Dom Bernard Tissier de Mallerais
Senhoras e senhores, caros
fiéis católicos,
Vocês vieram ouvir a voz do magistério da Igreja através de São Pio X,
na sua encíclica Pascendi.
No dia 8 de setembro de 1907, ou seja, há cem anos, o Papa São Pio X, em
acurada análise, condenou na encíclica Pascendi uma heresia
nova e singular. Essa heresia não consistia, como as precedentes, em negar tal
ou qual verdade de Fé, em escolher uma ou outra dentre as verdades em que se
deve crer (pois a palavra heresia, em grego,
significa “escolher”); mas o
modernismo era uma heresia que consistia em transformar e perverter a própria
noção da fé. “Não foi nos galhos e nos ramos”, diz São Pio X, “que os
modernistas desferiram seu machado, mas na raiz mesma, ou seja, na fé e nas
suas fibras mais profundas” (Pascendi, n. 1).
O objetivo de minha breve exposição é mostrar-lhes,
primeiramente, as origens do modernismo. Em seguida, veremos o modernismo tal
como São Pio X o condenou. Depois, as implicações atuais do modernismo,
especialmente a exegese, o historicismo, isto é, a evolução do dogma, e, por
fim, a revisão e releitura moderna dos grandes dogmas da encarnação, da
redenção e de Cristo Rei. Será uma exposição a um só tempo
histórica e muito atual, e creio que tratarei antes da atualidade do modernismo
do que da atualidade da Pascendi.
Sumário
1. A origem do modernismo
1.1. Kant: A negação da realidade dos entes
1.2. Kant professa a incognoscibilidade dos entes imateriais
1.3. A ruína do princípio de causalidade, da teodicéia
1.4. A aplicação à moral: negada a finalidade sobrenatural,
Deus torna-se um acréscimo à moral
2. O modernismo tal como São
Pio X o condenou
2.1. São Pio X desvenda os dois princípios de Kant que estão na raiz do
modernismo
2.2. O imanentismo da fé modernista
2.3. O duplo movimento da fé modernista: de dentro (criação vital) em
direção ao símbolo e, em sentido inverso, do símbolo-dogma em direção à
interpretação vital
2.4. A essência do modernismo: os dogmas são apenas símbolos
2.5. A invenção modernista: o Jesus da história e o Cristo da fé
2.6. Aplicação de Husserl à fé: o real revelado é esvaziado e
substituído pela vivência da fé
2.7. O modernista afasta-se da realidade para apreender seus problemas
psicológicos através dos símbolos
3. Em três artigos
de fé, Ratzinger nega a realidade do mistério
3.1. “desceu aos infernos”: o símbolo do abandono moderno pela ausência
de Deus
3.2. “ressuscitou dos mortos”: a reanimação do Corpo de Jesus
substituída pela sobrevida através do amor
3.3 “subiu aos céus”: a ascensão no cosmos reduzida a um lugar
psicológico
4. O método modernista em Ratzinger-Bento XVI:
hermenêutica e historicismo
4.1. A ocultação da realidade física do mistério por Ratzinger,
ignorando-se o sentido literal
4.2. O recente Jesus de Nazaré de Bento XVI afirma a
noção de evolução na interpretação das Sagradas Escrituras
4.3. A exegese torna-se uma arte hermenêutica que reduz os fatos
fabulosos a fenômenos psicológicos
4.4. Joseph Ratzinger se inspira em Dilthey, o pai da hermenêutica e do
historicismo
4.5. O discurso de Bento XVI de 22 de dezembro de 2005: ilustração do
historicismo e da hermenêutica
5. Ratzinger aplica o método modernista a três
dogmas: encarnação, redenção e Cristo Rei
5.1. O dogma da encarnação reinterpretado por Ratzinger à luz do
existencialismo de Heidegger
5.2. O dogma da redenção revisto por Ratzinger segundo a dialética de
Hegel e o existencialismo de Gabriel Marcel
5.2.1. Santo Anselmo vê na cruz um sacrifício expiatório
5.2.2. Negação do sacrifício da cruz nos dias de hoje
5.2.3. A cruz transforma-se: Jesus amou por nós
5.2.4. A cruz torna-se mera exemplaridade
5.2.5. A cruz é desmaterializada, torna-se uma idéia platônica; Jesus é
descrucificado
5.2.6. O sacerdócio é reduzido ao poder de ensinar
5.3. A realeza política e social de Nosso Senhor Jesus Cristo revista
por Ratzinger a partir do personalismo de Emmanuel Mounier
6. Conclusão: um
supermodernismo cético: os dogmas são apenas símbolos para Ratzinger
6.1. O Deus de Emmanuel Kant
6.2. O Deus de Kant é o Deus de Ratzinger
* * *
1. A ORIGEM DO MODERNISMO
Podemos dizer que a origem do modernismo foi o agnosticismo kantiano. A
origem da fé subjetiva dos modernistas foi o agnosticismo (incognoscibilidade),
professado já na Idade Média por Guilherme de Ockham (1280-1349), depois, na
época moderna, por David Hume (1711-1776), e sistematizado por Emmanuel Kant
(1724-1804).
1.1. Kant: A negação da realidade dos entes
Para o filósofo de Königsberg, na Prússia oriental, e contemporâneo de
Jean-Jacques Rousseau, as nossas idéias gerais, nossos princípios não obtêm sua
necessidade da natureza das coisas, a qual é incognoscível (a inteligência é
incapaz de conhecer a natureza das coisas; não pode conhecer o que é um gato, o
que é um cão, o que é o homem).
Donde vêm nossas idéias gerais e necessárias? Vêm da razão somente, e
não das coisas. Vêm da nossa razão e das suas categorias subjetivas inatas. Por
exemplo, a idéia de substância, a idéia de causa são categorias subjetivas da
minha inteligência, e não gêneros do ente real. A razão sozinha estrutura o
real e lhe dá inteligibilidade.
Se podemos compreender uma coisa, não é porque ela é inteligível, mas
porque a estruturamos, a fazemos entrar nos esquemas das nossas categorias
subjetivas. É preciso dizer que a ciência física moderna seguiu esse idealismo
com sucesso, sustentando que o mundo físico permanece opaco
para a razão; que nós não podemos conhecer a natureza ou o sentido das coisas;
que não podemos ter senão representações matemáticas do mundo físico, ou
simbólicas, com noções de energia, ondas e coisas assim, que são símbolos matemáticos.
E não possuímos senão teorias científicas aproximadas, jamais adequadas
ao real e sempre perfectíveis. Vejam, pois, o sucesso de Kant na ordem das
ciências físicas. O mal está em que se desejará aplicar isso à filosofia
e à religião.
1.2. Kant professa a incognoscibilidade dos
entes imateriais
Kant não percebe que os entes reais, a essência das coisas, por exemplo,
ou então o próprio ser, ou ainda o Ente Primeiro, a causa primeira, Kant não
percebe que essas realidades são, ao contrário, supremamente inteligíveis
em si mesmas, e tanto mais inteligíveis quanto mais imateriais. A conseqüência
dessa incognoscibilidade, que se chama também agnosticismo (não podemos
conhecer o ser das coisas, não podemos conhecer o ente como
tal, o que chamamos enteenquanto ente, aquilo que existe, não podemos
conhecê-lo, diz Kant), a conseqüência dessa incognoscibilidade consiste nisto:
a analogia do ser é indecifrável. Não há entre os entes reais uma
relação de analogia que possa ajudar a raciocinar de um a outro.
