São Jerônimo
(340-420). - Contra Vigilâncio
Capítulo I
O mundo pariu muitos monstros. Em Isaías lemos sobre centauros, corujas
e pelicanos. Jó, em linguagem mística, descreve Leviatã e Behemoth. Cérbero e
os pássaros de Estínfalo, o porco de Erimantéia e o leão de Neméia, a Chimera e
a Hidra de muitas cabeças são citadas em fábulas poéticas. Virgílio descreve
Caco. A Espanha criou Gerion, com seus três corpos. Somente a Gália não teve
monstros e sempre contou com homens ricos em coragem e grande eloqüência...
Isto até Vigilâncio - ou, mais propriamente, "Dormilâncio" - que
surgiu, animado por um espírito imundo, para lutar contra o Espírito de Cristo
e negar aquela reverência religiosa que devemos prestar aos túmulos dos
mártires. As vigílias - afirma ele - devem ser condenadas. O "Aleluia"
nunca deve ser cantado senão na Páscoa. A continência é uma heresia. A
castidade, uma cama preparada para a concupiscência. E assim como dizem que
Eufórbio renasceu na pessoa de Pitágoras, então temos que neste (=Vigilâncio)
ressuscitou a mente corrompida de Joviniano. Nele, não menos que em seu
predecessor, encontramos as ciladas do demônio. A Palavra pode ser justamente
aplicada a ele: "Raça de malfeitores, preparai vossos filhos para o
massacre por causa dos pecados do vosso pai". Joviniano, condenado pela
autoridade da Igreja de Roma, entre a carne de faisão e a de porco, exalou, ou
melhor, vomitou o seu espírito. E agora, este sustentador das tavernas do
Calagurre, que conforme o nome de sua vila nativa é Quintiliano, estúpido ao
invés de eloquente, quer combinar água com vinho. Segundo a armadilha que ele
há muito já conhece, tenta agora misturar seu veneno com a fé católica: ele
agride a virgindade e odeia a castidade; se regozija com o mundano e prega
contra o jejum dos santos; serve o filósofo em sua bandeja e se alivia com as
doces melodias da salmodia enquanto lambe os lábios após comer seus bolos de
queijo. Alias, não poderia ele dignar-se a ouvir as canções de Davi, Jeduth,
Asaf e os filhos de Coré a não ser na mesa do banquete. Isto eu tenho dito com
mais pesar que alegria, pois não posso me conter, tornando-me surdo ao ouvir as
coisas erradas que ele atira contra os apóstolos e mártires.
Vergonhoso de se mencionar é que alguns bispos, segundo dizem, se
associaram a ele em sua iniquidade - se é que esses homens podem mesmo ser
chamados de bispos - e não ordenam diáconos a não ser que tenham eles sido
previamente casados. Eles não honram o celibato exigindo mais castidade, ou
melhor, eles mostram claramente que a medida da santidade de vida que querem se
dá indulgenciando as piores dúvidas do homem e, exceto que os candidatos à
ordenação apareçam perante eles com esposas grávidas e bebês chorando no colo
de suas mães, não administrarão a estes a ordenação de Cristo. O que estão
fazendo as igrejas do Oriente? E as que pertencem às igrejas egípcias ou à Sé
Apostólica: aceitam para o ministério apenas homens virgens, ou que praticam a
continência ou, se casados, abandonaram seus direitos conjugais? Eis o
ensinamento de Dormilâncio, que lança as rédeas sobre o pescoço da luxúria e
por seu incentivo duplica o calor natural da carne, que na juventude atinge o
ponto máximo e que se sacia pelo intercurso [sexual] com mulheres. Daí, nada
nos separa dos porcos, nada aqui nos difere da criação bruta, ou dos cavalos, a
respeito do que está escrito: "Eles se dirigiram às mulheres como cavalos
selvagens; todos relincharam após [conhecerem] a esposa de seu vizinho".
Isto é o que foi dito pelo Espírito Santo através da boca de Davi: "Não
sejais como o cavalo e a mula que não compreendem". E, novamente, acerca
de Dormilâncio e seus amigos: "Amarrem a maxilar daqueles que se aproximam
de vocês com freios e rédeas".
Capítulo III
Mas agora nos chegou o momento de abordar as suas próprias palavras e
responder-lhe em detalhes. Isto porque, possivelmente, em sua malícia, ele pode
novamente optar em me deturpar e dizer que eu tenho o trunfo de apreciar um
caso fazendo uso dos meus poderes retóricos e declamatórios para combatê-lo,
tal como na carta que escrevi para a Gália, expondo para uma mãe e sua filha
que estavam na dúvida. Este pequeno tratado que agora redijo, é aguardado pelos
respeitáveis presbíteros Ripário e Desidério, que informaram que suas paróquias
e vizinhanças estão sendo profanadas e me enviaram, através do nosso irmão
Sisínio, os livros que ele (Dormilâncio) vomitou como um bêbado na ressaca.
