"Vamos imaginar que em 100 anos os homens, atingidos por uma enfermidade desconhecida, viessem a se tornar anões. Que decepção! Por mais que as conquistas da ciência e o desempenho da economia fossem expressivos, esse século ficaria marcado como catastrófico."
Na majestosa galeria dos séculos que se foram, o século atual vai figurar como “o igualitário”
Leo Daniele
Dentro de um muito curto espaço de tempo, o tão glorificado
século XX vai ser “o século passado”. Salvas sem fim de fogos de artifício
saudarão a nova centúria e milênio.
Ao mesmo tempo, soa a hora da verdade. Como é natural,
muitos espíritos, num saudável exercício de análise, vão se debruçar sobre
estes 100 anos, e perguntar de que valeram.
Nossa época, como qualquer época da História, pode ser
julgada, entre outras coisas, através do tipo humano que gerou. De pouco
adianta conquistar a lua e todas as estrelas, desvendar o micro-universo do
átomo, efetuar todas as proezas da tecnociência, atingir um grau de
enriquecimento prodigioso numa estabilidade econômica completa, se ao mesmo
tempo o tipo humano entrar em visível decadência. Pois o que interessa
sobretudo ao homem, abaixo de Deus, é o próprio homem.
Vamos imaginar que em 100 anos os homens, atingidos por uma
enfermidade desconhecida, viessem a se tornar anões. Que decepção! Por mais que
as conquistas da ciência e o desempenho da economia fossem expressivos, esse
século ficaria marcado como catastrófico.
Felizmente, no século XX isso não ocorreu, no aspecto
físico. Que dizer da alma humana e da personalidade? É a pergunta.
Vou, “a vôo de pássaro”, analisar o futuro século passado do
ponto de vista do tipo humano que ele engendrou.
“Belle époque”, “ouverture” que se transformou em “finale”
Estes 100 anos iniciaram-se de forma promissora. A Belle
Époque não foi uma época sem defeitos. Mas se notava, na juventude de então, um
vento de idealismo e de talento, uma tal ou qual tendência ao cavalheirismo, à
firmeza de princípios, ao heroísmo, à nobreza de sentimentos.
As trincheiras da I Grande Guerra dizimaram a mocidade
européia. Ao mesmo tempo, a influência avassaladora da way-of-life americana,
isto é, o modo de vida adotado nos Estados Unidos, consagrada pela vitória
militar dos aliados, e tomada especialmente em seus aspectos hollywoodianos, a
saber, inspirados nos estilos difundidos pelos filmes de Hollywood, operava uma
espécie de Revolução Cultural, abalando a civilização tradicional do Velho
Mundo.
As promessas do início do século foram afogadas em um banho
de sangue, e simultaneamente – perdoem os leitores a trivialidade da expressão
– em um “banho de coca-cola”, ou seja, na força dissolvente dos novos costumes
(1).
Mesmo assim e apesar de tudo, a chama de idealismo
cavalheiresco não morrera de todo. Era necessário extinguir aqueles vestígios
que ainda incomodavam a Revolução universal. O nazi-fascismo apareceu para
empolgar e precipitar no vazio o que deles ainda restava.
De seu lado, o comunismo operou uma ainda mais desastrosa
modificação no tipo humano – modelando um ente humano ateu, massificado,
anódino e embrutecido, a qual perdura até hoje nos locais onde dominou,
sobretudo na Rússia (2).
Terminada a II Guerra Mundial, desencadeia-se o processo
cujas principais fases se podem observar no quadro ao lado. Ele desfecha na
eclosão do tipo humano que se convencionou chamar de pós-moderno.
O tipo humano
pós-moderno
Voltado cada vez mais para dentro de si mesmo, carente do
senso da sociedade, o homem pós-moderno afunda no vazio. No prazer de ser um
qualquer.
A vida pós-moderna apresenta ao homem três elementos
principais para preencher o imenso e lúgubre vazio de hoje: 1) a saturação
informativa; 2) o frenético consumo ao modo pós-moderno (nota 2 BIS); 3) a
sedução da mais desbragada imoralidade. Os três fatores o enchem, se assim se
pode dizer, de vazio.
O homem contemporâneo vai, assim, cada vez mais se
minimizando, se miniaturizando. Tudo torna-se pequeno, acanhado, agachado, sem
grandeza. Ele tende a ser a raiz quadrada do homem do início do século.
