meio das chamas, contou o frade, ela não parava de invocar em
altas vozes o nome de Jesus, implorando a misericórdia e o auxílio dos santos
do Paraíso. Ela afirmava que não era nem herética, nem cismática como dizia o
acórdão. Com o fogo ardendo, ela inclinou a cabeça e, antes de render o
espírito, pronunciou ainda com força o nome de Jesus. O público chorava”.
O Journal de Paris escreveu na época que quando as
roupas daquela santa e puríssima virgem se queimaram inteiramente, o carrasco
diminuiu o fogo para que o povo a pudesse ver na sua nudez. E após já morta
olharem-na à vontade, o carrasco voltou a atiçar o fogo até reduzir seu corpo a
cinzas.
Um soldado inglês que a odiava mortalmente jurou jogar
um facho de lenha na sua pira, quando ouviu a voz de Joana clamando por Jesus.
Ficou então paralisado, como atingido por um raio, e seus colegas o levaram a
uma taverna para acordá-lo. À tarde, arrependido ele acorreu aos padres
dominicanos, dizendo-lhes que havia pecado gravemente, e acrescentando que, na
hora da morte da Donzela, ele julgou ter visto uma pomba branca saindo dela e
partindo em direção da França.
“No mesmo dia – acrescentou Frei Isambard – o carrasco
veio até o convento para procurar a frei Martin Ladvenu e a mim. Ele estava
tocado e muito emocionado, com espantoso arrependimento e angustiada contrição.
Tomado pelo desespero, ele temia nunca obter o perdão e a indulgência de Deus
pelo fato de ter feito isso a uma santa mulher. ‘Eu temo muito estar condenado
– dizia para nós – porque eu queimei uma santa’.
“Esse mesmo carrasco dizia e afirmava que não obstante
o óleo, o enxofre e o carvão que ele aplicou sobre as entranhas e o coração de
Joana, não conseguiu que fossem consumidos e reduzidos a cinzas. Ele estava
muito perplexo, como se fosse um evidente milagre”, depôs ainda frei Isambard.
O retorno de Santa
Joana d’Arc
Segundo uma piedosa tradição, esse coração ainda
palpitava entre as brasas quando foi jogado no rio Sena para fazê-lo
desaparecer. Mas, do fundo das águas, ele continua ainda palpitando e
preparando o encerramento da missão da santa profetisa de Domrémy.
Com efeito, Santa Joana d’Arc julgava que sua epopeia
não fora senão o sinal de uma grande missão que ela realizaria. “O sinal que
Deus me deu é levantar o sítio dessa cidade e fazer sagrar o rei em Reims” –
atestou ter ouvido dela Frei Pierre Seguin O.P. Numa carta aos ingleses, conclamando-os
a saírem da França, a heroína escreveu: “Se vós ouvirdes [a Donzela], ainda
podereis vir em companhia dela, lá onde os franceses farão a mais bela ação
jamais feita pela Cristandade”.
O enigma aumenta ao se considerar uma confidência da
santa durante a épica campanha da Ile-de-France: “Quando eu estava sobre os
fossos de Melun, me foi dito por minhas vozes que eu seria aprisionada antes da
São João”. E após comungar na igreja de Saint-Jacques, ela disse a umas
crianças: “Meus filhinhos, eu fui vendida e traída. Logo serei entregue à
morte. Rogai a Deus por mim, pois eu não mais poderei servir ao rei e ao reino
de França”.
Teria ficado truncada sua missão? Teriam errado as
vozes? A pergunta soa ofensiva contra Deus, fonte última dessas vozes sobrenaturais.
Em seu livro La Mission Posthume de Sainte Jeanne
d’Arc2, Mons. Henri Delassus apresentou uma douta e esclarecedora explicação.
Ele demonstrou que D. Cauchon e os juízes seus cúmplices difundiam os erros e
as más tendências revolucionárias enquistados na Universidade de Sorbonne, como
aliás se pode ler na condenação acima citada. Esses erros igualitários e
tendências desordenadas eram insuflados por uma verdadeira conspiração
anticristã e se desenvolveram através da Revolução protestante, da Revolução
Francesa e da Revolução comunista até desembocarem em nossos dias na tentativa
de dissolução anárquica da família e da sociedade civil.