Eles também afirmam que algumas pessoas ali, a partir de suas inclinações para
os vícios, aderem às suas blasfêmias. Ele é um bárbaro tanto em sua fala quanto
em seu conhecimento. Seu estilo é rude. Ele não tem condição nem de defender a
verdade. Mas por amor aos leigos e pobres mulheres, carregados de pecados,
sempre aprendendo e nunca atingindo o [pleno] conhecimento da verdade, vou desperdiçar
uma noite de trabalho para abordar as suas fúteis melancolias, caso contrário
poderia parecer que eu estaria tratando com desprezo as cartas daquelas
respeitáveis pessoas que confiaram a mim tal tarefa a ser empreendida.
Capítulo IV
Certamente ele representa bem a sua raça. Originado de um bando de
marginais e indivíduos reunidos dos quatro cantos [do mundo] - isto porque
Pompeu, após conquistar a Espanha, quando se apressava para retornar [a Roma]
em seu triunfo, desceu pelos Pirineus e reuniu [os referidos indivíduos] em um
só lugar, de onde veio o nome da cidade: Convenae [=convocação] - ele
(Vigilâncio) foi encarregado por suas práticas criminosas a atacar a Igreja de
Deus. Como seus ancestrais, os vetões, os harrabaceus e o celtiberianos, ele se
lança sobre as igrejas da Gália, não carregando o estandarte da cruz mas ao
contrário, a insígnia do diabo. Pompeu fez o mesmo no Oriente. Após subjugar os
piratas e bandidos cilicianos e isaurianos, ele fundou uma cidade, que possui o
seu próprio nome, entre a Cilícia e a Isáuria. Essa cidade, porém, observa até
hoje as ordens dos seus ancestrais e nenhum Dormilâncio surgiu ali. Mas a Gália
possui um inimigo nativo e vê sentado na Igreja um homem que perdeu o juízo e
que deveria ser colocado em uma camisa-de-força, como recomenda Hipócrates.
Entre outras blasfêmias, escuta-se ele dizer: "Que necessidade há para ti
de prestar tal honra, para não dizer adoração, a uma coisa, qualquer que seja
ela, que você carrega e cultua?". E novamente, no mesmo livro: "Por
que você beija e adora um pouco de poeira envolto em um pedaço de pano?".
E mais uma vez, no mesmo livro: "Sob o manto da religião vemos que tudo de
uma cerimônia pagã foi introduzida nas igrejas: enquanto o sol ainda brilha, um
monte de velas são acesas e em todo lugar um pouco de pó miserável, envolto em
panos caros, é beijado e adorado. É esta a grande honra que os homens prestam
aos bem-aventurados mártires que - conforme pensam - deve ser feita de maneira
gloriosa, através de velas insignificantes, enquanto que o Cordeiro, que se
encontra no centro do trono, com todo o brilho de sua majestade, lhes dá a
luz?".
Capítulo V
Louco! Quem neste mundo já adorou os mártires? Quem já pensou que o
homem fosse Deus? Acaso Paulo e Barnabé - quando o povo da Licônia pensou que
se tratavam de Júpiter e Mercúrio e por isso precisavam oferecer-lhes
sacrifícios - não rasgaram suas vestes e se declararam homens (Atos 14,11)? Não
que eles não fossem melhores que Júpiter e Mercúrio, mortos muito tempo antes,
mas porque, sob as falsas ideias dos gentios, a honra devida a Deus estava
sendo prestada a eles. E lemos o mesmo a respeito de Pedro que, quando Cornélio
quis adorá-lo, pegou-o pela mão e disse-lhe: "Levanta-te, pois sou apenas
um homem" (Atos 10,26) e você (Vigilâncio) tem a audácia de falar de
"algo misterioso ou outra coisa qualquer que você carrega em um pequeno
embrulho e adora"? Eu gostaria de saber o que é que você chama de
"algo misterioso ou outra coisa qualquer". Diga-nos mais claramente -
pois não pode haver moderação na sua blasfêmia - o que você quer dizer com a
expressão: "um pouco de pó miserável, envolto em panos caros". Isso
nada mais é do que as relíquias dos mártires, que o deixam irritado ao vê-las
cobertas por tecido nobre e não por farrapos ou lenços de cabeça, ou lançadas
na esterqueira. Com efeito, apenas Vigilâncio, em seu sono de bêbado, acha que
podem ser adoradas. Seríamos nós, portanto, culpados de sacrilégio quando
entramos nas basílicas dos Apóstolos? Seria o imperador Constâncio I culpado de
sacrilégio quando transferiu as sagradas relíquias de André, Lucas e Timóteo
para Constantinopla? Na presença destas [relíquias] os demônios se perturbam e
os diabos que habitam em Vigilâncio confessam que sentem a influência dos
santos. E nos presentes dias, seria o imperador Arcádio culpado de sacrilégio
por, depois de tanto tempo, ter transportado os ossos do bem-aventurado
[profeta] Samuel da Judéia para a Trácia? Deveríamos considerar todos os bispos
não apenas sacrílegos mas tolos porque eles carregam "coisas mais inúteis"
- poeiras e cinzas - envoltas em sedas douradas? Seriam tolos os fiéis de todas
as igrejas porque foram se encontrar com as sagradas relíquias e deram boas
vindas a elas com tanta alegria como se estivessem recebendo um profeta vivo em
seu meio, de forma que um grande número de pessoas as seguiram da Palestina até
a Calcedônia em uma só voz recitando as orações de Cristo? Seriam loucos se
adorassem a Samuel e não a Cristo, já que Samuel era um mero levita e profeta.
