“O que escandalizar
porém a um destes que crê em Mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao
pescoço a pedra da mó e que lançassem no fundo do mar”.
Gustavo
Corção
Muitas
vezes aludimos à crise que envenenou o Ocidente cristão, e que hoje se tornou
universal graças ao movimento histórico da ocidentalização que, por paradoxo,
se volta contra o Ocidente. Mais de uma vez tentamos percorrer os marcos
históricos e as correntes de idéias que animaram a chamada civilização moderna
e que agora deságuam pelo imenso estuário de mil disparates num oceano de
sombrias perplexidades. A Renascença e a Reforma, debaixo de seus aspectos
progressistas, e a par dos reais progressos trazidos pelas ciências da
natureza, que asseguraram ao homem o conhecimento e o domínio das coisas
exteriores e inferiores, foi o primeiro degrau do itinerário em que o homem se
extravia de si mesmo, e para ganhar o mundo hipoteca a própria alma. Depois, na
Revolução Francesa temos outro marco onde começa a grande impostura moderna das
histórias mal contadas. Poderíamos dizer, embora nos repugne o neologismo, que
a história recente é uma sucessão de estórias mal contadas. Num processo de
sucessivo empulhamento que começou nos primórdios da Revolução Francesa, com as
famosas societés de penséedenunciadas por Augustin Cauchin,
seguiu-se a história do socialismo, a ascensão do liberalismo, a Revolução
Russa, e as duas grandes guerras. Até hoje se conta a história da 2ª Guerra
como se a Rússia tivesse desempenhado nela papel decisivo, papel de vencedor.
Agora temos a super-impostura do progressismo “católico”, como uma síntese de
todos os erros cometidos pela humanidade nestes últimos séculos. E qual é a
direção geral, o efeito principal desses movimentos históricos?
Ninguém
negará, evidentemente, a ocorrência de um progresso de que se gloria a moderna
civilização: o homem inventou o telégrafo, a máquina a vapor, os computadores
eletrônicos, o raio laser e finalmente chegou à Lua. Mas dificilmente se
contestará outra evidência: o homem se distancia do humano, do espiritual, do
sagrado. Os imbecis, evidentemente, pensarão que o homem só se reaproximará do
humano na medida em que se afastar do espiritual e do sagrado.
Em
nossa reta doutrina nós sabemos que o homem, de dois modos e em dois níveis,
transcende ao mundo físico e à história. Por sua natureza racional, o homem
possui uma dimensão que ultrapassa todo o universo; por sua elevação à ordem da
graça e por sua ordenação à glória da visão de Deus três vezes santo, o homem
ultrapassa o próprio nível de sua natural humanidade.
Ora,
o movimento histórico a que nos referimos parece ter o objetivo principal de
negar e de destruir esses títulos de nobreza que nos vêm da razão e da graça de
Deus.
Nas
correntes filosóficas nascidas da mesma raiz nominalista, temos o chamado idealismo que
desnatura o conhecimento, deixando o espírito humano encerrado em si mesmo; e o
chamado empirismo que só abre para o exterior a janela da
experiência, do fenômeno e da medida. Progridem as ciências físicas com essa
mutilação; regridem as ciências propriamente humanas, que só podem viver
centradas no primado do espiritual, que o empirismo resolutamente desconhece.
Nessa
direção será tanto mais avançado, tanto mais evoluído o homem quanto mais
materializado se mostrar.
Pervertidas
as ciências humanas, por falta de centro e de referência a Deus, pervertem-se as
tentativas de convivência política e social.
No
mundo de hoje temos os dois volumosos resultados de tal crise: de um lado o
liberalismo dissolvente da dignidade humana, por ceticismo, tolerância e
capitulação; de outro lado o totalitarismo socialista que degrada o homem por
achatamento e escravização.
* *
*
Não
diríamos que os homens estão sempre em guerra com os homens, como disse o
perverso Hobbes, mas diremos que, a partir da grande apostasia histórica, os
homens estão em guerra contra o homem. Dispensamos a maiúscula, mas não
dispensamos a referência à essência, à natureza do homem. Há na história dos
últimos séculos uma visível intenção de rebaixar e degradar o bizarro ser que
ousou crer-se a imagem e semelhança de Deus.
A
Igreja lutou tenazmente contra as duas correntes corruptoras. Tornou-se hoje um
lugar comum nas rodas progressistas dizer que a Igreja, antes de sua
comunização, nada fez pelo mundo, pela sociedade e pelo homem. Diante do
insucesso — critério que bastaria para ridicularizar o Cristo na hora da Cruz
—, a primeira idéia que ocorre aos católicos progressistas é a de culpar a
Igreja de ineficiência, e não a de argüir o mundo de indocilidade.
