G.K. Chesterton
Publicado no Illustrated London News, 2 de março de 1929
Um distinto cavalheiro militar anunciou recentemente neste jornal que um budista chinês visitará proximamente a Inglaterra com a firme intenção de, finalmente, abolir a guerra. Ele, o cavalheiro militar, explicou que Budismo é uma palavra que significa Iluminação e que somente ela pode abolir a guerra. Isso parece, em si mesmo, um simples processo de razão e reforma. Mas, eu não seria movido a criticar uma intenção tão nobre, se o missivista não tivesse recorrido ao fatigante e velho truque de comparar a condição de iluminação do Budismo com a situação de ignorância dos Cristãos. É verdade que, como muitos homens na atual confusão mental, ele, desnecessariamente, se desnorteou usando a mesma palavra em dois sentidos e em ambos os lados, além de colocar o Cristianismo contra si próprio. Budismo é Cristianismo, o Budismo é melhor do que o Cristianismo e o Cristianismo nunca será ele mesmo até que ele seja a tal ponto iluminado de forma a se tornar diferente. Mas, essa mera logomaquia não altera o essencial da opinião que muitos de nós temos visto, de uma forma ou de outra, há muito tempo. A chave da situação é que o crítico militar diz que “os Cristãos fracassaram” em abolir a guerra e que isso é devido ao lamentável fato que eles não são iluminados, ou, em outras palavras, ao curioso fato de que os Cristãos não são Budistas.
Para começar, um europeu normal não precisa nutrir nenhum sentimento negativo para com os asiáticos para sentir um moderado ressentimento ou mesmo revolta sobre esse tipo de coisa. Se o cavalheiro chinês está vindo com um infalível talismã para terminar toda a luta na Inglaterra, não deveria ser sugerido que ele ficasse onde está e acabasse com todas as lutas na China? Lutas e discórdias nunca foram hábitos apenas cristãos, nem as guerras totalmente desconhecidas fora da Cristandade. Pode ser que eremitas e homens santos, no ocidente e no oriente, tenham, individualmente, abandonado a guerra. Mas, não estamos falando sobre abandonar a guerra, mas sobre abolir a guerra. Em qual sentido os Cristãos fracassaram e os Budistas não? Em que aspecto o Budismo, que pode contemplar as lutas asiáticas por quatro mil anos, é mais eficiente do que o Cristianismo, que pode meramente olhar para dois mil. Eu não considero que isso desacredite nem o Budismo nem o Cristianismo. Mas, se barulhentos palestrantes e jornais, dez vezes por semana, nos contam que o Cristianismo fracassou por não ter sido capaz de acabar com a guerra, o que diríamos das chances do cavalheiro chinês fazer isso na Europa com uma nova religião, quando ele não conseguiu fazê-lo na Ásia com uma velha. De passagem, devo dizer que o apelo Cristão para a paz tem sido, freqüentemente, mais próximo da prática política do que a iluminação metafísica do Budismo. Sem fazer uma aposta muito alta nas chances de ambos, eu diria que seria algo remotamente mais provável um santo franciscano influenciar a política de um Ricardo Coração de Leão do que um monge budista (com sua mente embebida de Nirvana), parar uma marcha de um Genghis Khan. Mas, essa é uma conjectura menor e não tem importância. O mais importante é que, se o Cristianismo for acusado de fracasso por não ter abolido a guerra, o Budismo dificilmente poderá ser considerado uma garantia sólida de sucesso nesse mister. A verdade é, claramente, que toda essa conversa de abolir isso ou aquilo, dentre as muitas incompreensões e tentações da humanidade, mostra uma essencial ignorância sobre a natureza mesma da humanidade. Com isso não se deixa espaço para as centenas de inconsistências, dilemas, reparações desesperadas e ao devotamento imperfeito e parcial dos homens. Um homem pode ser, em todos os aspectos, um homem bom e um crente verdadeiro e, ainda assim, errar. De fato, o cavalheiro militar que escreveu a carta sobre o Budismo e a guerra, não precisa procurar muito por um tal exemplo. Por seus próprios padrões, ele é inconsistente em ser um soldado Cristão e ainda mais inconsistente em ser um soldado Budista.