Você (Vigilâncio) demonstra desconfiança porque pensa apenas em corpos sem
vidas e em razão disso blasfema. Leia o Evangelho (Mateus 22,32): "O Deus
de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó: Ele não é Deus dos mortos, mas dos
vivos". Ora, se então eles estão vivos, não são "mantidos em um confinamento
honorável", para usarmos aqui as suas palavras.
Capítulo VI
Você diz que as almas dos Apóstolos e mártires residem no seio de
Abraão, ou num lugar de refrigério, ou sob o altar de Deus e que eles não podem
viver em seus próprios túmulos e estarem presentes onde quiserem. Eles são, ao
que parece, da classe senatorial e não estão sujeitos aos piores tipos de
cárcere, nem à sociedade de assassinos, mas são mantidos em separado, sob custódia
honorífica e liberal nas abençoadas ilhas dos Campos Elíseos. Irá você agora
estabelecer a lei para Deus? Irá você agora acorrentar os Apóstolos? Então
ficarão eles confinados até o Dia do Julgamento e não estarão com o seu Senhor,
embora esteja escrito a respeito deles: "Eles seguem o Cordeiro para qualquer
lugar que Ele for" (Apocalipse 14,4). Ora, se o Cordeiro está presente em
todo lugar, o mesmo devemos acreditar acerca destes que estão com o Cordeiro. E
embora o diabo e os demônios vagueiem por todo o mundo e com tamanha velocidade
eles mesmos se movem por todo lugar, estariam os mártires, após derramarem o
seu sangue, sendo mantidos confinados em algum lugar de onde não poderiam
escapar? Você afirma, em seu panfleto, que enquanto estamos vivos podemos orar
uns pelos outros, mas que, quando morremos, a oração de uma pessoa não poderá
favorecer outra qualquer; e isto em razão dos mártires, embora eles possam
pedir pela vingança de seu sangue, o que, porém, nunca lhes será atendido
(Apocalipse 6,10). Se os Apóstolos e mártires, enquanto estão no corpo, podem orar
pelos outros, ainda quando se encontram inquietos por si mesmos, quanto mais
deverão fazer após terem recebido suas coroas, vencido e triunfado? Um simples
homem, Moisés, obteve o perdão de Deus para seiscentos mil homens armados; e
Estêvão, seguidor de seu Senhor e o primeiro mártir cristão, implorou o perdão
para seus perseguidores; e quando eles entraram na Vida com Cristo, acabaram
tendo menos poder do que antes? O Apóstolo Paulo diz que 272 almas foram
entregues a ele no navio (Atos 27,37); e após sua dissolução (=morte), quando
ele começou a estar com Cristo, deveria ele calar a sua boca e ser incapaz de
dizer uma só palavra em favor daqueles que em todo o mundo creram no seu
Evangelho? Para Vigilâncio, seria um cachorro vivo melhor que Paulo, o leão
morto? Estaria eu certo em seguir o Eclesiastes se admitisse que Paulo está
morto em espírito... Mas a verdade é que os santos não são chamados de
"mortos"; acerca deles dizemos que estão dormindo. Por isso, diz-se
de Lázaro - que estava para ser ressuscitado - que tinha dormido (João 11,11).