O
fato bruto é este: a Igreja, sobretudo no tumultuoso século XIX, não se cansou
de apontar os erros do liberalismo, do modernismo e do socialismo. Ora, o
liberalismo cobriu a metade do planeta, enquanto a outra metade vestiu-se de
socialismo; e o progressismo católico está aí. Logo... a Igreja falhou. E se
falhou é porque errou; é porque não havia compreendido o mundo.
Agora
estamos diante da obra-prima daquelas correntes históricas que trabalharam
juntas para achatar a dignidade do homem. Estamos diante da depravação do corpo
humano erigida em “momento histórico”. Cobre o mundo inteiro, nos seus
hemisférios antagônicos, mas nisto concertados, a maré de pornorréia que
pretende amortalhar a última veleidade de pureza inspirada pela idéia da
Encarnação do Verbo, e constantemente iluminada pela figura da Senhora que
apareceu às crianças de Portugal e da França no seu manto de Rainha e de
Imaculada.
A
Igreja afrontou todos os ridículos, todas as finesses dos
intelectuais que queriam ver no seu zelo germes de neo-maniqueísmo. Lembremos a
voz de Pio XI que ainda trovejava contra o impudor. Em 1930, ontem!, o Papa se
preocupava com os decotes e com o comprimento das mangas. E como nós todos nos
rimos da pruderie do bom velhinho! E como evoluímos desde
então! Pio XII, já com melancolia gritava: “Ó mães cristãs, se soubésseis o
porvir de angústia, de perigos e vergonhas que preparais para vossos filhos e
filhas, acostumando-os a viver tão despidos...”. Em vão gritou. Como
assinala Luce-Quinette, “Itineraires” n° 139, outro poder, outra
Autoridade do mundo dirige os costumes. E quando essa Autoridade comandou:
“joelho!”, um bilhão de joelhos se descobriram; e quando a Autoridade decretou:
“coxas!”, um bilhão de coxas se mostraram com docilidade, e nas mais variadas circunstâncias.
Tudo isto parece pueril, dirão os inteligentíssimos progressistas que
desaprenderam tudo o que o Cristianismo nos ensinou sobre a alma humana. E
atrás dessa docilidade bocó com que todas as mulheres do mundo se afastaram do
seu modelo, do figurino da única “grande Dame”, veio o dilúvio de
impurezas, a maré de pornorréia que hoje nos afoga. Em Fátima, a Virgem também
trovejou como trovejaram ex-catedra os papas. E eis o que
Jacinta nos deixou poucos dias antes de morrer: “Os pecados que atiram no
Inferno o maior número de almas são os da impureza. O mundo lançará modas que
ofenderão Nosso Senhor...”.
Dirão
os evoluídos que Nosso Senhor não irá perder tempo em tais futilidades, mas
acontece que Ele tem uma estima infinita por esse nosso machucado e tão mal
servido Corpo. Ele levou para o Céu o frêmito de divina alegria que sentiu no
seio de sua Mãe, cumprindo a profecia: ela, a Sabedoria de Deus, se alegrará no
meio dos homens.
E
nós, herdeiros desse júbilo divino, devemos compreender que a dignidade humana
mais depressa começa pelo decoro da veste do que pela conquista da Lua. Não
compreendemos. Rejeitamos as profecias, os sermões de Cristo, os conselhos dos
Apóstolos, dos Papas, e deixamos invadir o mundo a maré de pornorréia que já
começa a inquietar os mais adormecidos católicos.
(...)
A lepra inundou os costumes, envenenou os espetáculos públicos, ganhou as
instituições oficiais, e conquistou lugar de honra nos institutos católicos.
Sob o eufemismo de educação sexual o que se faz é erotização precoce e
infinitamente perversa. Degradam-se as mulheres, maculam-se as consciências
infantis, e com essas duas pontas de lança da ofensiva dos infernos, não se vê
como será possível a reconquista da dignidade do Homem. Será sempre possível,
com a graça de Deus, mas tememos muito que somente através de sofrimentos
inconcebíveis poderá a humanidade lavar-se em um novo dilúvio. O ponto a que
chegamos é sinistro: eles começam pelas crianças. Os novos pedagogos que nas
Américas e na Europa querem libertar o sexo do universo moral, começam pela
dessensibilização dos inocentes. Esse horror tem valia apologética, por tornar
menos repulsiva a idéia de Inferno. Por aí, por um primeiro temor, por uma leve
e inicial desconfiança talvez comece a onda de repressão. E nós podemos meditar
nestas palavras que não passarão com as modas:
“O
que escandalizar porém a um destes que crê em Mim, melhor lhe fora que se lhe
pendurasse ao pescoço a pedra da mó e que lançassem no fundo do mar”.
(Mateus, XVIII, 6).
Editorial Permanência, n°18, Ano III,
Março de 1970.
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