1.3. A ruína do princípio de causalidade, da
teodicéia
O princípio de causalidade (todo efeito se explica por uma causa)
igualmente não possui nenhum valor metafísico, isto é, ontológico, de modo que
qualquer analogia entre as criaturas e o Ente Primeiro, o Criador, é
incognoscível. É impossível remontar das criaturas ao criador, para afirmar
algo sobre Deus, porque a analogia do ser não tem valor. Não tem
sentido dizer que Deus é o Ente Primeiro, seria quase uma blasfêmia para Kant.
A analogia do ser não existe.
Do mesmo modo, a analogia entre o bem sensível, objeto do desejo, e o
bem honesto, objeto da razão: não há nenhuma relação, nenhum raciocínio a
partir do desejo natural das coisas sensíveis para explicar o natural desejo
espiritual do bem.
Definitivamente, segundo Kant, a razão não pode conhecer, através das
suas próprias forças, a existência nem as perfeições de Deus. É a ruína,
portanto, da chamada teologia natural, a teodicéia, o conhecimento de Deus pela
simples razão. No entanto, o Concílio Vaticano I recordou que nós podemos
conhecer a existência e as perfeições divinas a partir das criaturas. Mas Kant
nega isso. Não podemos conhecer, por nossa razão, nem a existência nem as
perfeições de Deus.
Dessa forma, outra conseqüência: as analogias reveladas no Evangelho, na
Bíblia, das quais se utilizou Deus para nos falar, e que nos desvendam seus
mistérios sobrenaturais, são fatalmente metáforas, uma vez que não há entre
Deus e a criatura nenhuma relação. Tudo o que Deus nos diz são metáforas. Por
conseguinte, toda e qualquer palavra de Deus não pode ser senão alegórica, e
todo e qualquer discurso humano sobre Deus, inversamente, não pode ser senão
mitológico. É a aplicação do agnosticismo à religião.
1.4. A aplicação à moral: negada a finalidade
sobrenatural, Deus torna-se um acréscimo à moral
Por fim, a aplicação à moral deste agnosticismo kantiano. Em moral, o
ato bom, o ato virtuoso, não é o que tem um objeto e um fim conformes com a
natureza (incognoscível), mas sim o agir independente de qualquer objeto e de
qualquer fim, por mero dever, para respeitar, em si mesma, a sua humanidade,
diz Kant. E, como tal virtude de agir por mero dever, por respeito
à humanidadeem si mesma, como tal virtude é quase estóica e não coincide com a
felicidade neste mundo (o homem virtuoso não é verdadeiramente feliz), pois
bem, ela postula a existência de um Deus remunerador no além, e, assim, a
existência de Deus resulta simplesmente de uma necessidade de recompensa ou de
sanção eterna da virtude.
Deus não é portanto o Bem soberano, a chave da moral. Deus é um
acréscimo acidental da moral. A natureza humana é incognoscível;
nós não conhecemos suas leis, não conhecemos seu autor; Deus não é o autor da
natureza humana, Deus não é o autor da lei moral, Deus serve como um acréscimo acidental
à moral. Ora, esse agnosticismo kantiano está na base do modernismo.
2. O MODERNISMO TAL COMO SÃO PIO X O CONDENOU
Passemos ao modernismo, condenado por São Pio X.
2.1. São Pio X desvenda os dois princípios de Kant
que estão na raiz do modernismo
O idealismo de Kant reside, pois, em dois princípios coerentes entre si:
a incognoscibilidademetafísica e moral, que se chama agnosticismo (não podemos
conhecer a natureza das coisas, não podemos conhecer o que é uma ação boa), e,
segundo princípio, a autonomia da razão teórica e da razão prática, que se
denomina imanentismo, isto é, todo conhecimento parte do sujeito e toda bondade
moral provém do sujeito e não do objeto. Portanto, os dois princípios da filosofia
kantiana são o agnosticismo (ignorância das naturezas e de Deus) e
o imanentismo (todo conhecimento vem do sujeito, das suas categorias
subjetivas).
São esses os dois princípios que São Pio X desvenda no modernismo, na
concepção puramente subjetiva da fé. Para a fé católica, o objeto se apresenta
do exterior. Refiro-me à fé católica. O objeto se apresenta do exterior pela
autoridade divina e pelo magistério da Igreja. E esse objeto exterior, o
mistério divino, impõe-se à minha inteligência em razão da autoridade de Deus,
que revela, e não pela autoridade da minha razão. Assim, a fé católica vem do
exterior, os mistérios divinos nos são apresentados do exterior, por Deus e
pela Igreja, e a eles presto adesão com minha inteligência por causa da autoridade
de Deus, que revela e é soberanamente veraz, e não pode enganar-se a si mesmo
nem enganar-nos a nós.
2.2. O imanentismo da fé modernista
A fé modernista, ao contrário, vem de dentro de mim mesmo, donde a
palavra imanência ou imanentismo (in manere: permanecer dentro); ela vem
do interior, eis a diferença.
A fé católica vem do exterior, de mistérios objetivos que eu não
fabriquei, que se impõem a mim. A fé modernista, por outro lado, vem do meu
interior, é imanentista, é a emanação da necessidade religiosa, diz
São Pio X; ou, ainda, essa fé modernista é a expressão de minha experiência
religiosa de crente. Assim, na raiz do modernismo está a experiência religiosa.
Cada pessoa deve ter na sua vida uma experiência original de onde brota a sua
fé. Vocês notaram o erro. Quem vai ter uma experiência original? Existem graças
místicas, mas não as possui o comum dos fiéis. Portanto, a fé, para
os modernistas, é a emanação da necessidade religiosa ou a expressão da
experiência religiosa do crente.
Depois, na segunda etapa, a fé vai “objetivizar”, perdoem-me o
barbarismo, e concretizar sua experiência subjetiva mediante símbolos
imaginados, que são os relatos evangélicos. Por exemplo, o relato
da ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imagem irá representar e
exprimir o poder de soberano juiz de Jesus: ele subiu aos céus para ser nosso
soberano juiz, por exemplo.
Minha experiência original, pois, será “objetivizada” por símbolos
imaginados, que são os relatos evangélicos, e depois pelas fórmulas representativas
desses símbolos, que são os dogmas. Eis como os modernistas expressam as
origens dos Evangelhos e dos dogmas.
2.3. O duplo movimento da fé modernista: de dentro
(criação vital) em direção ao símbolo e, em sentido inverso, do símbolo-dogma
em direção à interpretação vital
São os dogmas meros símbolos da minha fé subjetiva. Assim, se vocês
preferirem, dito de outra maneira, a fé modernista possui um duplo movimento.
Primeiro, historicamente, um movimento centrífugo, que parte do interior em
direção ao exterior, um movimento de criação vital, de transformação da minha
experiência original em símbolo expressivo dessa experiência; e desses símbolos
a Igreja produziu dogmas. A seguir, um segundo movimento, centrípeto, que parte
do exterior em direção ao interior, após o que o crente vai ao
encontro de uma interpretação vital dos símbolos e das fórmulas dos dogmas que
a Igreja lhe dá para viver a fé. Devo interpretar os dogmas
vitalmente para viver a minha fé, para interiorizar a minha crença de modo que
ela se torne assim fonte de vida interior. Notem que o princípio é justo, a
minha fé deve ser fonte de vida interior; mas o modernista entende por essa
interiorização uma deformação. Já o veremos.