E o Apóstolo proíbe os tessalonicenses de se preocuparem com aqueles que
dormiram. Você (Vigilâncio), que está dormindo acordado e dorme quando escreve,
me aponta um livro apócrifo que, sob o nome de Esdras, é lido por você e por
aqueles loucos que o escutam, e nesse livro está escrito que após a morte
ninguém se atreve a orar pelos outros. Eu nunca li esse livro, mas qual a
necessidade de lê-lo se a Igreja não o recebeu? Provavelmente a sua intenção
real é de me confrontar com Bálsamo, Barbélio e o Tesouro dos maniqueus, além
daquele que traz o ridículo nome de Leusiboras. Talvez porque você vive aos pés
dos [montes] Pirineus, no limite da Ibéria, acaba seguindo as "incríveis
maravilhas" do antigo herege Basílides e seu assim chamado
"conhecimento" - o qual é simples ignorância - e que foi condenado
pela autoridade de todo o mundo. Eu afirmo isto porque em seus breves tratados
você cita Salomão como se ele concordasse contigo, porém Salomão jamais
escreveu tais palavras; então, da mesma forma que você possui um segundo
Esdras, tem também um segundo Salomão. E se você gostar, pode ler ainda as
revelações imaginárias de todos os patriarcas e profetas; e quando você tiver
aprendido todas elas, poderá cantá-las entre as mulheres nas tecelagens, ou
ordenar que sejam lidas nas suas tavernas, pois é mais fácil assim que essas
canções melancólicas estimulem o povo ignorante a encher novamente as
canecas.
Capítulo VII
Contudo, quanto a questão das velas, ao contrário do que você
(Vigilâncio) em vão nos acusa, nós não as acendemos durante o dia, mas para
conforto podemos alegrar a escuridão da noite, enquanto aguardamos o amanhecer,
para que não sejamos cegos como você e cochilemos nas trevas. E se algumas
pessoas, leigos simples e rudes, ou quase sempre mulheres religiosas - de quem
podemos realmente dizer: "Eu admito que eles tem zelo por Deus, ainda que
não seja conforme a razão" (Romanos 10,2) -, adotam tal prática em honra
dos mártires, que mal isto causa a você? Já houve uma vez que os próprios
Apóstolos suplicaram que o unguento não fosse desperdiçado e acabaram sendo
repreendidos pela voz do Senhor. Cristo não precisava do unguento assim como os
mártires não precisam da luz das velas. Ainda assim, aquela mulher que derramou
o unguento em honra de Cristo teve a devoção do seu coração aceita [pelo
Senhor]. Todos aqueles que acendem essas velas têm sua recompensa de acordo com
a sua fé, como disse o Apóstolo: "Que cada um abunde em sua própria
intenção". Você chama estes homens de idólatras? Eu não nego que todos nós
que cremos em Cristo deixamos de lado o erro da idolatria. Nós não nascemos
cristãos, mas nos tornamos cristãos ao renascermos [pelo Batismo]. E porque [um
dia] já adoramos ídolos se conclui agora que nós não podemos adorar a Deus,
pois parece que prestamos honra a Ele e aos ídolos? Um caso é prestar [honra]
aos ídolos e, neste caso, o culto é detestável; outro caso é a veneração dos
mártires, sendo seu culto permitido. Em todas as igrejas do Oriente, mesmo
quando alguma delas não possui relíquias dos mártires, o Evangelho é lido e os
castiçais são acesos, ainda que a aurora esteja avermelhando o céu, não para
dispersar as trevas, mas para evidenciar o nosso júbilo. E, conforme o
Evangelho, as virgens carregam sempre acesas as suas lâmpadas (Mateus 25,1). E
dos Apóstolos diz-se que tinham de cingiam seus lombos e acender suas lâmpadas
(Lucas 12,35). E de João Batista lemos que "Ele possui a lâmpada que arde
e ilumina" (João 5,35). Assim, através da figura da luz corpórea, é
representada aquela luz que lemos no Saltério: "Tua Palavra é uma lâmpada
para os meus pés, ó Senhor, e uma luz para os meus caminhos".
Capítulo VIII
Estaria o bispo de Roma equivocado quando oferece sacrifícios ao Senhor
sobre os veneráveis ossos dos falecidos Pedro e Paulo, do modo como já
dissemos, mas de acordo com você (Vigilâncio), sobre um punhado de poeira sem
valor, julgando que seus túmulos não são dignos de ser altares de Cristo? E não
seria este o único bispo de uma cidade a estar equivocado, mas os bispos de
todo o mundo já que, ao contrário do sustentador de tavernas Vigilâncio, entram
nas basílicas dos mortos, onde "um punhado de poeira e cinzas sem valor
encontram-se envoltos em um pedaço de pano" encardido ou encardindo.
