Excerto retirado do
Compêndio de Opúsculos Inéditos
Pe. Grou Livro de 1932 - 428
páginas
Do Mundo
Que é o mundo? E que deve ele ser para o cristão? Duas questões bem
interessantes para todos quantos desejam pertencer inteiramente a Deus e
assegurar a salvação.
Que é o mundo? É o inimigo de Jesus Cristo, o inimigo do
Evangelho. É esse conjunto de pessoas que, presas às coisas sensíveis, fazendo
consistir nelas a felicidade, têm horror aos sofrimentos, à pobreza, as
humilhações e consideram estas e aqueles, como verdadeiros males de que cumpre
fugir e contra os quais de deve estar garantido, custe o que custar; que, em
contraposição ligam o maior apreço aos prazeres, as riquezas e as honrarias;
reputam umas e outras, verdadeiros bens; os desejam e buscam portanto, com
ardor extremo e sem escolherem os meios; os disputam, invejam e arrebatam uns e
outros; só se estima ou desprezam-se mutuamente, na medida em que os possuem;
em suma, fundam na aquisição e no gozo desses bens todos os seus princípios
toda a sua moral, todo o plano de sua conduta.
O espírito do mundo é, pois, evidentemente oposto ao espírito de
Jesus Cristo e do Evangelho. Jesus Cristo, na oração por Seuseleitos, declara
não orar pelo mundo; anuncia, aos Apóstolos e, nas pessoas destes, a todos os
cristãos, que o mundo os há de odiar e perseguir, como a Ele próprio odiou e
perseguiu. Quer que a seu turno façam eles contínua guerra ao mundo.
Nos primeiros séculos da Igreja, quando quase todos os cristãos
eram santos e a parte restante da humanidade achava-se abismada na idolatria,
fácil tornava-se discernir o mundo, conhecer a gente que se podia frequentar e
a que se devia evitar.
O mundo, então desencadeado contra Jesus Cristo, distinguia-se por
sinais inequívocos. Depois que nações inteiras abraçaram o Evangelho e o
relaxamento se introduziu entre os cristãos, formou-se pouco a pouco no meio
deles um mundo no qual reinam todos os vícios da idolatria, um mundo ávido de
honras, prazeres e riquezas, um mundo cujas máximas combatem diretamente as
máximas de Jesus Cristo.
Mas, como esse mundo professa exteriormente o cristianismo, hoje é
mais difícil discerni-lo. A sua frequentação também se tornou mais perigosa
porque ele disfarça sua má doutrina com mais habilidade, propaga-a com mais
tento, emprega toda a sua sutileza para conciliá-la com a doutrina cristã e,
nesse intuito, enfraquece, suaviza tanto quanto pode o santo rigor do Evangelho
escondendo cuidadosamente, por outro lado, todo o veneno da sua moral.
Daí um perigo de sedução tanto maior porquanto não se percebe e
contra ele não se está em guarda; daí certo espírito de transigência e
adaptação, pelo qual procura-se conciliar a severidade cristã com as máximas do
século sobre a ambição, a cobiça, o gozo dos prazeres; acordo impossível,
condescendências ou atenuações que tendem a lisonjear a natureza, alterar a
santidade cristã e formar consciências falsas. É incrível a que ponto chega o
desconcerto, mesmo entre pessoas que se prezam de ser piedosas e devotas:
desvario num sentido mais difícil de reprimir do que o resultante de uma
conduta abertamente mundana e criminosa, porque não querem reconhecê-lo e a seu
respeito se iludem.
Se quisermos viver nesta terra sem participar da corrupção do
século, só temos um partido a tomar, o de rompermos absolutamente com o mundo
pelo coração e entrarmos a sentir com São Paulo, quando exclamava: O mundo está
crucificado para mim, e eu estou crucificado para o mundo.
Oh! que belas palavras, e quão profundo o sentido que encerram!
A cruz era outrora o suplício mais infame, o suplício dos
escravos.
Dizendo o Apóstolo que o mundo está crucificado para ele, é como
dissesse: Tenho pelo mundo o mesmo desprezo, a mesma aversão, o mesmo horror
que por um vil escravo crucificado pelos seus crimes: não posso suportar-lhe a vista,
ele é para mim objeto de maldição, com o qual toda ligação em todo trato e toda
relação me são interditos.
Nada de exagerado tem, ao invés, apenas justo e legítimo é esse
sentimento de São Paulo, que deve ser o de todo cristão e a razão é evidente: o
mundo crucificou Jesus Cristo, depois de havê-lO caluniado, insultado,
ultrajado; crucifica-O ainda todos os dias: é, pois, justo que o mundo, por sua
vez, esteja crucificado para o discípulo de Jesus Cristo; é justo ter o
discípulo horror ao inimigo capital do Mestre, do seu Salvador, do seu Deus.