2.4. A essência do modernismo: os dogmas são apenas
símbolos
Chama-se a isso interiorização dos dogmas para vivê-los. São Pio X
analisou esse duplo processo, centrífugo e centrípeto, e extraiu a essência do
modernismo, a qual, a meu ver, é afirmar que os dogmas são apenas símbolos. Eis
algumas citações para ressaltar essa verdade, que completa o que disseram meus
confrades a respeito do modernismo. Cito São Pio X, na Pascendi: “É
o ofício da inteligência” (vimos que primeiro há o sentimento, em
seguida a inteligência; o sentimento é a experiência, e depois a
inteligência fará os dogmas), “é o ofício da inteligência, faculdade de
pensamento e de análise, de que se serve o homem para traduzir, primeiro em
representações intelectuais, depois em expressões verbais, os fenômenos da
vida, dos quais ele é o teatro. A inteligência é que interpretará
meus sentimentos para fazer deles símbolos. Daí esta expressão comum entre os
modernistas: o homem deve pensar a sua fé” (n. 12).
O produto desse pensamento são as fórmulas de fé. Continuo a citar:
“estas, terminando por ser acolhidas pelo magistério da Igreja, tornam-se
dogmas” (n. 12).
Outra citação (n. 13): essas fórmulas de fé “constituem, entre o crente
e a sua fé, uma espécie de intermediário. Em relação à fé, essas fórmulas são
apenas sinais inadequados de seu objeto (dizer que Jesus é o filho de Deus é um
sinal inadequado da realidade); na linguagem corrente são símbolos”.
A noção de filho de Deus constitui símbolo de uma realidade que não é
necessariamente a divindade de Jesus. Prossigo a citação do n. 13: “do que se
pode deduzir que as fórmulas dogmáticas não encerram a verdade absoluta. Como
símbolos, são imagens da verdade.”
Conseqüência (n. 16): “A doutrina da experiência, unida à doutrina do
simbolismo, consagra como verdadeira toda religião”, pois que toda religião tem
suas experiências religiosas e seus dogmas. O islã possui dogmas, o islã possui
símbolos. Portanto, toda religião que tenha uma experiência e um simbolismo é
verdadeira, toda religião é verdadeira. Aqui interrompo a citação desses textos
de São Pio X. Segundo ele, a essência do modernismo é a experiência religiosa e
o simbolismo.
Na raiz há uma experiência religiosa, e ela conduz a símbolos. Os dogmas
são apenas símbolos que me ajudam a... já o veremos, não tenhamos pressa.
Os símbolos exercem duplo papel: exteriorizar a fé subjetiva, tornando-a
objetiva, comunicável como Igreja, e o magistério consistirá em controlar,
verificar e unificar a experiência comum dos fiéis como Igreja. Por
exemplo, durante a celebração eucarística: experiência comum. O magistério
controlará e unificará a experiência comum pelo “único sujeito Igreja”, como
diz o cardeal Ratzinger. E, reciprocamente, os símbolos têm outro papel: o de
interiorizar as crenças comuns (divindade de Jesus Cristo), graças ao seu poder
de evocação dos estados de alma do crente. Jesus Cristo, filho de Deus, pois
bem: isso atua, ativa o meu estado de alma para eu meconsiderar
também filho de Deus, por exemplo. Os símbolos ajudam-me a evocar meus estados
de alma. Basta decodificar o sentido metafórico dos símbolos dogmáticos. São
Pio X dá um exemplo: o Cristo da história e o Cristo da fé. Resumo-o: o Cristo
da história, o Cristo histórico que realmente viveu, era mero homem. Mas “um
homem de natureza excepcional”, diz São Pio X, para explicar o modernismo (n.
11). Esse mero homem de natureza excepcional foi sublimado pela fé dos
primeiros cristãos em um Cristo da fé, que é filho de Deus e fez milagres (n.
10).
2.5. A invenção modernista: o Jesus da história e o
Cristo da fé
Portanto, existe um duplo Cristo: o Cristo real, histórico, que não era
Deus, que era um tanto extraordinário, e depois o Cristo da fé, que é Deus e
fez milagres. Como conciliá-los? O modernista, se for filósofo e historiador,
irá negar que Cristo seja Deus segundo a realidade histórica; e, se for
exegeta, suspenderá o juízo sobre a divindade de Cristo: “Não podemos dizer
nada sobre esse assunto. Tudo isso são símbolos.” Mas, se o modernista for
crente (porque ele se diz crente), afirmará a divindade de Cristo, “pois
considera a vida de Jesus Cristo como que vivida novamente, por meio da fé e na
fé”, por ele mesmo, crente (n. 18).
Vejam esta dicotomia de Jesus Cristo: o Cristo da história e o Cristo da
fé, que o modernista reconcilia. Se for historiador, negará: “Jesus não é
Deus”; se for exegeta, dirá: “Não podemos dizer nada sobre isso”; e, se for
crente, ou se se julgar crente, afirmará: “Sim, eu creio na divindade de Jesus
Cristo porque isso me ajuda a viver interiormente a minha fé.” No fundo, pouco
importa ao modernista a realidade extramental daquilo em que ele crê; o
importante é que isso em que ele crê, a saber, os símbolos, o ajuda a evocar
seus problemas psicológicos, situá-los e resolvê-los.
2.6. Aplicação de Husserl à fé: o real revelado é
esvaziado e substituído pela vivência da Fé
Aqui temos uma pequena aplicação à fé da teoria do filósofo
alemão Edmund Husserl, fundador da escola fenomenológica. Existe, digamos, uma
semelhança. Para Husserl, o mundo exterior tal como é não tem nenhum interesse.
O que conta é a vivência existencial, a vivênciarepresentativa, a força de
representação das idéias. O importante é que se viva. Pouco importa a
existência ou não de uma coisa. É a teoria da fenomenologia, que se
desinteressa da realidade do mundo exterior, a põe entre parênteses, sem
negá-la: ela não nos interessa, o importante é estudar as condições da vivência
existencial.
Uma pequena citação de Husserl: “O dado” (o que é dado à minha
consciência, a minha vivência) “é essencialmente a mesma coisa, quer o
objeto representado exista, quer seja imaginado, quer seja talvez absurdo.”
Vocês têm aqui uma aplicação no modernismo: minha vivência interior é o
essencial, pouco importa que aquilo a que eu chamo divindade de Jesus Cristo
seja uma verdade ou um erro ou uma imaginação.
Husserl, que viveu de 1859 a 1938 e era contemporâneo de Loisy, jamais
aplicou isso à fé. Ele era hebreu, um mero filósofo, mas podemos notar certa
convergência de idéias. É interessante.
2.7. O modernista afasta-se da realidade para
apreender seus problemas psicológicos através dos símbolos
Vê-se que naquela época estava em voga isto:
desinteressar-se do real para interessar-se somente pelo fenômeno interior da
consciência. Ora, essa filosofia é que permitirá o modernismo. Portanto, no
fundo, repito minha primeira conclusão desta parte filosófica e histórica sobre
a origem do modernismo: pouco importa ao modernista a realidade extramental,
exterior, daquilo em que ele crê, e até a mesma existência de Deus; o
importante é que isto em que eu creio, a saber, os símbolos, me ajuda a evocar
meus problemas psicológicos, situá-los e resolvê-los. Isso parece inverossímil
e, no entanto, é o que existe atualmente.
3. EM TRÊS ARTIGOS DE FÉ, RATZINGER NEGA A
REALIDADE DO MISTÉRIO
Vou apresentar-lhes a exegese do Evangelho segundo o teólogo Joseph
Ratzinger (quando era teólogo). Eis como o teólogo de Tübingen, na Alemanha, no
seu livro Fé Cristã Ontem e Hoje, de 1968, reeditado sem alterações
em 2005, pois disse ele que não tinha nada substancialmente para mudar, e não
mudou nada, eis como o teólogo Joseph Ratzinger interpreta três artigos de fé
do nosso Credo, que estão contidos no Evangelho: “desceu aos infernos, no
terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu aos céus”. O primeiro não está
contido no Evangelho, mas em outro lugar da Sagrada Escritura. Vejamos o
comentário de Joseph Ratzinger, que era apenas padre na época, sobre esses três
fatos da vida de Jesus. Como, na condição de exegeta, de comentador das
Sagradas Escrituras, ele interpretou esses três fatos da vida de Jesus.
