Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa
Aquele que ama a correção, ama a
ciência,
mas o que detesta a reprimenda é um
insensato (Prov. 12, 1)
Uma das
tolices mais irritantes que se ouvem hoje em diversos ambientes pentecostais e
progressistas é que Deus não castiga porque Deus é amor. Que coisa mais bonita!
Que coisa mais melosa! Que coisa mais cretina!
Outra coisa
ridícula e estulta que se ouve com freqüência, vinda dos arraiais
progressistas, é que o Deus do Antigo Testamento é um Deus diferente do Novo
Testamento.
O mistério de
Deus excede a razão humana, mas não a contradiz. Quando crê em Deus, o homem
não descarta o uso da razão; pelo contrário, esta lhe diz que é razoável crer,
que há motivos para crer. A fé é uma luz que aperfeiçoa a razão. Ademais, seja
dito de passagem, a existência de Deus não é artigo de fé, mas dado da razão.
Se alguém não alcança a Deus pela razão, nada impede que nele creia movido pela
graça e tocado ao menos por argumentos de conveniência.
Basta usar um
pouco a inteligência para concluir que não tem cabimento afirmar a existência
de Deus criador do homem livre e racional, dotado de alma espiritual e imortal
e, ao mesmo tempo, dizer que Deus não pune ninguém.
Como ensina a
Dogmática, o conhecimento que temos de Deus é um conhecimento analógico. Quer
dizer, por comparação com as obras criadas, podemos conhecer a Deus e seus
atributos, não em sua forma própria, mas de forma estranha, tal como moldada
nas criaturas. (Cf. BARTMANN, Teologia Dogmática, v. p. 146,
São Paulo, 1962). Isto nos permite evitar tanto o erro do antropomorfismo
quanto uma total desantropomorfização incompatível com o dado da revelação e o
mistério da Encarnação do Verbo.
Pois bem, se
Deus é pai e todo pai bom e educador castiga e corrige seus filhos para o seu
bem, como não castigará Deus o homem, seu filho, para seu bem e salvação? A
Sagrada Escritura contém várias passagens com essa doutrina. Por exemplo, o
Apóstolo São Paulo, citando Provérbios, diz na Epístola aos Hebreus: “Filho
meu, não desprezes a correção do Senhor. Não desanimes, quando repreendido por
ele; pois o Senhor corrige a quem ama e castiga todo aquele que reconhece por
seu filho (Prov. 3, 11s.).”
Por
outro lado, cumpre lembrar o que diz Santo Tomás em seu comentário à Epístola
de São Paulo aos Romanos. Explicando as maldições que há na Sagrada Escritura,
diz o Angélico que se devem julgar as coisas não segundo a sua matéria mas
segundo sua forma (Cf. Super Epistolas, Ad Romanos, c. XII, lectio III).
De modo que se pode dizer que o mal, enquanto castigo, não tem razão de mal mas
de bem.
Do
esquecimento dessa verdade decorre hoje uma nova religiosidade que quer um
cristianismo sem cruz, sem sofrimento. É por isso que se vê tanto abuso na
pratica das chamadas missas de “cura e libertação”. Já não se aceita o
sofrimento como uma prova permitida ou querida por Deus, mas sempre como um mal
vindo do diabo.
Hoje há uma
verdadeira heresia em torno da revelação cristã de que Deus é amor. O amor
pressupõe a inteligência que ilumina a vontade com o bem a ser amado. Deus ama
porque antes é razão. Deus cria livremente, porque antes é inteligente. Ama
tudo aquilo que criou com medida, número e peso (Sab. 11, 21). Sua obra, antes
de ser reflexo da sua bondade, é reflexo da sua inteligência. Na mente divina
existe, desde toda eternidade, o projeto da criação, que tem início no tempo,
como manifestação da sua bondade e onipotência. E seu amor – também nos ensina
a teologia dogmática – não é expressão da sua vontade mas do seu ser.
A criação
divina constitui uma ordem. Essa ordem expressa, sobretudo, inteligência e
sabedoria. Opondo-se a todo bom senso, a filosofia voluntarista nega a
inteligência anterior à vontade em Deus, o que tem conseqüências desastrosas em
vários campos.
Na perspectiva
voluntarista, como todas as coisas dependem exclusivamente da vontade divina
sem nexo com a sua inteligência, não só as ações humanas tendem a ser
arbitrárias, mas também a própria idéia que se faz do juízo divino é uma idéia
ilusória, reduzindo-se a um juízo destituído de qualquer elemento racional.
Deus poderia fazer um Decálogo ao contrário e seria bom, porque procedente da
sua vontade. Ora amor sem razão é um absurdo.
Os frutos
amargos de todas essas distorções teológicas são perceptíveis. Um deles,
parece-me, é a decadência da atual educação. A educação – ou deseducação – que
se dá hoje às crianças e aos jovens, é uma satisfação de caprichos da vontade
ou vaidade dos pais e dos filhos. Não visa mais à perfeição e aquisição das
virtudes conforme o conhecimento da verdade.