Assim a renúncia ao mundo é uma das promessas mais solenes do batismo, uma
condição essencial, sem a qual a Igreja não nos teria admitido entre seus
filhos.
Pensamos nessa promessa?
Pensamos nas obrigações que ela
acarreta?
Examinamos até onde deve chegar
a nossa renúncia?
A renúncia do cristão a
respeito do mundo deve ir tão longe quanto a renúncia do mundo a respeito de
Jesus Cristo.
Esta regra é clara e em face da
sua precisão fora impossível nos enganarmos. Só nos resta aplicá-la em toda a
extensão. O mundo tem o seu evangelho: só temos que tomá-lo numa das mãos e o
Evangelho de Jesus Cristo na outra; só temos que comparar, sobre os mesmos
objetos, a doutrina e os exemplos de um e de outro, só temos que
opor Jesus Cristo na Cruz, no sofrimento, no opróbrio e na nudez, ao mundo
cercado e embriagado de honras, riquezas e prazeres, e dizer a nós mesmos: A
quem desejo pertencer?
Eis aí dois inimigos
irreconciliáveis, fazendo-se reciprocamente a guerra mais cruel. A favor de
qual deles desejo declarar-me? É-me impossível ficar neutro, ou tomar o partido
de ambos. Se escolho Jesus Cristo e a Sua Cruz, o mundo me reprova; se me
prendo ao mundo e às suas pompas, Jesus Cristo me rejeita e condena: poderei
hesitar? É cristão aquele que hesita sequer um instante?
Mas, se uma vez nos alistamos
sob o estandarte da Cruz, não é evidente que desde esse momento o mundo se
torna inimigo com o qual não há mais a fazer pazes nem lhe dar tréguas?
Como isso vai longe, ainda uma
vez! e como os cristãos seriam santos se da grandeza de seus compromissos bem
se compenetrassem.
Não basta estar o mundo
crucificado para nós, é preciso que consintamos estar também crucificados para
o mundo, isto é, que o mundo nos crucifique como crucificou a Jesus Cristo; nos
guerreie do mesmo modo que guerreou a Jesus Cristo; nos persiga, calunie e
ultraje com igual furor; nos arrebate, finalmente, os bens, a honra, a própria
vida.
É mister não só consentirmos em
todos esses sacrifícios de preferência a renunciarmos à santidade cristã, mas
também fazer disso motivo de alegria e triunfo. O discípulo deve gloriar-se de
ser tratado como o Mestre: Se eles me perseguiram, dizia Jesus Cristo a Seus
Apóstolos, também vos perseguirão: é coisa infalível. O mundo não seria o que
é, ou os cristãos não seriam o que devem ser, se escapassem à perseguição do
mundo.
Procuramos muitas vezes
certificar-nos do nosso estado; quiséramos saber se somos agradáveis a Deus, se
Jesus Cristo nos reconhece como pertencentes a Ele. Eis um meio bem próprio
para esclarecer-nos e dissipar todas as nossas inquietações: indaguemos se o
mundo nos estima e considera, se fala bem de nós e nos procura. Neste caso não
pertencermos a Jesus Cristo. Pelo contrário, se ele nos censura e ridiculariza,
se nos calunia foge de nós, nos despreza e odeia, oh! que grande motivo de
consolação, oh! que poderosa razão para crermos que pertencemos a Jesus Cristo!
Vejamos, pois, seriamente
diante de Deus, o que o mundo é para nós e o que somos para o mundo. Sondemos
as nossas disposições interiores, estudemos os sentimentos mais profundos do
nosso coração: acharemos por certo, motivo para nossa confusão e humilhação;
verificaremos haverem as máximas do mundo deixado profundos vestígios em nosso
espírito e que em muitas circunstâncias delicadas os nossos juízos se aproximam
ainda dos seus; verificaremos que somos ciosos de sua estima e temeremos seus
desprezos; que gostamos de cultivar e entreter certas relações e veríamos com
desprazer os outros afastarem-se de nós; que temos, em várias ocasiões,
condescendências, atenções, respeitos humanos que nos incomodam peiam e
conservam numa espécie de constrangimento e dissimulação. Veremos, numa
palavra, que não somos bem claramente a favor de Jesus Cristo e contra o mundo.
Mas não desanimemos: triunfar
plenamente do mundo, afrontá-lo, desprezá-lo, achar bom que por sua vez ele nos
afronte e despreze, não é obra de um momento. Exerçamo-nos nas pequenas
ocasiões que se apresentam: se Deus nos ama, jamais deixará de no-las
proporcionar e pelas pequenas vitórias reparemo-nos aos grandes combates.
Lembremo-nos, sendo preciso, das palavras de Jesus Cristo: Tende confiança, eu
venci o mundo. Supliquemo-Lhe que nos ajude a vencer, ou antes, que Ele mesmo
vença em nós o mundo e destrua em nossos corações o reino deste para aí
estabelecer o Seu.
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