“Busquei entre eles um justo que se interpusesse como uma sebe, e que pugnasse contra mim em favor desta Terra, para eu não a destruir; e não o encontrei” (Ez. 22,30).
Guilherme
Félix de Sousa Martins
Assim
exprime o Profeta Ezequiel os lamentos de Deus — que é, segundo o Salmista, lento em irar-se e cheio de clemência
(Sl. 102,8) — sobre as infidelidades do povo eleito.
Com
a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, a cólera divina encontrou por fim aquela
“sebe” que procurava, e descarregou-se sobre Ele, o Inocente, poupando-nos a
nós, os verdadeiros culpados.
Ao
longo da vida da Igreja, o Divino Espírito Santo foi inspirando almas de escol
a se associarem a essa missão de “para-raios” da justiça divina. Assim nasceram
as várias Ordens contemplativas, exércitos de vítimas voluntárias que se
isolavam do mundo a fim de se oferecerem de modo mais eficaz em resgate dos
pecadores. Orações, clausura e penitências livremente consentidas — calibradas
pela mesma inspiração do Divino Esposo — foram sempre suas armas.
Com
seu holocausto contínuo, impetravam também de Deus a conversão dos mesmos
pecadores, abrindo largas veredas para outro exército, o dos missionários, que
iam assim colher a vasta semeadura da Graça.
Admirável exemplo de conversão obtida por uma
religiosa
Em pleno século XX, quando a rejeição oficial das nações a Deus mais
se patenteou, a atuação desses para-raios em meio a um dos castigos mais
eloquentes do Deus Vingador sobre a humanidade pecadora — a II Guerra Mundial —
constitui um exemplo entre muitos.
Quem
no-lo conta é Frei Gereon Goldmann, O.F.M., no livro-biografia The Shadow of His Wings. (1) No ano de
1939, ainda jovem seminarista, mal concluíra os estudos de filosofia quando é
obrigado a alistar-se na Wehrmacht
(2) nazista. Daí passa, em pouco tempo — com a garantia de poder cumprir
livremente seus deveres religiosos —, para a temida SS.(3)
Em
sua determinação inflexível de se tornar sacerdote, consegue ser recebido em
audiência por Pio XII, de quem recebe autorização para ser ordenado sem ter
completado os devidos estudos de teologia. Nas circunstâncias as mais
incríveis, sendo prisioneiro dos aliados na África, recebe as sagradas ordens
de um bispo francês. É então enviado como capelão a um campo de concentração no
Marrocos, campo esse dominado por prisioneiros nazistas dos mais radicais. Ali
tem de se defrontar com ferrenha oposição do líder desses prisioneiros, que lhe
prepara todo tipo de sabotagens.
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Montanhas de Khenifra |
Quando
as forças pareciam lhe faltar, e já os intentos de mudar de prisão se
concretizavam, conheceu Soeur Jeanne,
religiosa francesa que obtivera licença papal para uma vida solitária nas
montanhas de Khenifra. Sigamos sua própria narração:
Nos três dias que
estive com ela, padeci fome continuamente, eu, que acreditava saber muito bem o
que eram as privações!
Ela cuidava dos
nativos enfermos, entrando de manhã até a noite em suas fétidas choças para
tratar feridas espantosas e chagas infectadas. Todas as noites, ajoelhava-se
durante três horas, tão imóvel como uma estátua de pedra, diante de Jesus
Sacramentado… Eu não podia crer no que meus olhos estavam vendo. Graças a uma
licença papal, tinha o privilégio de guardar o Santíssimo Sacramento em sua
pequenina capela, e um sacerdote-eremita, que vivia em uma montanha ainda mais
alta, descia a cada três ou quatro meses para renovar as Sagradas Espécies.
Depois, voltava a
ficar sozinha durante meses, dedicada a seu trabalho e com o Senhor no
Sacrário. O que vi e ouvi era incrível. Sua cama, uma tábua; sua comida, uma
sopa aguada; contudo era feliz como uma criança, e estava muito mais forte e
robusta que eu!
Reuni-me com ela
pela primeira vez em sua solidão — pouco depois que me tornara capelão do campo
nazista — numa ocasião em que me sentia abatido por causa da intensa oposição e
da perseguição que padecia, e porque não lograva alcançar progressos visíveis.
Quando lhe anunciei que pensava partir para outro campo onde o trabalho fosse
mais fácil e mais gratificante, replicou-me quase violentamente que eu ia
voltar ao acampamento nazista.