Tomei esse texto de jornal diário porque, todos sabemos, a religião de nossos pais está sendo permanentemente apedrejada por tais textos. E mesmo independentemente de qualquer lealdade à minha fé, tenho lealdade suficiente a meus pais e à reputação e os feitos do homem Inglês e Europeu para sentir que é tempo para que tais insultos sejam tratados como eles merecem. Não é nenhuma desgraça para o Cristianismo, não é nenhuma desgraça para alguma grande religião, que seus conselhos de perfeição não tenham feito uma só pessoa perfeita. Se depois de séculos, uma disparidade é ainda encontrada entre seus ideais e seus seguidores, isso somente significa que essa religião ainda mantém vivo o ideal e que seus seguidores ainda precisam dele. Mas, isso não deve surpreender um filósofo em toda a sua sabedoria. De fato, seria muito mais razoável usar esse insulto contra o sem religião que o usa, do que contra o religioso, contra o qual ele é usado. É exatamente o pessoal que mais faz uso desse insulto, os secularistas e humanitários, que promete milênios de paz e prosperidade. São os novelistas e ensaístas da escola cética que anunciam, periodicamente, a Guerra que Acabará com a Guerra, ou o Estado Mundial que imporá a paz universal (1). O Cristianismo nunca prometeu que imporia a paz universal. Ele tinha um respeito excessivo à liberdade individual. Aos teóricos céticos é permitida a criação de uma Utopia atrás da outra, sem serem repreendidos quando elas são contrariadas pelos fatos, ou uma pela outra. O infeliz crente é considerado o único responsável, e tem de pagar, por quebrar uma promessa que nunca fez.
Sem dúvida, esse tipo de sarcasmo é tão injusto ao Budismo quanto ao Cristianismo. O ideal de Buda pode ainda ser o melhor para os homens, mesmo que milhões de homens continuem a preferir algo inferior. Se o ideal de Buda é melhor para os homens é uma questão muito mais ampla, que não pode ser, devidamente, desenvolvida aqui (2). De fato, há muita opinião divergente sobre o que era, realmente, o ideal de Buda, especialmente, entre os Budistas. Esse é, também, um insulto vulgarmente usado contra os seguidores de Cristo, que pode muito bem ser usado contra os seguidores de Buda. O misterioso cavalheiro chinês pode impor a todas as nações da terra a mesma definição de paz e, ainda, ter uma tarefa delicada quando tentar impor a todos os Teosofistas a mesma definição de Teosofia. Mas, pelo menos alguns dos discípulos do grande Gautama interpretam seu ideal, tanto quanto posso entender, como o da absoluta liberação de todo o desejo ou esforço, ou de tudo que os seres humanos chamam de esperança. Nesse sentido, a filosofia apenas significará o abandono das armas, porque significará o abandono de quase tudo. Ela não desencoraja a guerra mais do que o trabalho. Ela não desencoraja o trabalho mais do que o prazer. Ela diria ao guerreiro que o desapontamento o espera quando ele se tornar o conquistador e que não vale a pena vencer a sua guerra. Mas, também e presumivelmente, dirá ao amante que seu amor não vale a pena ser conquistado e que a rosa murchará tanto quanto o laurel. Ela dirá, provavelmente, ao poeta que seu poema não vale a pena ser escrito, que pode (em certos casos, cuja identificação é desnecessária) ser, de fato, o caso. Mas, ela, dificilmente, pode ser considerada uma filosofia inspiradora da criação de bons, mais do que da a criação de maus poemas. Pode ser que essas pessoas estejam enganadas sobre o que é ameaçado pelo Budismo. Pode ser, também, que essas pessoas estejam enganadas sobre o que é prometido pelo Cristianismo. Espero que essa tenha sido a última vez que ouvimos algo de pessoas confusas, descontentes e mundanas, que amaldiçoam a Igreja por não salvar o mundo que não quer ser salvo e que estão prontas a aceitar, contra ela, qualquer teoria – mesmo a louca teoria pela qual o mundo seria destruído.
2. Para uma discussão mais profunda sobre o tema, ver o Capítulo VII de Ortodoxia, de G.K. Chesterton, Editora LTR, São Paulo, 2001.
Qualquer semelhança com novelas da globo é profecia certeira. Muito adequado aos nossos tempos.
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