Totalmente dominado pelas pequenas delícias, ele torna-se
apático. “Cada qual vive em um bunker de indiferença”, diz um autor (3).
Ocorreu uma miniaturização do desejo humano. Qualquer
quinquilharia produzida pela tecnociência já preenche suas perspectivas. Muitas
vezes, aquilo que reluz num shopping-center basta para saciar sua capacidade de
desejar. Suas micro-aspirações satisfazem-se inteiramente com micro-objetos.
Para o homem pós-moderno quase só existem duas coisas: o
“eu” e o “agora”.
É curioso, mas a mídia quase não aborda tal fenômeno.
Entretanto, no mundo das idéias e dos livros muito se tem escrito sobre o tema.
Os títulos de algumas obras deixam filtrar seu conteúdo: A escalada da
insignificância, de Castoriades; A era
do vazio, de Gilles Lipovetsky; A derrota do pensamento, de Alain Finkielkraut, A morte do social, de
Jean Baudrillard…
Entre os autores católicos, podemos encontrar teses
semelhantes por exemplo em A civilização da acédia, do jesuíta Pe. Horacio
Bojorge.
Nos livros e na realidade, o homem vai sendo cada vez menos
o que sempre foi. Alguns autores usam a palavra zumbi. Diz-se homo
psychologicus (mergulhado na própria psicologia); homo clausus (fechado em si);
homo aequalis (homem igualitarizado, se assim se pudesse dizer). Mas não se
fala quase mais em homo sapiens!
Com evidente mas expressivo exagero, chega-se a falar em
mutação antropológica (4). De certa forma, o homem não é mais o mesmo; mas como
ele foi se transformando aos poucos, muitos nada percebem.
* *
*
Como surgiu a massa pós-moderna
O tipo humano
“pós-moderno”, de nossos dias, é o produto de uma longa gestação, que consumiu
várias décadas.
1918: após a Primeira
Grande Guerra a influência cultural norte-americana, tomada em seus aspectos
mais “hollywoodianos”, torna-se proeminente.
Fim dos anos 20:
surgem nessa época os primeiros sintomas do fenômeno “geração-nova”, também
conhecido em alguns ambientes como “geração coca-cola”. Notam-se, no tipo
humano que vinha despontando, certas fragilidades, as quais provocam estranheza
nas gerações anteriores. Dir-se-ia que minguavam nele as capacidades próprias
ao estado adulto pleno: a atenção, a compreensão, a direção e a autocensura.
Anos 50: ocorre a
grande revolução do lazer e do quotidiano, provocada pelo rock-and-roll, a
beat-generation, seus anexos e conexos. Como explica o Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira, surgiu então “um feitio de espírito que se caracteriza pela
espontaneidade das reações primárias, sem o controle da inteligência nem a
participação efetiva da vontade; pelo predomínio da fantasia e das ’vivências’
sobre a análise metódica da realidade”.
Maio de 1968: estoura
a revolução estudantil da Sorbonne. Com o dístico “é proibido proibir”,
alteia-se a bandeira negra anarquista e reforça-se ainda mais a tendência para
a “espontaneidade das reações primárias”. Note-se: foi uma revolução de classe
média.
1989: o desmoronamento
da Cortina de Ferro contribuiu para incrementar certo clima de despreocupação e
otimismo extremado.
Anos 90: O
individualismo, o hedonismo e o narcisismo pós-modernos se estabelecem por toda
a parte. A massa pós-moderna prossegue em sua expansão flácida, pouco
perceptível, mas extremamente rápida.
Zero é igual a zero
Reduzida a natureza humana à menor expressão, a conseqüência
lógica é o achatamento de todas as diferenças entre os homens. Vejamos alguns
exemplos.
A palavra unissex, tão corrente, mostra a tendência à fusão
dos sexos, quanto o permita a natureza. Chegar ao meio termo em todos os campos
é a grande obsessão.
Do ponto de vista racial, a ONU fala em promover “o homem
bege”, ou seja, a média cromática entre o branco, o preto, o vermelho e o
amarelo. O homem arroga-se assim o direito de corrigir o que considera um erro
da natureza… Ora, a natureza é uma obra de Deus. Corrigir a natureza significa
tentar corrigir o próprio Deus!