Assim, segundo você, os templos sagrados são como os sepulcros dos fariseus,
caiados por fora, enquanto que por dentro resta a imundície, estando cheios de
podridão e odores fétidos. E então ele (Vigilâncio) atreve-se a vomitar suas
porquices sobre esta questão e afirma: "Será que as almas dos mártires
amam tanto suas cinzas que acabam permanecendo em torno delas, para que,
estando sempre presentes não fiquem tristes por surgir ali alguém para rezar,
pois se estivessem ausentes, não conseguiriam ouvir?" Ó, monstro, que
merece ser banido para os confins da terra! Você (Vigilâncio) ri das relíquias
dos mártires e na companhia de Eunômio, pai desta heresia, calunia as igrejas
de Cristo? Você não se preocupa em andar com tal companhia e prega contra nós
as mesmas coisas que ele levanta contra a Igreja? Todos os seus seguidores se
recusam a entrar nas basílicas dos Apóstolos e mártires, porém,
contraditoriamente, eles adoram o falecido Eunômio, cujos livros eles consideram
de maior autoridade que os Evangelhos. E eles também creem que a luz da verdade
estava nele assim como alguns outros hereges sustentavam que o Paráclito teria
vindo em Montano ou que o próprio Maniqueu era o Paráclito. Você não pode mesmo
encontrar uma ocasião de orgulho para supor que é o inventor dessa nova espécie
de maldade, sendo que essa sua heresia já foi outrora levantada contra a
Igreja. Ela encontrou, porém, um oponente em Tertuliano, um homem de grande
sabedoria, que escreveu um famoso tratado que ele corretamente intitulou
"Scorpiacum", porque assim como o escorpião dobra-se como um arco
para infligir o ferimento, também o que era formalmente conhecido como "a
heresia de Caim" infere veneno no corpo da Igreja. Tal acusação repousou,
ou melhor, ficou sepultada por um longo tempo, mas agora ressurge graças a
Dormilâncio. Eu fico surpreso de ver você (Vigilâncio) omitir então que não
deveria haver martírios, já que Deus, que não quer o sangue de bezerros e bois,
muito menos poderia querer o sangue dos homens. É exatamente esta a sua conclusão,
ou melhor, se você não afirma isso [explicitamente], ao menos é esta a
conclusão que [implicitamente] se chega. E se [você] mantiver a ideia de que as
relíquias dos mártires devem ser pisoteadas, acabará também por concluir que o
derramamento de sangue que sofreram não é digno de qualquer honra.
Capítulo IX
A respeito das vigílias e das frequentes vezes que passamos a noite nas
basílicas dos mártires, darei aqui uma breve resposta, a qual já ofereci em
outra carta há cerca de dois anos, quando escrevi para o respeitável presbítero
Ripário. Você (Vigilâncio) afirma que elas não deveriam ser observadas, exceto
quando estamos próximos da Páscoa, pois não seguem as vigílias anuais de
costume. Se assim fosse, então os sacrifícios [da Missa] não deveriam ser
oferecidos a Cristo a cada dia do Senhor (=domingo), exceto quando
celebrássemos a Páscoa da Ressurreição do Senhor, tendo sido introduzido o
costume de haver muitas Páscoas ao invés de uma. Seja como for, não devemos
imputar a homens piedosos as faltas e erros de jovens e mulheres inúteis que
muitas vezes são encontrados por aí durante a noite. É verdade que, mesmo nas
vigílias da Páscoa, alguns desses se aproximam da Luz; mas as falhas de alguns
não constituem em argumento válido contra a religião em geral, de modo que tais
pessoas, ainda que não participem da vigília, podem estar erradas inclusive em
suas próprias casas ou na de outras pessoas. A traição de Judas não anula a
lealdade dos Apóstolos. E se alguns se comportam mal durante a vigília, isso
não implica que esta deva deixar de existir. Aliás, melhor seria que [esses]
dormissem mesmo para que, não sendo obrigados a participar das vigílias,
pudessem ao menos preservar a sua castidade. Ora, se uma coisa foi feita boa,
ela não pode ser má se for feita muitas vezes. E se existe aí alguma falta a
ser combatida, a censura não consiste em ser feita várias vezes, mas por ter
sido feita uma única vez. Portanto, nós [também] não deveríamos realizar a vigília
da Páscoa, pois poderíamos temer que adúlteros pudessem aproveitar para
satisfazer seus desejos [sexuais] duramente reprimidos, ou que certa esposa
pudesse encontrar a oportunidade certa para pecar sem que suscitasse
desconfiança contra ela da parte de seu marido. [Na verdade,] as ocasiões em
que raramente se recorre são justamente aquelas em que surgem os maiores
desejos.