3.1. “desceu aos infernos”: o símbolo do abandono
moderno pela ausência de Deus
Primeiramente, “desceu aos infernos”. Vocês sabem que Jesus desceu ao
limbo para libertar as almas dos patriarcas do Antigo Testamento, dos justos,
que aguardavam a libertação para subir ao céu com ele. Portanto, Jesus visitou
as almas do limbo. Cito Joseph Ratzinger:
– “Nenhum artigo de fé é tão estranho à nossa consciência moderna” (é
a maior, a tese).
– Antítese: Mas, apesar disso, não
eliminemos este artigo de fé; ele representa a experiência do nosso século, a
experiência do abandono pela ausência de Deus, [ausência] que Jesus Cristo
experimenta na cruz: “Meu Deus, por que me abandonastes?”, disse Jesus na cruz.
Ele experimentou o abandono pela ausência de Deus. Pois bem, a
descida aos infernos é isto: um símbolo para exprimir o nosso abandono moderno
pela ausência de Deus.
– Síntese: portanto, este artigo de fé exprime, cito, que “Jesus abriu a
porta da nossa última solidão, que Ele entrou, através da sua paixão, no abismo
do nosso abandono”. Então o limbo, visitado por Jesus, é o sinal de que, “lá
onde nenhuma palavra nos conseguiria alcançar, há Ele. Assim, o inferno é superado,
ou melhor, a morte, que antes era o inferno, já não o
é, dado que na morte habita o amor” (p. 213).
Aí está uma interpretação da descida aos infernos. A experiência
psicológica do abandono pela ausência de Deus que será superada pelo
amor, eis a descida aos infernos.
3.2. “ressuscitou dos mortos”: a reanimação do
Corpo de Jesus substituída pela sobrevida através do amor
Em segundo lugar, “ressuscitou dos mortos”. Explico:
– Tese: o homem está destinado à morte. Jesus, como homem, estava
destinado à morte ou Jesus pode ser exceção? E eu mesmo poderia ser exceção?
Esta é a tese.
– Antítese: com efeito, este artigo de fé corresponde ao desejo de amor
que aspira à eternidade, pois o amor é mais forte que a morte, diz o Cântico
dos Cânticos (cap. VIII). Ora, o homem não pode ter sobrevida (desejo
de eternidade: sobreviver) senão continuando a subsistir em outro,
seja nos filhos, seja na boa reputação, seja em outro, nesse outro que é:
o Deus dos vivos. Portanto, não posso ter sobrevida senão continuando a
subsistir em Deus.
Continuando, resumo Joseph Ratzinger: “De fato, n’Ele sou mais eu mesmo
do que quando tento ser simplesmente eu mesmo.” Notem o platonismo. Eu seria
mais real em Deus do que em mim mesmo; o que é um pouco exagerado.
– Síntese. Cito: “Jesus, aparecendo de modo exterior realmente aos
discípulos, mostrou-se demasiadamente poderoso para provar-lhes que, n’Ele, o
poder do amor se confirmara mais forte que o poder da morte.” É, portanto, o
triunfo do amor sobre a morte.
Conclusão: A reanimação do corpo de Jesus, no momento em que saiu do
túmulo, sua saída do túmulo na manhã de
Páscoa, não é necessária. Basta professar a sobrevida de Cristo pela força do
seu amor. E essa sobrevida é garantia da minha sobrevida pelo amor depois da
morte, o que no entanto não me assegura a realidade da minha ressurreição
futura. Preservamos a palavra ressurreição, professando: Jesus ressuscitou dos
mortos; mas entendemo-lo como uma sobrevida de Jesus pelo amor.
3.3 “subiu aos céus”: a ascensão no cosmos reduzida
a um lugar psicológico
Enfim, “subiu aos céus”. Cito Ratzinger:
– “Falar de ascensão ao céu ou de descida aos infernos reflete aos
olhos da nossa geração, despertada pela crítica de Bultmann” (um protestante
liberal), “essa imagem do mundo, em três andares, que nós chamamos mítica e
consideramos definitivamente obsoleta” (p. 221). Esta, a tese: é
ridículo acreditar que Jesus subiu aos céus. Na concepção dos nossos contemporâneos,
um mundo de três níveis (inferno, terra e céu) está ultrapassado. É obsoleto.
“De acordo com a relatividade” (de Einstein, que tem razão...) “não existe alto
nem baixo”.
Continuo a tese, citando Ratzinger: “Essa concepção obsoleta forneceu
certamente imagens pelas quais a fé representou seus mistérios.” Portanto, no
fundo há um mistério, pois a fé exprimiu esse mistério por meio dessas imagens
de Jesus subindo aos céus. Jesus subindo aos céus, entre as nuvens, é uma
imagem que a fé utilizou para exprimir um mistério. Cabe a nós decodificar esse
mistério. Temos o símbolo: a subida de Jesus entre as nuvens.
– Cabe a nós decodificar esse símbolo para alcançar o mistério:
movimento centrípeto, movimento de análise ou de hermenêutica. A antítese: a
realidade, o mistério, é que há dois pólos na existência humana: o alto e o
baixo.
– Síntese: portanto, a ascensão do Cristo não acontece na dimensão do
cosmos, mas na dimensão da existência humana. Assim como a descida
aos infernos representa o mergulho na “zona de solidão do amor recusado”, pois
bem, “assim a ascensão de Cristo evoca o outro pólo da existência humana, o
contato com todos os outros homens no contato com o amor divino, de tal forma
que a existência humana pode encontrar, de algum modo, seu lugar geométrico na
intimidade de Deus”. Portanto, a ascensão do Cristo no cosmos é um
símbolo que exprime o lugar geométrico-psicológico de uma alma que se une a
Deus. Reparem: nada de físico, nada de sobrenatural: é psicológico.
4. O MÉTODO MODERNISTA EM RATZINGER-BENTO XVI:
HERMENÊUTICA E HISTORICISMO
4.1. A ocultação da realidade física do mistério
por Ratzinger, ignorando-se o sentido literal
A conclusão que tiro dessa exegese de Joseph Ratzinger a respeito desses
três artigos do Credo, desses três fatos evangélicos: a realidade
física do mistério não é afirmada, nem descrita, nem comentada. Em seu livro,
não se explica como, diante dos olhos dos discípulos, Jesus se elevou e
desapareceu entre as nuvens, como diz o Evangelho; não se faz nenhum esforço
para afirmar ou descrever ou comentar a realidade física do mistério. O sentido
literal das Escrituras é silenciado, posto entre parênteses; pouco importa a
realidade histórica, importa que os símbolos escriturísticos e depois
dogmáticos (encontrados pelo evangelista e depois criados pela Igreja) possam
representar a experiência interior do crente do século XX ou XXI. A verdade dos
fatos da Escritura, a verdade do dogma, é seu poder de evocar os problemas
existenciais da época presente.
4.2. O recente Jesus de Nazaré de
Bento XVI afirma a noção de evolução na interpretação da Sagrada Escritura
Cito Joseph Ratzinger, na introdução de seu Jesus de Nazaré,
que veio a lume este ano. É Bento XVI quem fala. Resumo-o: “De resto, toda
palavra de peso encobre muito mais do que seu autor pode conceber; ela
ultrapassa o instante em que é pronunciada e vai amadurecer no processo da
história da fé.”
