"Tudo o que aconteceu naquele tempo, que ficou registrado nos Evangelhos, tem a marca de um contraste tremendo que Deus ao mesmo tempo exalta e aplaina."
Ainda uma vez estamos nós, caro leitor,
enquanto por aqui andamos, no limiar da Semana das semanas, a Semana Santa,
onde a alma antes de se rejubilar com os hinos da Ressurreição, contempla e
sofre a Paixão do seu Senhor.
Toda nossa vida cristã, na medida em
que é cristã, deveria transcorrer diante do mesmo sistema de referências com
eixos em cruz, mas Deus reconhece nossa fraqueza e confiou à sua Igreja uma
soma de recursos pedagógicos para reavivar em nós o nosso nome, o nosso
compromisso, o nosso fraco amor. O ano litúrgico é um recurso didático, uma
espécie de sabatina, mas difere numa coisa dos métodos humanos de recordação e
representação. Quando celebramos um aniversário, uma data de nascimento, de
feito cívico ou de festa familiar, é só afetiva a nossa rememoração. Os
personagens mortos, os dias idos e vividos não reaparecem na festa senão sob as
espécies de sinal e de lembrança. Outra coisa, porém, é a recordação de um
mistério divino, como esta que constitui agora a Liturgia da Semana Santa: se o
Cristo não torna a descer e a se encarnar e não torna a padecer, não é menos
verdadeira uma espécie de descida espiritual desta grande semana. Em outras
palavras, não somos só nós, Igreja Militante, que celebramos a Semana Santa, é
toda a Igreja, são todos os Santos, e acima de tudo o próprio Deus que realiza
na Liturgia uma repetição efetiva, real, da Encarnação e da Paixão.
E diante dos textos inesgotáveis, por
mínima que seja a atenção, tornamos a notar o duplo aspecto divino-humano, em
máxima densidade nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Tudo o que aconteceu
naquele tempo, que ficou registrado nos Evangelhos, tem a marca de um contraste
tremendo que Deus ao mesmo tempo exalta e aplaina. Em nenhum outro ponto do
Evangelho é tão evidente a transcendência da obra de Cristo, e a sua divindade;
mas também em nenhum outro ponto é tão evidente o caminho percorrido pela
Misericórdia até as profundezas de nossa miséria. Na leitura de todo o
Evangelho antes destes textos de concentração máxima, aqui e ali, se nota o
peso da carne, diria até o leve peso da carne na vida de Jesus. Aqui ele tem
fome, acolá diz-se cansado. Aqui freme de cólera diante dos vendilhões do
templo ou diante da hipocrisia dos fariseus, e acolá chora diante do amigo
morto. Mas nas vésperas da Paixão, já diante da Ceia, a atmosfera de paixões se
adensa. No Evangelho de Marcos, a Ceia da Quinta-feira Santa começa logo, quase
diria ao levantar-se o pano, com uma conversa dramática: “E quando estavam à
mesa e comiam, disse Jesus: - Em verdade vos digo que um de vós, que come
comigo, me há de entregar”. E então os discípulos ficaram perturbados e
começaram a dizer: “Sou eu?” e começaram a se gabar: “Ainda que todos se
escandalizem a Teu respeito, eu não me escandalizarei”. E assim se vê que a
festa tranqüila, a refeição de amizade, se carrega de tragédia. E nós sentimos
ao mesmo tempo a infinita distância, e a infinita proximidade do Verbo
Encarnado em todos os passos da Semana Santa. E se em cada episódio ganha
realce a tristeza de nossa miséria, acentua-se também, pelo interesse de Jesus
por nós, a nota de nossa dignidade. E assim, quando estivermos inclinados a
desanimar de nossa humanidade temos o Cristo Crucificado a nos ensinar do alto
da Cruz, “ex-cathedra”, o fundamento de nossa religião, de nossa metafísica, de
nossa moral, de nossa política.
Às vezes nos escandalizamos quando
vemos dentro da Igreja agitações, perturbações, divisões, parecidas com aquela
que existiu e que ganhou singular destaque na Quinta-feira Santa em torno da
Ceia. E até pensamos que seja virtude calar, quando alguns dão público
espetáculo de seus desatinos, como se pudesse haver alguma vantagem em tornar
visível aos olhos do mundo somente este aspecto triste, com o risco de alguns
pensarem que os demais aspectos da Igreja são do mesmo quilate. A Liturgia da
Semana Santa mostra, por assim dizer, a enorme franqueza com que a Igreja
publica, cantando, os estremecimentos, os desentendimentos, as traições. Não se
escandalizem, pois, os que descobrem, como se descobrissem a pólvora, que o
drama continua, e que é diante do mesmo Cristo Crucificado que nós continuamos
a clamar pelos séculos e séculos, movidos por nossa insegurança, por nosso
sentimento de culpa, por nosso fraco amor: “Sou eu?”, “Sou eu? Eu não me
escandalizarei ...” É claro que nós gostaríamos de ter maior entendimento,
sobretudo com os mais próximos; é claro que nós lamentamos, que nós choramos,
que nós sonhamos com uma paz e uma unidade aqui mesmo neste vale de lágrimas; é
claro, claríssimo, que nem por ser permanente o drama da Paixão, devemos
descuidar-nos de lutar por uma concórdia maior dentro da Igreja. Mas a grande
lição da Semana Santa é a da confiança total posta no mérito do Cristo e na
obra de redenção, da qual se tira um conforto sobrenatural, que não se parece
com as fórmulas usuais de conforto que o mundo pode dar. Nossa religião é de
Cruz: gloriemo-nos na Cruz de Nosso Senhor.
O
GLOBO Sábado, 18/3/78
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