Capítulo X
Eu não posso aqui percorrer todos os tópicos abordados nas cartas dos
respeitáveis presbíteros. Irei, portanto, fazer referência a alguns pontos
extraídos dos tratados de Vigilâncio. Ele prega contra os sinais e milagres que
ocorrem nas basílicas dos mártires, afirmando que eles se dão [apenas] para os
infiéis, não para os fiéis, muito embora a questão aqui seria esta: em vantagem
de quem ocorrem, não sob o poder de quem. Supõe [ele] que tais sinais são para
os infiéis pois como estes não obedeceriam nem a palavra nem a doutrina,
acabariam por crer através dos sinais. Com efeito, até mesmo o Senhor teria
apresentado sinais para os infiéis (tais sinais do Senhor não entram aqui em
discussão) porque aquele povo não tinha fé; [esses sinais] eram dignos de
grande admiração pois que poderosíssimos para subjugar os corações mais duros,
compelindo os homens a crerem. Eu não vou pedir para que você (Vigilâncio) me
diga que esses sinais são para os infiéis, mas para responder a esta questão:
como é que essas poeiras e cinzas indignas encontram-se associadas com este
maravilhoso poder de sinais e milagres? Eu percebo - e como percebo -, ó mais
infeliz dos mortais, o porquê de você ser tão preocupado e o que causa esse
temor: é que esse espírito imundo, que força você a escrever essas coisas, foi
muitas vezes torturado por essa "poeira sem valor", e continua sendo
torturado neste momento. E se no seu caso em específico ele disfarça as suas
feridas, em outros casos ele próprio confessa. Você é fiel seguidor dos pagãos
e ímpios Porfírio e Eunômio e acha que aqueles (sinais que ocorrem nas
basílicas dos mártires) são armadilhas dos demônios, sendo que estes não gritam
[ao serem expulsos], somente fingem seus tormentos. Deixe-me dar um conselho a
você: vá até as basílicas dos mártires; certamente um dia você será libertado;
você encontrará lá vários casos como o seu e receberá o fogo - não das velas
dos mártires que ora deixam você ofendido - mas das chamas invisíveis. Então
você confessará aquilo que agora nega e irá pronunciar livremente o seu nome,
pois esse que atualmente fala na pessoa de Vigilâncio é, na verdade, Mercúrio
(o mercenário); ou Noturno (que, segundo o "Amphitryon" de Platão,
dormia enquanto Júpiter, por duas noites seguidas, mantinha relações
adulterinas com Alcmena, gerando assim o poderoso Hércules); ou [seu] pai Baco
(famoso beberrão, portando a caneca em seus ombros, com sua face rubra, lábios
cheios de espuma e brigão descabeçado).
Capítulo XI
Qualquer dia desses, quando um terremoto repentinamente ocorrer nesta
província no meio da noite, obrigando-nos a acordar, você (Vigilâncio), o mais
prudente e sábio dos homens, começará a pregar pelado e nos trará à mente o
relato de Adão e Eva no paraíso. Eles, então, quando se lhe abriram os olhos,
ficaram envergonhados, porque viram que estavam nus, e cobriram suas vergonhas
com folhas de árvores. Mas você, que parece ter sido despido das suas roupas e
da sua fé, no repentino terror que o esmagou e ainda sob os efeitos da bebida
da última noite, mostrou sua sabedoria expondo sua nudez de maneira tão
evidente aos olhos dos irmãos. Tais são os adversários da Igreja! Estes são os
líderes que lutam contra o sangue dos mártires! Eis aí um espécimen dos oradores
que estrondam contra os Apóstolos! Ou melhor: eis aí os cachorros loucos que
uivam para os discípulos de Cristo!
Capítulo XII
Eu confesso o meu próprio temor, por imaginar que tudo isso provém da
superstição. Quando eu ficava bravo, ou tinha maus pensamentos em mente, ou
algum espírito da noite me seduzia, eu não me atrevia a entrar nas basílicas
dos mártires, eu tremia completamente, tanto no corpo quanto na alma. Talvez
você (Vigilâncio) ria e zombe, dizendo que isto chega ao nível das fantasias selvagens
das mulheres mais frágeis. Se é assim, eu não me envergonho de ter uma fé igual
daquelas [mulheres] que viram por primeiro o Senhor ressuscitado, que foram
enviadas aos Apóstolos e que, na pessoa da Mãe de nosso Senhor e Salvador,
foram recomendadas aos santos Apóstolos. Vomite suas indecências, se quiser,
para os homens que estão no mundo; eu jejuarei ao lado destas mulheres. Sim,
[vomite] para homens religiosos que testemunham sua castidade e que, com a face
pálida em razão da prolongada abstinência, demonstram a própria castidade de
Cristo.
Capítulo XIII
Alguma outra coisa também parece estar incomodando você (Vigilâncio).