O autor não fala só de si mesmo, por si mesmo, mas fala potencialmente
numa história que prossegue, numa história comum que o conduz e em que estão
secretamente presentes as possibilidades futuras da sua palavra. O processo de
releitura e de ampliação das palavras não teria sido possível se já não
estivessem presentes, nessas próprias palavras, tais aberturas intrínsecas.
Logo, outra noção se revela: a noção de evolução inspirada na interpretação das
Sagradas Escrituras.
4.3. A exegese torna-se uma arte hermenêutica que
reduz os fatos fabulosos a fenômenos psicológicos
A exegese, isto é, o estudo e interpretação das Sagradas Escrituras,
torna-se uma arte de adivinhação. Podemos adivinhar o que o escritor sagrado
jamais quis dizer e jamais disse. Basta imaginar que a sua palavra contém a
evolução ulterior de significação que ela receberá na Igreja. A exegese
torna-se arte de adivinhação, o exegeta adivinha o que o autor sagrado não
pensou nem exprimiu.
A exegese é, pois, uma arte hermenêutica de releitura e ampliação.
Voltaremos a isto. É sobretudo arte de criação livre de um sentido espiritual
das Escrituras, o qual não se fundamenta no sentido literal, porque o sentido
literal é posto entre parênteses. Mas é ainda e sempre a via da imanência,
descrita por São Pio X na Pascendi; é também a transfiguração que o
escritor sagrado faz dos seus sentimentos em fatos fabulosos, os milagres de
Jesus Cristo, sua ressurreição, sua ascensão: fatos fabulosos. As palavras são
minhas, mas é assim que acontece. E, em contrapartida,é a desmitologização desses
fatos fabulosos, a fim de reduzi-los, mediante a redução antropológica e
naturalista, a fenômenos interiores de consciência. Isso quanto à exegese de
Bento XVI.
4.4. Joseph Ratzinger se inspira em Dilthey,
o pai da hermenêutica e do historicismo
É o método modernista, portanto. Os dogmas são apenas símbolos, os fatos
evangélicos são apenas símbolos que evocam meus problemas psicológicos. Para
alcançar depois essa evolução dos dogmas, é preciso que tome parte um filósofo
alemão, inspirador de toda a teologia alemã e, portanto, influenciador de
Joseph Ratzinger: Wilhelm Dilthey (1833-1911), o pai da hermenêutica e do
historicismo.
Hermenêutica é a arte de interpretar os fatos ou os documentos.
Historicismo refere-se ao papel da história na realidade. Para Dilthey, como
para Schelling e Hegel, que eram idealistas, a realidade não se compreende
senão na sua história. Mas, enquanto para Schelling e Hegel a verdade se
desenvolve por si mesma, por um processo dialético (que já explicamos), para
Dilthey a verdade se desenvolve pelo processo de reação vital do sujeito em
face do objeto, segundo a relação de reação vital entre o historiador que se
debruça sobre os fatos históricos e o embate da história.
Desse modo, a riqueza emotiva do historiador, ou daquele que lê a
história, enriquecerá o objeto estudado. Em cada época, a história carrega-se
da energia, das emoções dos leitores, e, assim, os julgamentos do passado são
incessantemente coloridos pelas reações vitais do historiador ou do leitor.
Desse modo, os julgamentos do passado, segundo Joseph Ratzinger, que se inspira
nessa tese, devem ao fim de cada época histórica (segundo Dilthey) ser
revisados – por exemplo, ao fim da época moderna, 1962 (o início do Concílio
Vaticano II era o fim de uma época), podiam-se e deviam-se reinterpretar, revisar
todos os fatos históricos, os julgamentos do passado, especialmente quanto à
religião – para extrair os fatos significativos e os princípios
permanentes.
Essa retrospectiva purifica necessariamente o passado daquilo que se
tinha acrescentado ao núcleo da fé, e essa revisão, essa retrospectiva agrega
necessariamente à verdade o colorido das preocupações do presente.
Portanto, há um duplo processo na releitura do passado: primeiro, a purificação
do passado, dos acréscimos adventícios, das reações emotivas do passado ou das
filosofias do passado, e, segundo, um enriquecimento dos fatos históricos
através da reação vital atual.
4.5. O discurso de Bento XVI de 22 de dezembro de
2005: ilustração do historicismo e da hermenêutica
Assim crêem as ciências humanas, e a fé não será exceção, segundo a
escola de Tübingen. A fé será submetida a esse pensamento historicista, de
que Joseph Ratzinger é herdeiro. Eis o que ele diz no seu discurso de 22 de
dezembro de 2005, o discurso inaugural do seu pontificado: “A fé exige uma nova
reflexão sobre a Verdade e uma nova relação vital com ela.” Trata-se da mesma
coisa: a relação vital de Dilthey. Ele continua: “Essa interpretação
[hermenêutica] foi a do Vaticano II: procurar uma nova relação vital com a
verdade revelada, e essa interpretação vital deve guiar a recepção do
Concílio.” Portanto, segundo Bento XVI, o Concílio foi uma interpretação vital
da fé tradicional, e para assimilar o Concílio é preciso continuar a praticar e
fazer, ainda hoje, tal interpretação vital. Por que instrumentos?
Pelas filosofias modernas, que serão, dizia João XXIII no seu discurso de
abertura do Concílio Vaticano II, que são, por seus métodos de investigação, o
grande auxílio para exprimir a fé na sua pureza linear e numa linguagem
adaptada aos nossos contemporâneos. Esse é todo o objetivo de João
XXIII, no seu discurso do Concílio, de 11 de outubro de 1962, o qual Bento XVI
cita na sua “quase” encíclica inaugural, o discurso de 22 de dezembro de 2005.
Logo, o Concílio Vaticano II tinha duplo objetivo: era preciso purificar
a fé de todos os artefatos dos séculos passados (obviamente, não estamos de
acordo com isso, é puro modernismo) e enriquecê-la com as nossas próprias
experiências atuais. Notem a subjetividade. Ofendemos nossos pais na fé dizendo
que eles desencaminharam a fé com a sua subjetividade, o que é falso, e
traímosa fé ajuntando-lhe a nossa própria subjetividade. Eis o método da
imanência do modernismo.
Portanto, João XXIII queria isto, era este o objetivo do Concílio:
purificar a fé e adaptá-la. Dois movimentos contraditórios num círculo vicioso:
purificar a fé de todos os seus artefatos passados e enriquecê-la com todas as
nossas experiências modernas.
5. RATZINGER APLICA O MÉTODO MODERNISTA A TRÊS
DOGMAS: ENCARNAÇÃO, REDENÇÃO E CRISTO REI
Vejamos como Joseph Ratzinger aplicará esse método aos três grandes
dogmas da fé católica. É a atualidade do modernismo, é atual.
5.1. O dogma da encarnação reinterpretado por
Ratzinger à luz do existencialismo de Heidegger
Primeiramente, o dogma da encarnação, reinterpretado à luz do
existencialismo. Far-se-á uso do existencialismo praticando o método da
imanência e o método do historicismo. O princípio da imanência, que diz que
tudo vem do interior (a fé vem do nosso interior), e o método do historicismo,
que diz que houve uma evolução do dogma, uma transformação do dogma.
Eis como se apresenta o dogma da encarnação de acordo com o teólogo Joseph
Ratzinger, no seu livro Fé Cristã, de 1968, segundo tese, antítese
e síntese.
– A tese: o filósofo Boécio (480-526) definiu no fim da Antiguidade a
pessoa, a pessoa humana, como um subsistente de natureza racional, permitindo o
desenvolvimento do dogma das duas naturezas de Jesus Cristo em uma só pessoa,
definido no Concílio de Calcedônia, em 451. Eis a tese, clássica. Boécio,
filósofo cristão, esclareceu a noção de pessoa e ajudou a desenvolver o dogma
de Calcedônia.