Também vão diminuindo cada vez mais as diferenças entre pais
e filhos, bastardos e filhos legítimos, esposas e concubinas, mães de família e
prostitutas, homens normais e tarados, bêbados e sóbrios, professores e alunos,
padres e leigos, patrões e empregados, ricos e pobres, bem educados e
cafajestes, índios e caras-pálidas, civilizados e bárbaros. Numa outra ordem de
coisas, entre história e devaneio, fato e versão, realidade e ficção, música e
ruído, obras de arte e brincadeiras de mau gosto, quando não verdadeiras
aberrações do ponto de vista artístico.
Escrevem-se livros para mostrar que a sanidade mental é um
conceito relativo; os loucos, eufemisticamente designados como usuários de
serviços psiquiátricos, seriam pessoas normais, tendo apenas algumas pequenas
manias ou uma concepção da vida diversa da dos outros.
Até as mais óbvias entre as diferenças, ou seja, as
existentes entre os homens e os bichos, vão se amortecendo. Fala-se cada vez
mais em direitos dos animais, constroem-se hotéis para gatos, escovam-se os
dentes de cachorros (5).
Como diz Fredric Jameson, assistimos a uma formidável erosão
dos contornos (6). Ora, essa erosão dos contornos atinge o homem em seu cerne,
em sua personalidade, transformando-o quase num semi-homem.
Pense comigo, leitor. É uma lei da natureza que tudo aquilo
que se desenvolve se diferencia. A marcha da semente à árvore florida e depois
cheia de frutos é a marcha da diferenciação. As sementes de uma mesma espécie
se confundem. Mas as árvores já formadas, a produzir flores e frutos, são nitidamente diversas uma da outra. E
assim sucede com todos os seres vivos. Marcadamente com os animais superiores.
E, de maneira exponencial, com os homens.
Considerem-se aquelas estátuas da Ilha de Páscoa. Produzidas
por artistas primitivos, elas se parecem todas entre si. Mas se um Michelangelo
lhes tivesse dado acabamento, elas deixariam de se confundir e cada uma
constituiria obra-prima à parte.
Da mesma forma, seria normal que, com o desenvolvimento da
humanidade, os homens – mantendo embora a igualdade de natureza – fossem se
diferenciando cada vez mais em seus acidentes. Ora, é o contrário o que hoje
sucede: eles vão se confundindo cada vez mais. Não apenas as hierarquias se
achatam, como as próprias diferenças vão progressivamente se extinguindo.
Essa constatação mostra o quanto vai calamitosa a decadência
do gênero humano enquanto tal.
Balanço no limiar do
ano 2000
Todo o agitar-se do século XX pode resumir-se, sob certo
ponto de vista, em duas tendências principais:
Achatar as diversidades existentes no sentido vertical,
reduzindo ao mínimo todas as diferenças que possam levar à constituição de uma
hierarquia, de fato ou de direito.
Abater as diversidades que separam as pessoas no plano
horizontal, despersonalizando-as com esse fim. Para isso, fazer minguar as
barreiras entre os sexos, as idades, as raças, as nacionalidades, as condições
de ordem moral, de educação, civilização, preeminência, função.
Utopia? Certamente. Mas uma utopia radicalmente perversa,
porque ela se revolta contra Deus, Criador das características e das
diferenças.
É como quem diz: “Sei que não poderei destruir inteiramente
esta Catedral que é o Universo. Mas vou tentar destruí-la e desfigurá-la tanto
quanto me for possível”.
As duas tendências enumeradas acima – o achatamento vertical
e a indiferenciação horizontal — não são antagônicas mas, pelo contrário,
constituem uma única e mesma propensão:
o igualitarismo.
E, pronunciada essa palavra, proferido esse diagnóstico,
como por encanto todos os acontecimentos confusos do século expirante
colocam-se em ordem:
Foi o igualitarismo que abateu, no fundo das trincheiras, a
promissora juventude da Belle Époque;
Foi o igualitarismo que, por assim dizer, afogou na way of
life hollywoodiana o Velho Mundo tradicional;
Foi o igualitarismo que levantou a bandeira vermelha do
comunismo e da luta de classes;
Foi o igualitarismo que contrapôs a cruz gamada e o fascio
do nazi-fascismo, à sociedade orgânica característica da Civilização Cristã;
Foi o igualitarismo que alteou a bandeira negra do
anarquismo, contra toda autoridade;
Foi o igualitarismo que levou rapazes de classe alta ou
média a envergarem trajes e costumes de proletários, a partir dos anos 50;
É o igualitarismo que conduz o baile doido do consumo, das
modas e dos espetáculos em nossos dias;
É o igualitarismo que preside à gradativa destruição da
diferença entre as pátrias mediante o processo da mundialização ou globalização;
É o igualitarismo que preside à disseminação do vazio e à
escalada da insignificância;
Em resumo, foi o igualitarismo que comandou o conjunto de
transformações ciclópicas que, a partir da promissora Belle Époque do começo do
século, desembocaram numa pseudo-civilização ex-cristã, que é o que hoje vemos,
com tristeza e reprovação.