Você está preocupado que a continência, a sobriedade e o jejum crie raízes
entre os povos da Gália e as tavernas desse lugar deixem de funcionar. Então
você será incapaz de manter as suas vigílias noturnas diabólicas e diversões
entre as bebidas. Ademais, fiquei sabendo a partir daquelas mesmas cartas [dos
presbíteros Ripário e Desidério] que, desafiando a autoridade de Paulo, ou
melhor, a de Pedro, João e Tiago - que concederam o direito de apostolado a
Paulo e Barnabé e ordenaram que se lembrassem dos pobres - você proíbe que
qualquer socorro pecuniário seja remetido para Jerusalém, para o socorro dos
santos. Agora, se eu abordo esta questão, você imediatamente solta a língua e
vocifera que estou defendendo a minha própria causa. Evidentemente, você foi
tão generoso para a comunidade inteira que se não viesse a Jerusalém para
torrar todo o seu dinheiro ou o dos seus patrões, todos nós estaríamos à beira
da fome. Eu digo o que o bem-aventurado Apóstolo Paulo disse em quase todas as
suas epístolas! Ele ordenou para as igrejas dos gentios que, no primeiro dia da
semana (=domingo), isto é, no dia do Senhor, as ofertas feitas por cada um
fossem remetidas para Jerusalém, para socorrer os santos, e isso seria
observado pelos seus seus discípulos, bem como por aqueles aprovados por estes.
E se isso não devesse ser feito, ele mesmo enviaria ou levaria [para Jerusalém]
o que recolheu? Também nos Atos dos Apóstolos, quando se dirigiu ao governador
Félix, ele disse: "Depois de muitos anos, eu subi a Jerusalém a fim de
levar esmolas e ofertas para a minha nação, e para cumprir os meus votos, tendo
sido encontrado me purificando no templo". Por que ele não distribuiu em
alguma outra parte do mundo, nas igrejas nascentes em que instruía na fé,
aqueles dons que recebeu dos outros? Mas ele percorreu longo caminho para dar
aos pobres dos lugares santos que, abandonando suas poucas posses por amor a
Cristo, convertiam todo o seu coração para o serviço do Senhor. Levaria muito
tempo agora se eu começasse a repetir aqui todas as passagens das suas
epístolas nas quais ele advoga e defende de todo coração aquele dinheiro que
seria remetido para os fiéis de Jerusalém e locais santos. Não para gratificar
a avareza, mas para socorrer. Não para acumular riquezas, mas para suportar a
fraqueza do pobre corpo e para repelir o frio e a fome. E este costume continua
na Judéia até a presente data, não apenas entre nós, mas também entre os
hebreus. Isto é o que eles observam na lei do Senhor, dia e noite. E nenhum pai
sobre a terra, exceto o Senhor, pode ser protegido pelo auxílio das sinagogas e
de todo o mundo; assim, a desigualdade e a angústia de outros podem ser
reduzidas, pois a abundância que alguns têm pode suportar a necessidade de
outros (cf. 2Coríntios 8,14).
Capítulo XIV
Você (Vigilâncio) responderá que todos podem fazer isto em suas próprias
nações, caso contrário seus pobres nunca poderão ser auxiliados com os recursos
[pecuniários] da Igreja. Nós não negamos que a assistência deveria alcançar
todos os pobres, inclusive judeus e samaritanos, se estes aceitassem. Mas o
Apóstolo ensina que a esmola deve ser dada a todos, a começar, porém, por
aqueles que compartilham da mesma fé (Gálatas 6,10). E a respeito destes, o
Salvador disse no Evangelho: "Fazei-vos amigos das riquezas da injustiça,
[para que quando faltarem] vos recebam em habitações eternas" (Lucas
16,9). O quê? Podem estas pobres criaturas, com seus trapos e imundícies,
dominarem desse jeito, por furiosa ambição? Podem elas - que nada são, nem
agora, nem depois - possuírem habitações eternas? Não há dúvida de que não é a
simples pobreza, mas a pobreza em espírito, que é chamada de bem-aventurada.
Destes foi escrito: "Bem-aventurado aquele que ofereceu a sua mente para o
pobre e o necessitado. O Senhor o livrará naquele dia ruim". Mas o fato é
que, para suportar o pobre existente entre o povo comum é necessário dinheiro e
não a mente. No caso do pobre santificado, sua mente se ocupa dos santos
exercícios, e, por isso, recebe [a esmola] com rubor; e quando o que recebeu é
mortificado, se converte em coisas espirituais aquilo que eram coisas carnais,
beneficiando aquele que deu. É seu argumento (=de Vigilâncio) que aqueles que
mantêm o que têm e distribuem pouco a pouco entre os pobres, aumentam suas
posses e agem muito mais profundamente que aqueles que vendem todas as suas
posses e dão tudo de uma só vez. Porém é o Senhor - e não eu - quem dá a
resposta: "Se você quer ser perfeito, vá, vende tudo o que tem e dá aos
pobres. Depois vem e me segue" (Mateus 19,21). Ele (Cristo) fala para
aqueles que desejam ser perfeitos e que, como os Apóstolos, deixaram pai, barco
e redes. O homem que você aprova está sentado na segunda ou terceira fileira;
mesmo assim nós o recebemos para que se compreenda que o primeiro será
antecedido pelo segundo e o segundo pelo terceiro.