– Antítese: hoje Boécio está superado por Martin Heidegger,
existencialista alemão nascido em 1889, que vê na pessoa a auto-superação de si
mesmo, o que é mais conforme com a experiência do que o subsistente de natureza
racional. Ele prefere a auto-superação. Realizamos a nossa pessoa superando a
nós mesmos, eis a definição de pessoa segundo Heidegger.
– Conclusão, síntese: o Cristo, homem-Deus, cuja divindade professamos
no Credo, já não tem necessidade de ser considerado Deus feito homem. Ele é o
homem que, “tendendo infinitamente para além de si mesmo, superou-se totalmente
e aí se encontrou verdadeiramente. Jesus Cristo é um com o infinito” (p. 159).
Repito, porque vale a pena ler isso. Logo, é preciso crer na divindade de Jesus
Cristo, mas já não há necessidade de considerá-lo Deus feito homem. Não, é
preciso considerar que, tendendo infinitamente para além de si mesmo, Jesus
superou-se totalmente e lá se encontrou verdadeiramente. Jesus Cristo é um com
o infinito. Portanto, é o homem que se supera, que se torna super-homem e
divino. Eis o mistério da encarnação reinterpretado à luz do existencialismo e,
ao mesmo tempo, do historicismo.
Diz-se que Boécio está superado e é necessário preferir Heidegger,
porque a experiência de Boécio está superada, enquanto a experiência de Martin
Heidegger corresponde aos nossos problemas atuais, aos nossos problemas
psicológicos atuais: a auto-superação. O egoísmo vencido pela auto-superação.
Jesus Cristo venceu o egoísmo radicalmente, superando infinitamente a si mesmo,
unindo-se ao infinito.
5.2. O dogma da redenção revisto por Ratzinger
segundo a dialética de Hegel e o existencialismo de Gabriel Marcel
Em segundo lugar, o dogma da redenção revisto dialeticamente segundo
Gabriel Marcel. Será utilizado o método da dialética de Hegel e, ao mesmo
tempo, o existencialismo cristão de Gabriel Marcel. Emprega-se o método de
Hegel, o princípio de Gabriel Marcel e ainda, é claro, o princípio da
imanência. Vocês já o verão.
5.2.1. Santo Anselmo vê na cruz um sacrifício
expiatório
Desde Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), a piedade cristã vê na
cruz de Jesus Cristo um sacrifício expiatório, isto é, uma satisfação oferecida
a Deus, em justiça, para reparar os pecados, através de um ato mais agradável a
Deus do que Lhe terão sido desagradáveis todos os pecados. Questão de justiça.
5.2.2. Negação do sacrifício da cruz nos dias de
hoje
– A tese: o Novo Testamento, porém, não diz que o homem se reconcilia
com Deus, mas que Deus se reconcilia com o homem. Deus é que oferece ao homem.
Portanto, Deus exigir de seu Filho um sacrifício humano não é conforme com a
mensagem de amor do Novo Testamento. Deus não podia exigir de seu Filho um
sacrifício humano. De resto, o Antigo Testamento proibia os sacrifícios
humanos. Dito de outro modo, já não podemos nos dias de hoje aceitar que a cruz
seja um sacrifício expiatório.
Era conveniente para Santo Anselmo, mas hoje é impossível, porque nosso
conhecimento do Novo Testamento, a mensagem de amor do Novo Testamento nos diz
que Deus não pode exigir o sangue de seu Filho como um deus Moloch sedento de
sangue. Perdoem-me a blasfêmia, perdoem-me, não sou eu quem a diz, foram bispos
que disseram isso, como Dom Huyghe, bispo de Arras, há vinte anos, aplicando J.
Ratzinger, na obra coletiva intitulada Bispos Dizem a Fé da Igreja.
Então, temos esta negação: a cruz não é esse sacrifício de expiação
oferecido por um homem a Deus, pelo homem Jesus Cristo a Deus seu Pai. A cruz
não é um sacrifício expiatório.
– Antítese: essa negação, no seu absoluto, pelo seu absoluto, é tão
absoluta que produz a sua contraditória, isto é, a antítese, segundo o método
de Hegel. Com efeito, toda uma série de textos do Novo Testamento afirma, ao
contrário, a satisfação penal oferecida por Jesus em nosso lugar a Deus seu
Pai. Pode-se citar Isaías mesmo, no Antigo Testamento, ao descrever-nos o homem
de dores que carrega nossos pecados e paga a expiação de nosso pecado: “Eram os
nossos crimes o que Ele carregava, foi por causa dos nossos crimes que Ele foi
desfigurado, que Ele foi ferido” (Is., 53). Santo Isaías descrevia,
antecipadamente, a paixão de Jesus como um sacrifício expiatório, e toda a
Epístola aos Hebreus proclama o sacrifício expiatório de Jesus na Cruz.
– Síntese: a cruz transforma-se: “Jesus amou por nós.”
Assim, pois, Joseph Ratzinger é constrangido pelo mesmo absoluto da sua
negação; ele deve ao menos fornecer a contraditória. Existe toda
uma série de textos das Sagradas Escrituras que afirmam, não obstante, que a cruz
é um sacrifício expiatório. Eis o problema: como escapar da contradição? Enfim,
como negar que a cruz é satisfação por nossos pecados, uma obra de justiça
operada por Cristo em nosso lugar para fazer justiça a seu Pai, por causa dos
pecados dos homens?
5.2.3. A cruz transforma-se: Jesus amou por nós
Síntese de Joseph Ratzinger: na cruz, Jesus nos substituiu, é verdade.
Não para quitar uma dívida, nem sequer para pagar uma pena, mas para “amar por
nós”. Portanto, Jesus na cruz nos substitui para amar por nós. A cruz é isto:
Jesus amou por nós. Por nós, que já não podíamos amar (não se sabe bem por quê;
estávamos longe de Deus, já não podíamos amar). Na cruz, “o Cristo amou por
nós” (Fé Cristã, p. 202)
E assim se recupera a tese, enriquecida da antítese. É a
dialética de Hegel. A verdade deve progredir na história por uma tese que,
mediante sua afirmação, produz sua contradição, antítese, e essa contradição
vem finalmente enriquecer a tese numa síntese. Portanto, a síntese: há, sim,
uma substituição de Jesus Cristo, em nosso lugar, na cruz, mas simplesmente
para amar por nós. E vocês podem notar que nessa dialética de Hegel, aplicada à
fé, a tese e a antítese são verdadeiras, mas contraditórias; são verdadeiras, e
ambas fazem parte da verdade. Assim, aceita-se a contradição nas coisas; ela
não é solucionada, mas integrada por uma síntese. A negação do início, Jesus
não ofereceu um sacrifício expiatório, e, a seguir, o fato de existir apesar
disso uma série de textos que dizem que a paixão é um sacrifício expiatório
conciliam-se ou, pelo menos, caminham juntos na síntese: Jesus se põe no nosso
lugar, ama por nós. Ele nos substitui para amar por nós.
O que não é falso: Jesus tem uma caridade infinita, que é a alma do seu
sacrifício. Mas não é tudo: Jesus pagou duramente a pena dos nossos pecados;
logo, a heresia consiste na negação. A afirmação é correta: Jesus amou por nós,
mas isso não é o suficiente; a heresia consiste na negação da pena suportada
por Jesus voluntariamente por nós na cruz.