Conclui-se que, como sempre ensinou o teólogo das
desigualdades sociais (7) Plinio Corrêa de Oliveira, o igualitarismo foi a religião de século XX.
Na demolição de todas as desigualdades e diversidades, o
homem contemporâneo está pondo o mesmo empenho que os medievais deitaram na
construção de suas grandiosas catedrais (8).
Que nesse período o homem tenha ido à lua ou tenha posto em
marcha os computadores mais sofisticados, isso absolutamente não nos consola. O
século XX, na ordem de valores superiores, na ordem da qualidade, não foi
grande em quase nada, exceto na enorme capacidade de destruir a Civilização
Cristã. Uma destruição geralmente flácida, é verdade. Mas apesar disso, e
talvez por causa disso, portentosamente eficiente.
E assim como um homem inconsciente de sua desgraça, o século
XX ocupa, na solene galeria dos séculos e dos milênios, a postura de um
insignificante tolamente crédulo. Insignificante por que reduzido à menor
expressão; e tolamente crédulo por não perceber seu lamentável estado e
continuar desvanecido com as purpurinas da tecnociência, do consumo e da
globalização.
De um velho esclerosado costumava-se dizer antigamente que
era um puer centum annorum: um menino de 100 anos. Ao completar os seus 100
anos, é este o qualificativo que o século XX merece. Excluída, é claro, a
inocência própria à infância sadia e autêntica.
_______________________
Notas:
1 - De outro lado, neste fim do século, é dos Estados Unidos
que procedem promissores sintomas de repúdio ao aleijão pós-moderno.
Saulo Ramos, conhecido jurisconsulto paulista, em viagem por
aquelas bandas, com agudo senso de observação, ofereceu concludente descrição
do que chama “assassinato da alma russa” (“Folha de S. Paulo”, 3 de agosto de
1995).
2BIS: O prazer de consumir potencializou-se com chamada
“segmentação”, que substituiu a antiga produção e consumo de massa. Hoje a
oferta de bens tende a ser cada vez mais diversificada, pelo que se torna mais
atraente. A isto se soma a chamada “estetização” dos produtos que, em última
análise, não passa de um requinte na arte de vender ilusões, juntamente com as
mercadorias. Tudo isso torna “technicolor” o vazio pós-moderno. Como diz um
autor, “a fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em
luzes e cores, é o altar pós-moderno” (Jair Ferreira dos Santos, “O que é
pós-moderno”, Brasiliense, 17ª impressão, 1997, p. 10). “O consumidor de hoje é
um bípede com a boca aberta”, afirmou em pitoresca linguagem o chef-patron
Laurent Suaudeau, em entrevista a esta revista.
Lipovetsky, Gilles,
L’Ère du Vide (Gallimard, Paris, 1993), p. 110.
4 - Lipovetsky, op. cit., p. 71.
5 - O Estado de S. Paulo, 1-2-99, p. A9.
6 - “Pós-Modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio”, p. 359.
7 - Expressão cunhada pelo brilhante intelectual italiano
Giovanni Cantoni.
8 - O leitor de Catolicismo, identificado com a doutrina
católica, geralmente dispensa a demonstração de que o igualitarismo é um erro
que não encontra guarida na doutrina da Igreja. Em síntese, Deus é o autor das
desigualdades e portanto, de si, elas são boas e contribuem para a beleza e
ordem do Universo. O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, apoiado no ensinamento
dos Papas, o demonstrou cabalmente em várias obras, sobretudo em “Revolução e
Contra-Revolução” e em “Nobreza e elites tradicionais análogas”.
9 - Este artigo é a condensação de trabalho
consideravelmente mais extenso. Os que desejarem receber gratuitamente tal
trabalho, mais matizado e acompanhado de indicações bibliográficas mais
completas, podem pedi-lo à Redação de Catolicismo ou pelo endereço eletrônico: leodan@uol.com.br
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