Capítulo XV
Permita-me acrescentar que os nossos monges não são dissuadidos da sua
firmeza por causa de sua língua de víbora e mordida feroz. Seu argumento a
respeito deles funciona assim: se todos os homens se isolassem e vivessem na
solidão, quem haveria para frequentar as igrejas? Quem sobraria para vencer
aqueles que se ocupam dos hábitos mundanos? Quem seria capaz de incentivar os
pecadores a possuir uma conduta virtuosa? De uma forma similar: se todos fossem
tolos como você, quem seria sábio? E ainda seguindo o seu argumento, a
virgindade não seria digna de aprovação, pois se todos fossem virgens, não
existiriam casamentos; a raça [humana] pereceria; os recém-nascidos não
chorariam em seus berços; parteiras perderiam os seus empregos e se tornariam
indigentes; e Dormilâncio, totalmente sozinho e encolhido de frio, mentiria só
para si mesmo. A verdade é esta: a virtude é coisa rara e não é perseguida por
muitos. Daí o pouco que foi dito: "Muitos são chamados, mas poucos são
escolhidos". A prisão estaria vazia... Mas a função de um monge não é
ensinar, mas sim lamentar, como uma carpideira, para si ou para o mundo, e com
receio de que se antecipe a vinda do Senhor. Conhecedor das suas próprias
fraquezas e fragilidades do seu corpo, ele (o monge) se preocupa com os
tropeços, para que não seja assaltado por alguma coisa e, assim, caia e se
quebre. Por isso, ele evita o sorriso das mulheres, particularmente o das mais
jovens, e se isola, temendo até mesmo aquilo que é seguro.
Capítulo XVI
Perguntará você (Vigilâncio): por que se retirar para o deserto? A razão
é óbvia. Para que eu não possa te escutar, nem te ver! Para que eu não possa
ser perturbado pela sua loucura! Para que eu não me ocupe com você! Para que os
olhos da prostituta não me tornem um cativo! Para que a beleza não me leve para
abraços irregulares! Você replicará: "Isto não é uma luta, mas uma fuga.
Permaneça na linha de batalha, coloque a sua armadura e resista aos seus
inimigos! E então, tendo vencido, receberá a sua coroa". Pois eu confesso
a minha fraqueza. Eu não lutaria na esperança de vencer, para não correr o
risco de perder em algum momento a vitória. Se eu fujo, eu evito a espada. Se
eu fico, ou eu venço ou eu sou derrotado. Que necessidade tenho eu de ignorar
as certezas e seguir as incertezas? Quer com o meu escudo, quer com os meus
pés, eu devo evitar a morte [certa]. Você que luta pode vencer, mas também pode
ser vencido. Não existe segurança em dormir com uma serpente do seu lado; é possível
que ela não me pique, mas também é possível que ela, após certo tempo, acabe
por me picar. Nós chamamos de mães aquelas mulheres que não são mais velhas que
irmãs e filhas, e não ficamos corados por encobrir nossos vícios com os nomes
mais pios. O que tem para fazer um monge na cela das mulheres? Qual o
significado dos olhares e conversas secretas que evitam a presença de
testemunhas? Amor santo não tem desejo inquieto. Ademais, o que já dissemos a
esse respeito deve ser também aplicado à avareza e todos os vícios que devemos
evitar pela solidão. Assim, ficamos afastados das cidades populosas para que
não sejamos compelidos a fazer o que nos pedem, não tanto pela natureza, mas
pela escolha.
Capítulo XVII
A pedido dos respeitáveis presbíteros - como já disse - eu me dediquei à
redação destas poucas considerações, em uma noite de trabalho, pois meu irmão
Sisínio, tem pressa de partir para o Egito, onde socorrerá os santos e, por
isso, encontra-se impaciente para ir embora. É uma pena, pois a questão por si
mesma é tão blasfema que leva à indignação um escritor que possui uma multidão
de provas. Mas se Dormilâncio pensa que abusará de mim mais uma vez, e se pensa
em disparar contra mim aquela mesma boca blasfema com a qual quebra em pedaços
os Apóstolos e mártires, certamente escreverei algo mais que estas linhas. Seja
como for, passarei uma noite inteira em vigília, em favor dele e das suas
companhias - sejam elas discípulos ou mestres - que pensam que nenhum homem
pode ser digno do ministério de Cristo, exceto se for casado e sua esposa for
vista com filhos.
* * *
Fonte: New Advent
(http://www.newadvent.org/)
Tradução: Carlos Martins Nabeto
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