5.2.4. A cruz torna-se mera exemplaridade
E, assim, vejam que segundo Hegel e segundo Joseph Ratzinger nada impede
essa síntese, no futuro, de tornar-se uma tese que, por seu absoluto, produza
uma nova antítese, que exigirá uma nova síntese; e assim poderá o dogma
evoluir. Nossa concepção da redenção poderá evoluir ainda, indefinidamente.
Resultado: vou citar um pouco Joseph Ratzinger, sobre a
redenção: “O sacrifício cristão não é outra coisa senão o êxodo do ‘por’ que
consiste em sair de si, realizado completamente no homem, que é
todo êxodo, superação de si por meio do amor” (p. 203) (são categorias
existencialistas: a saída de si, o êxodo). Portanto, a paixão do Cristo não
opera a nossa salvação por mérito (não se fala dos méritos de Jesus Cristo, dos
seus sofrimentos), nem por satisfação (não se fala da pena de Jesus, nem,
portanto, da remissão obtida dos nossos pecados), nem por sacrifício (não se
fala do sacrifício da cruz), nem por eficiência, eficácia, à maneira de uma
causa eficiente, nada do que Santo Tomás, entretanto, proclama na sua Suma
Teológica. Não, a paixão de Jesus Cristo operou a nossa salvação por mera
exemplaridade do dom absoluto de si. Quer dizer, trata-se de um
exemplo extraordinário de dom absoluto de si. Logo, como exemplo de dom de si,
a paixão opera a nossa salvação.
5.2.5. A cruz é desmaterializada, torna-se uma
idéia platônica; Jesus é descrucificado
Eis o dogma da redenção: a cruz é uma idéia platônica, mero exemplar.
Exemplar de quê? De qualquer coisa interior a mim, o dom de mim. O que não é
falso: o dom de si é a caridade. Mas notem o erro: a cruz torna-se apenas um
exemplar do dom de si. A cruz é despojada de toda a sua carga de sofrimento, de
opróbrios suportados por Jesus. A cruz é desmaterializada. Jesus é descrucificado.
Não resta nada senão o amor.
A cruz é um símbolo do dom de si, pouco importa a materialidade dos
sofrimentos de Jesus. O importante é o valor de evocação de meu dever de doar a
mim mesmo. A cruz torna-se uma idéia platônica.
Continuo a citar Joseph Ratzinger: “A partir dessa revolução na idéia de
expiação” (Jesus não expia pagando uma pena, mas amando em nosso lugar; é uma
revolução, diz ele, na idéia de expiação: não se fala de pena ou de penitência
ou de sacrifício, somente de dom de si e de amor; ao menos é mais “valorizador”
e positivo), “e, portanto, no eixo mesmo da realidade religiosa, o culto
cristão e toda a existência cristã recebem também uma nova orientação” (p.
199).
O culto cristão e a existência cristã, e portanto toda a vida cristã e
toda a liturgia, serão afetados por essas idéias platônicas. Vou mencionar algo
acerca deste assunto: trata-se da missa nova. O padre François
Knittel mostrou-nos que as orações do novo missal já não falam de combate
cristão contra os inimigos, contra si mesmo; já não há penitências, já não há
expiação, basta amar. Resta o amor. Isso não é falso. O amor é a alma da
penitência, mas não se pode desmaterializar a vida cristã e esquecer o aspecto
penitencial, o aspecto cotidiano, o aspecto de vencer-se a si mesmo, de
carregar sua cruz e seguir a Jesus Cristo. É isso o que diz Jesus no Evangelho.
5.2.6. O sacerdócio é reduzido ao poder de ensinar
Logo, como podem ver, toda a existência cristã recebe uma nova
orientação, e o culto cristão também: é a missa nova. A missa nova torna-se a
celebração comum da fé. Já não é uma oferta a Deus, uma ação separada da do
povo, mas uma ação de comunhão interpessoal, uma experiência comum da fé, a
celebração dos grandes feitos de Jesus. Por outro lado, paralelamente, o sacerdócio
“ultrapassou o plano da polêmica”, que, no Concílio de Trento, havia estreitado
a visão do sacerdócio, vendo-se o padre apenas como mero sacrificador (Sessão
XXIII, decreto sobre o sacramento da ordem). O Concílio de Trento estreitara a
visão global do sacerdócio; o Vaticano II alargou-lhe as perspectivas. Cito
então Ratzinger: “O Vaticano II, felizmente, ultrapassou o plano da polêmica e
traçou um quadro completo e positivo da posição da Igreja a respeito do
sacerdócio, no qual foram igualmente acolhidas as petições da Reforma” (Os
Princípios da Teologia, p. 279). Vocês entenderam bem: as petições da
“Reforma” protestante, que via o padre como o homem da palavra de
Deus, da pregação do Evangelho, e ponto.
Assim, diz Joseph Ratzinger, “a totalidade do problema do sacerdócio se
reduz, em última análise, à questão do poder de ensinar na Igreja, de maneira
geral” (Os Princípios..., p. 279). Ele reduz, desse modo,
todo o sacerdócio ao poder de ensinar na Igreja. Não vai negar o sacrifício;
apenas diz: “tudo se reduz ao poder de ensinar na Igreja.” Logo, a própria
oferenda da missa pelo padre deve ser relida numa perspectiva de ensinamento da
palavra de Deus. É necessário reinterpretar o sacerdócio, o sacrifício mesmo, a
consagração mesma: isso não é nada mais que a celebração dos grandes feitos de
Cristo, sua encarnação, sua paixão, sua ressurreição, sua ascensão, vividos em
comum, sob a presidência do padre. O sacerdócio foi reinterpretado. O padre
tornou-se o animador da celebração e da vivência comunitária da fé. Isso foi
apenas um parêntese para lhes mostrar como as idéias de Joseph Ratzinger de
1967 foram efetivamente aplicadas no Concílio Vaticano II, porque é o que
encontramos no decreto sobre o sacerdócio.
5.3. A realeza política e social de Nosso Senhor
Jesus Cristo revista por Ratzinger a partir do personalismo de Emmanuel Mounier
Vejamos agora Cristo Rei, o direito de Jesus de impor sua lei às leis
civis, o dever do Estado e da sociedade civil de seguir a lei de Jesus Cristo,
sua realeza social. Ora, Cristo Rei será também purificado, numa visão
historicista, pelo personalismo. Já não se trata do existencialismo, mas do
personalismo, com Emmanuel Mounier (1905-1950), um cristão francês.
A tese: o personalismo de Emmanuel Mounier foi a ferramenta que faltou a
Lamennais no século XIX para introduzir a liberdade de culto no cristianismo.
Quis Lamennais introduzir a liberdade de culto na doutrina cristã. Por essa
razão, ele foi condenado em 1832 pela encíclicaMirari vos, de Gregório
XVI. Diz Yves Congar: Por quê? Porque Lamennais não conhecia, não tinha a
ferramenta que Emmanuel Mounier forneceria um século depois: o personalismo.
Faltou-lhe a ferramenta necessária para introduzir a liberdade de culto no catolicismo.
Antítese: basta utilizar hoje essa ferramenta, purificando e corrigindo esse
valor da liberdade religiosa, valor de dois séculos de cultura liberal, como
dizia Joseph Ratzinger em 1984.
Não se fará apoiar a liberdade religiosa
na verdade do culto, afirmando que somente a verdadeira religião tem direito à
liberdade, mas sim no sólido fundamento da dignidade da pessoa humana, sobre “a
verdade da pessoa”, como dizia João Paulo II na Veritatis Splendor,
n. 40.