O deus
caprichoso, que muda de feição do Antigo para o Novo Testamento, da dureza para
a moleza, de acordo com a nova exegese pentecostal,inspira o relaxamento da
nova educação.
Não é em
vão que a Igreja tradicionalmente procurou guiar e mediar a leitura da Sagrada
Escritura para evitar erros e subjetivismos na sua interpretação. Não são dois
deuses opostos o do Antigo e do Novo Testamento. Mas o mesmo Deus, eterno e
imutável que no tempo age como um pai ou pedagogo, adaptando-se às condições
dos seus filhos. Nosso Senhor não veio abolir a lei mas completá-la e
aperfeiçoá-la, o que significa torná-la ainda mais rigorosa: “Não cometerás
adultério. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que lançar um olhar de cobiça para
uma mulher já adulterou com ela em seu coração” (Mt. 5, 27-29).
Como bem
observa Santo Agostinho, o Antigo Testamento não ameaça com a pena eterna do
inferno, mas o Novo Testamento a comina em várias passagens: “Nosso Senhor
Jesus Cristo quis que fosse mais suave a disciplina uma vez revelado o Novo
Testamento. Todavia, é mais atroz a ameaça do inferno, a qual não lemos entre
as ameaças de Deus no governo daqueles tempos.” (Super Psalmos, Ps. 105). Quando
diz que a disciplina do Novo Testamento é mais suave, o santo doutor refere-se
ao conteúdo do salmo 105 que recorda os castigos temporais impostos ao povo
hebreu por causa da sua rebeldia e murmuração.
Resumindo essa
doutrina em termos teológicos precisos, diz Renié, em seu Manueld’Ecriture
Sainte, : “Sem dúvida, a lei mosaica é inferior à lei evangélica: é que
Deus, como um sábio pedagogo, conduziu a humanidade indo do menos perfeito ao
mais perfeito. Jesus não ab-rogará a lei de Moisés, transforma-la-á,
aperfeiçoa-la-á (Mt. 5,17). Se por si mesma a lei do Sinai não produzia a graça
na alma e só conferia uma purificação exterior, ela contribuía no entanto para
a justificação e por seus ritos expressivos reavivava a fé no Messias, de quem
vinha a salvação verdadeira (...). Quanto à sua excelência, ela resulta da sua
própria perenidade, porquanto ela está ainda na base das nossas civilizações
modernas.” (Renié, Emmanuel Vitte, Paris, 1941).
Para remate
dessas reflexões, diria apenas que uma das providências urgentes a serem
tomadas para impedir dissolução da doutrina sagrada, a redução do catolicismo à
religião sem dogmas, a um vago, indefinido (e cretino) sentimento de amor é,
sem dúvida, a Igreja voltar a ser mais vigilante sobre a leitura da Sagrada
Escritura. Esta tem de ser precedida por criterioso estudo do catecismo,
mediada pela tradição, pelo magistério e pela liturgia da Igreja. Tudo isto
implica uma série de medidas concretas. A reforma litúrgica, inflacionando a
leitura de textos bíblicos nas missas, inclusive com passagens de difícil
interpretação, criou uma situação embaraçosa segundo análise do erudito cardeal
Stickler. Aguçou um interesse entre os leigos, para não dizer uma curiosidade,
pelas Sagradas Escrituras, que envolve perigos graves para a integridade da fé
católica. Além disso, há um incontestável despreparo do clero formado após o
Vaticano II – prejudicado pela degradação dos estudos na maioria dos seminários
– para explicar aos fiéis as passagens da Sagrada Escritura lidas na santa
missa. Se por um lado a reforma litúrgica multiplicou o número de leituras
bíblicas, por outro lado censurou os chamados salmos imprecatórios, explanados
de forma admirável por Santo Agostinho. Como se sabe, referidos salmos em
linguagem contundente profetizam terríveis desgraças que cairão sobre o pecador
impenitente como se fossem votos. Empregados na liturgia tradicional, seja na
missa na forma de intróito ou no breviário como antífona, esses salmos recordam
ao cristão a justiça divina. Certamente, não foi inócua sua supressão. Lex
orandi, lex credendi. Se uma verdade de fé deixa de ser exposta pela
liturgia, com o tempo será negada ou esquecida. Por exemplo, a tradução
mutilada do cânon romano, suprimindo a expressão “eterna danação” é uma das
causas de hoje não ser negado o inferno. Não é à toa que o cardeal Ratzinger
disse que a reforma litúrgica é uma das causas da crise da Igreja em nossos
dias.
Anápolis, 28 de outubro de 2008
Festa de São Simão e São Judas Tadeu,
Apóstolos
Fonte: Deus castiga-Pe João Batista -
Associação Civil Santa Maria das Vitórias
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