‘Não posso, Soeur
Jeanne. É demais para mim. Fiz todo o possível, e fracassei em meu intento de
levar Cristo a esse acampamento’.
Surpreendeu-me
então, agarrando-me pelo hábito e fixando-me nos olhos, enquanto dizia com uma
voz que cortava os ossos e chegava até a medula: ‘Padre, em nome de Deus, volte
ao acampamento imediatamente!’.
Quando me
recuperei da surpresa que me tinha produzido semelhante ‘ordem’ — pois fora
dada de tal modo que sabia não poder desobedecê-la — fez-me escrever em um
pedaço de papel o nome do pior inimigo da Igreja. ‘Deixe o resto em minhas
mãos, Padre’, finalizou.
Fiz o que me
pedia; dei-lhe o nome de Kroch, um fanático nazista, acérrimo perseguidor da
Igreja francesa e de seu povo, e retornei ao campo”.
Frei
Gereon retomou seus labores apostólicos no acampamento. Passados três meses,
quando já nem se lembrava daquele encontro, foi avisado de que o temível
nazista queria falar-lhe:
“Se Kroch que
tratar comigo, diga-lhe que venha pela manhã, à vista de todo mundo, e não na
escuridão da noite!”.
No
dia seguinte, quando esperava sua vez na fila para receber a pequena ração de
pão, Kroch se aproximou e, sem tentar ocultar seu pedido aos circunstantes,
perguntou-lhe se podia confessá-lo.
“Eu era católico,
Padre. Fui até coroinha; minha mãe era uma mulher piedosa, e se sentiria feliz
se soubesse que voltei para a Igreja”.
Frei
Gereon conhecia parte de sua história: durante muitos anos, antes mesmo da
guerra, tinha sido um líder da juventude ateia, e desempenhara um papel de
dirigente na Alemanha nazista.
“Apesar de
sentir-me comovido por aquele pedido, sua readmissão na Igreja não era um
assunto simples. Devia fazer penitência pública por seus vários erros
conhecidos. Um domingo após o outro, durante vários meses, permaneceu de pé
junto ao altar, um pobre penitente, um reconhecido pecador. Por fim, chegou o
dia em que, diante de centenas de homens que, retendo o fôlego, escutavam o que
ele tinha a dizer, reconheceu sua culpa e sua vergonhosa história…, de um rapaz
piedoso a um dos mais acérrimos inimigos da Igreja. Contou novamente a história
de seu regresso à Igreja e pediu perdão. Por fim, recebeu a absolvição
sacramental e a Comunhão. Os homens rodeavam o altar com lágrimas nos olhos;
depois, foram muitos os que esperaram pacientemente sua vez diante do
confessionário para dar por encerradas suas vidas de pecado”.
Lembrando-se
então da religiosa, Fr. Gereon conclui: “Em
sua solidão de Khenifra, a boa Soeur Jeanne tinha colocado junto ao sacrário o
papel com o nome de Kroch e, noite após noite, tinha passado seis horas rezando
por sua conversão”.
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Carmelitas fotografadas na clausura do convento |
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Carros da polícia no dia da invasão do convento das Carmelitas Descalças de Nogoyá, na Argentina |
O
mundo oficial moderno — leia-se mídia e governos laicos — manifesta desprezo
pela vida religiosa contemplativa. Chega mesmo, quando tem oportunidade, a
mover aberta perseguição contra ela, como no recente caso das Carmelitas
Descalças da cidade de Nogoyá, Argentina. (4)
Terá
esse mundo oficial poder para, aproveitando-se da crise pela qual passa a Santa
Igreja, destruir esse último reduto, essa “sebe” que ainda refreia os raios da
cólera divina?
O
Justo Juiz, pela pena do mesmo profeta, já deixou consignada a sentença:
“Por isso derramei
a minha indignação sobre eles, consumi-os no fogo da minha ira, fiz que o seu
proceder recaísse sobre as suas cabeças, diz o Senhor Deus” (Ez. 22,31).
____________
Notas:
1.
GOLDMANN, Gereon. The Shadow of His Wings. San Francisco: Ignatius Press, 2008.
P. 229 a 232.
2.
Nome dado ao conjunto das Forças Armadas alemãs na era nazista.
3.
Schutzstaffel: polícia especial de Hitler.
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