Desse modo, a liberdade dos cultos já não se apóia na verdade do culto,
na realidade objetiva do culto praticado (trata-se de uma religião falsa ou
verdadeira?); mas apóia-se na verdade da pessoa, isto é, no agir livre e
responsável de cada um, em virtude de suas próprias opções, como dizia Emmanuel
Mounier. O Concílio inspirou-se em Emmanuel Mounier ao dizer que, hoje, nossos
contemporâneos tomam incessantemente consciência da dignidade da pessoa, e cada
um reivindica a vantagem de agir em virtude de suas próprias
opções. Quase uma citação literal de Emmanuel Mounier, e nessa idéia se
constrói a base da liberdade religiosa, do direito à liberdade
religiosa.
Substitui-se assim a verdade objetiva do culto, a saber, o verdadeiro
culto católico, que é da única religião verdadeira, razão por que as outras
religiões não são religiões e não podem ter direitos. Substitui-se pela
pretensa verdade da pessoa, isto é, pela subjetividade da pessoa. A liberdade
de agir que a pessoa reivindica em virtude das suas próprias opções, segundo a
imanência. De acordo com Emmanuel Mounier, eu me realizo, eu realizo minha
pessoa pelas minhas próprias opções, pelas minhas próprias escolhas de vida,
independentemente da verdade ou do erro em que eu possa incorrer, pois o que
importa é agir em virtude das minhas próprias opções: isso é Emmanuel Mounier.
Põe-se entre parênteses a verdade ou o erro. Não se negará que existe uma
verdadeira e uma falsa religião. Simplesmente isso não nos interessa. O método
é sempre o mesmo. Considera-se somente o interior. Agir em virtude das minhas
próprias soluções.
Dessa forma, vocês podem notar muito bem a reinterpretação de Cristo
Rei, cuja palavra se cassou, e que foi destronado, porque agora é a pessoa
humana, agindo segundo as suas próprias opções, que fundamenta o direito da
liberdade religiosa, o direito de praticar na sociedade civil o culto de sua
escolha. Foi o que o Vaticano II ensinou na Dignitatis Humanae, a
declaração sobre a liberdade religiosa.
6. CONCLUSÃO: UM SUPERMODERNISMA CÉTICO: OS DOGMAS
SÃO APENAS SÍMBOLOS PARA RATZINGER
Para concluir, eu diria que estamos às voltas com um modernismo
aperfeiçoado, um supermodernismo cético. Os modernistas consideravam os dogmas
como meros símbolos. Hoje não se nega a verdade, não se nega o mistério,
ninguém se torna francamente ateu ou herético, não, simplesmente põe-se entre
parênteses Deus, a encarnação real, a redenção real, Cristo Rei real. Põe-se
tudo isso entre parênteses. O que interessa é que esses símbolos evocam meus
problemas psíquicos e me ajudam a resolver meus problemas existenciais.
6.1. O Deus de Emmanuel Kant
Cem anos antes da Pascendi, Kant já via nos dogmas meros
símbolos de idéias morais (se vocês lerem Kant, verão que interessante; ele
escreveu uma pequena obra intitulada A Religião nos Limites da Simples
Razão). Kant já via nos dogmas meros símbolos de idéias morais. Dou-lhes
alguns exemplos: a trindade, para Kant, simboliza a união em um só ser de três
atributos: a santidade, a bondade e a justiça. Vejam a reinterpretação da
Trindade por Kant: um mero símbolo moral, coisas morais: a santidade, a bondade
e a justiça. Do mesmo modo, para Kant, o filho de Deus encarnado (ah,
interessante isto!) não é um ser sobrenatural, é um ideal moral, o de homem
heróico. Aí está a inspiração de Joseph Ratzinger: o homem que se supera a si
mesmo e chega ao infinito; um ideal moral.
E à idéia de inferno, dizia Kant, não é necessário conceder mais que um
valor regulador de minhas ações; serve para o temor, serve para praticar a
virtude. Não quer dizer que o inferno exista. Põe-se entre parênteses. Para
Kant os dogmas são meros símbolos: essa é a essência do modernismo. Logo, cem
anos antes do modernismo, ele já existia; apenas estava fora da Igreja. Kant
não era católico, mas protestante. Cem anos depois, é um padre católico, mas
logo excomungado, Alfred Loisy, quem elabora as mesmas teorias que São Pio X
denunciou em 1907.
6.2. O Deus de Kant é o Deus de Ratzinger
E cem anos depois da Pascendi, em 2007, são teólogos
católicos, entre os quais um futuro papa, infelizmente, que, imbuídos de toda a
filosofia do século XIX e XX, desencarnam, descrucificam e destronam Jesus
Cristo. Mas a fé subjetiva deles “debate-se nas ondas da dúvida” de que fala Joseph
Ratzinger na obra Fé Cristã (pp. 11-12). Essa fé quer
experimentar Deus em vez de aderir simplesmente a Deus; essa fé se entrega à
razão filosófica em vez de confiar-se à autoridade de Deus, que revela; essa fé
é debilitada por suas razões humanas. Debate-se nas ondas da dúvida, pois
Joseph Ratzinger diz que o crente, assim como o descrente, está sempre ameaçado
pela dúvida a respeito da sua posição: “O crente estará sempre ameaçado pela
descrença, e o descrente estará sempre ameaçado pela fé” (Fé Cristã, p.
11). Tal crente já não pode propor ao mundo sem Deus, a um mundo
sem Deus em perigo de perder-se, como meio de salvação, senão um Deus ideal e
hipotético: o Deus de Emmanuel Kant, um Deus “do qual não se saberia afirmar se
existe fora do pensamento racional do homem” (Kant, Opus postumum,
Convolutum VII).
Na época das Luzes, buscava-se estabelecer leis universais que fossem
válidas ainda que Deus não existisse; hoje, aconselha Joseph Ratzinger, seria
necessário mudar essa palavra de ordem e dizer: “Ainda que não se consiga
alcançar a via de aceitação de Deus, dever-se-ia tentar viver e conduzir a vida
como se Deus existisse” (Conferência em Subiaco, 1° de abril de 2005, pouco
antes de ser eleito Papa). Eis a solução social para instaurar a ordem no mundo:
“O homem deveria tentar viver e organizar a sua vida como se Deus existisse”;
não porque Deus existe e Jesus Cristo é Deus. É pois de um ceticismo
apavorante, que nos indica a realização última do modernismo. O
modernismo conduz ao ceticismo, isto é, a cristãos que já não são seguros
daquilo em que crêem, que se contentam em aconselhar: viva como se cresse!
6.3. Em face do supermodernismo, o remédio
encontra-se em Santo Tomás de Aquino
Enfim, meus caros amigos, eis que a Pascendi é mais que
nunca atual em face desse agudo acesso de modernismo que afeta no
presente a própria cátedra de Pedro. Ora, a pastores e fiéis aPascendi prevenia-nos
contra esse contágio mortal, e para essa falsa filosofia indicava-nos o
remédio: Santo Tomás de Aquino.
O grande remédio protetor para conservar a fé sã, a verdadeira noção de
fé sobrenatural, o firme assentimento da inteligência à verdade divina recebida
do exterior, apoiando-se na autoridade mesma dessa divina verdade, é Santo
Tomás de Aquino, que deu essa simples definição de fé. Ora, nele temos o grande
instrumento protetor da fé. Com efeito, porque essa fé objetiva católica
concorda perfeitamente com a filosofia de Santo Tomás de Aquino, é que São Pio
X prescreveu aos futuros padres “o estudo da filosofia que nos
legou o Doutor Angélico”. Eu concluiria, enfim: a essa febre cética que afeta
as mais altas autoridades da Igreja no presente, nós preferimos o fervor
tomista.
* Conferência dada no Simpósio Pascendi (9,
10 e 11 de novembro de 2007, Paris). Tradução: Renato Romano.
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