O cumprimento de
sua missão em nossos dias
Santa Joana d’Arc surgiu como uma profetisa da
restauração da Cristandade e, portanto, do movimento contrário ao representado
por D. Cauchon e seus cúmplices. Essa oposição radical a tais erros explica o
ódio satânico desse prelado e de seus correligionários, os quais eram por sua
vez aliados de ingleses interesseiros embora não tão iniciados na conspiração.
Mons. Delassus explica que a retomada do interesse
pela Donzela de Orleans nos últimos tempos e a crescente devoção a ela, hoje
venerada no altar, são sinais de que se aproxima a hora do cumprimento final de
sua missão.
No moderno santuário de Rouen, construído no local
onde Santa Joana d’Arc foi imolada, há um livro de visitas com as mensagens e
pedidos dos peregrinos. “Forgive us” (“Perdoai-nos!”) é a expressão em inglês
mais frequente.
Desde o dia em que o iníquo e ilegal tribunal
presidido pelo bispo Cauchon queimou a enviada de Deus, a ilibada Santa Joana
d’Arc não mais cavalga pelas verdejantes planícies da França, mas nas
profundezas do subconsciente de franceses e ingleses, para não dizer do mundo
inteiro.
Um singular exemplo disso: 600 anos após o nascimento
de La Pucelle, Nicolas Sarkozy, pouco antes de perder a presidência, dirigiu-se
a Domrémy em busca de votos dos admiradores da Donzela. Singular humilhação
para um presidente da República Francesa, herdeira espiritual dos erros e
tendências igualitárias do júri que condenou a santa!
O que sucede na cabeça dos franceses e dos homens hoje
– indagou com pasmo “The New York Times” – para que uma santa medieval, virgem
e profetisa, saída de um conto de fadas, impressione o mundo moderno, laicista
e igualitário, do século XXI? Não adianta fugir da realidade – continua o
quotidiano de Nova York: faça-se uma simples busca dos livros sobre ela na
maior livraria virtual do mundo e encontrar-se-ão mais de seis mil títulos!
Na perspectiva de Mons. Delassus, a resposta a “The
New York Times” não é difícil: cresce cada vez mais a percepção de que,
herdeira dos erros condenados pela santa, a sociedade atual ruma para a morte;
ou – hipótese previsível – caminha para uma restauração em favor da qual a
Donzela está trabalhando eficazmente do Céu e cujos sintomas promissores já
parecem ser visíveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Antes de postar seu comentário sobre a postagem, leia: Todo comentário é moderado e deverá ter o nome do comentador. Comentário que não tenha a identificação do autor (anônimo), ou sua origem via link e ainda que não tenha o nome do emitente no corpo do texto, bem como qualquer tipo de identificação, poderá ser publicado se julgar pertinente o assunto. Como também poderá não ser publicado, mesmo com as identificações acima tratadas, caso o assunto for julga impertinente ou irrelevante ao assunto. Todo e qualquer comentário só será publicado se não ferir nenhuma das diretrizes do blog, o qual reserva o direito de publicar ou não qualquer comentário, bem como de excluí-los futuramente. Comentários ofensivos contra a Santa Madre Igreja não serão aceitos. Comentários de hereges, de pessoas que se dizem ateus, infiéis, de comunistas só serão aceitos se estiverem buscando a conversão e a fuga do erro. De indivíduos que defendem doutrinas contra a Verdade revelada, contra a moral católica, de apoio a grupos ou ideias que contrários aos ensinamentos da Igreja, ao catecismo do Concílio de Trento, ferem, denigrem, agridem, cometem sacrilégios a Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, a Mãe de Deus, seus Anjos, Santos, ao Papa, ao clero, as instituições católicas, a Tradição da Igreja, também não serão aceitos. Apoio a indivíduos contrários a tudo isso, incluindo ao clero modernista, só será publicado se tiver uma coerência e não for qualificado como ofensivo, propagador do modernismo, do sedevacantismo, do protestantismo, das ideologias socialistas, comunistas e modernistas, da maçonaria e do maçonismo, bem como qualquer outro tópico julgado impróprio, inoportuno, imoral, etc. Alguns comentários podem ser respondidos via e-mail, postagem de resposta no blog, resposta do próprio comentário ou simplesmente não respondido. Reservo o direito de publicar, não publicar e excluir os comentários que julgar pertinente. Para mensagens particulares, dúvidas, sugestões, inclusive de publicações, elogios e reclamações, pode ser usado o quadro CONTATO no corpo superior do blog versão web. Obrigado! Adm do blog.