Gustavo Corção
TUDO
o que venho observando nos caprichos da atualidade, no mundo e na
Igreja, leva-me dia a dia, irresistivelmente, à conclusão da mais
completa inutilidade de minha obstinação. Ou de minha obsessão.
Sim, ao contrário do famoso “homem moderno”, que se habitua a
tudo, apelidando de evolucionismo essa passividade por estar sempre
disposto a aceitar e a acostumar-se, até quererem todos se acostumar
a alguma nova imposição dos acasos — eu vivo fora da época
porque sou vagaroso e obsessivo. Para habituar-me ao que fizeram na
Igreja, eu precisaria de mais um século de reflexão e de exame de
pormenores. Ainda ontem um amigo que me julga em risco de pecar
gravemente contra a caridade, nos adjetivos e advérbios, veio
prevenir-me de que ando com a obsessão do que escreve Tristão de
Athayde. Talvez tivesse razão o amigo que me desaconselhava esses
ataques por não os merecer o atacado. Efetivamente sempre achei
pouco interessante a literatura de Tristão de Athayde, mas o caso é
que o Dr. Alceu Amoroso Lima foi um famoso líder católico de quem
recebi favores que não se esquecem; e acontece que não consigo
habituar-me às transformações e às frivolidades do personagem.
SERÁ
MEU o defeito, se a regra geral imposta pelo Destino de nosso tempo é
esse imperativo de habituar-se a tudo. Com mais uns três séculos eu
me habituaria ao teilhardismo do ilustre ex-líder-católico; mas
cinco ou seis anos é pouco! é muito pouco!
LEMBRAR-SE-Á
acaso o leitor de como se celebrava uma missa dez anos atrás? Não
preciso ir até Pio V nem até Pio X. Por uma singular coincidência
esses dois fantasmas da verdadeira tradição litúrgica foram ambos
canonizados. Mas não foram as idéias dos dois últimos papas santos
que prevaleceram. Alguma coisa levou os homens da Igreja a desconfiar
da coisa mais subversiva do mundo — a santidade.
NÃO
PRECISO lembrar-me de exemplos tão altos e tão distantes para gemer
em minha obsessão-recusa daquela outra espécie de recusa que marca
o mundo moderno. Mais perto de nós, quatro anos atrás, li num
jornal uma coisa chamada Institutio Generalis que
vinha explicar o que era a Cena Dominica (sive
Missa) do século XX acometido de uma trombose. Não entendi logo
e, desnorteado pela inflação de palavras vindas de Roma, nem me
passou pela mente a idéia de vir de lá o primor que apresentava a
missa de pernas para o ar e o padre, sim, o padre como presidente.
Pensei que a obra-prima vinha da CNBB ou do “Cavalo de Tróia”.
Sem nenhuma intenção de ser “corajoso” ou desrespeitoso, não
pude conter o meu juste courroux diante das bobagens
eclesiológicas escritas em tal documento, e especialmente no “ponto
7”, que a seguir se tornou famoso no mundo inteiro. Sem perder
profusa argumentação diante de tão triste texto, soltei apenas
algumas exclamações sucintas: Heresia! tolice! disparate! Eu
costumo ler três ou quatro vezes o que escrevo; e às vezes chego a
escrever quatro ou sete vezes, sem conseguir satisfazer-me. Às vezes
Deus me concede o descanso de me divertir com algum achado, mas em
geral é moderado o entusiasmo que tenho por esse amigo de 77 anos
que ora me aborrece, ora me faz companhia. Naquele dia não precisei
reler três vezes. Era evidente a asneira e ostensiva a injúria
feita à Cruz de Nosso Senhor.
DIAS
depois escreveram — creio que até um Bispo se moveu —
estranhando meus impropérios contra um papel vindo de Roma. O fato
de vir de Roma, “capeado” não sei como e assinado não sei por
quem, não modificava nem salvava o texto, que, evidentemente,
pregava “outra” missa, e portanto “outro evangelho”. São
Paulo, no primeiro capítulo aos Gálatas, aconselhava seus
discípulos a dizer “anátema!”. Eu disse: asneira!
Horrorizaram-se que eu pretendesse saber mais do que o Magistério da
Igreja. Defendi-me com facilidade: não! eu não pretendi saber mais
do que ninguém em Roma ou Avignon. Minha modesta pretensão
resumia-se em gabar-me de saber distinguir a voz de minha Mãe dos
relinchos do Cavalo de Tróia.
DEFENDERAM
o texto, atacaram-me, explicaram o texto, arrasaram-me; mas, passados
alguns meses, o mundo inteiro clamava contra o tal ponto 7, e ao cabo
de mais alguns meses o general cartaginês que invadira Roma (Anibal
Bugnigni) voltou ao texto já impresso e solenemente distribuído
pelo Orbe Católico, e remendou-o. O mundo católico contentou-se com
o remendo da palavra “sacrifício” num contexto pesado, grosso e
evidentemente inspirado do mesmo espírito que põe a missa de pernas
para o ar. Pensou que fora atendido, e contentou-se. Os outros, que
me criticaram e me lançaram em rosto o desrespeito pela papelada que
vinha “capeada” de Roma, não acharam um minuto de vagar e de
decência para me dar um pequeno telefonema congratulatório. Hoje,
habituaram-se todos ao desrespeito praticado contra o SANGUE do nosso
Salvador. E o novo Missal, além do texto litúrgico remexido, será
encadernado junto com a mesma obra-prima de Monsenhor Bugnigni, que
difunde por todo o mundo católico “outra” doutrina.
TODOS
se habituaram. E eu começo a desconfiar da inutilidade total de meu
ridículo esforço. É claro que nunca duvidei um só instante da
minha inutilidade para o serviço de Deus. Esta certeza é clássica,
ortodoxa e tranqüila. Sem sombra de amargura prostro-me diante do
Pai a oferecer-lhe meu nada. Mas, a par dessa atitude fundamental,
sempre tive a vocação de professor. Animal — professor. E por
isso sempre alimentei a ilusão legítima e inofensiva de que, no
nível dos homens, para a eletrônica ou para o catecismo, eu teria
alguma utilidade. Precisariam de mim. Fiz meia dúzia de coisas.
Escrevi livros. Dei aulas. Dou aulas menores e avulsas até por
telefone. É uma obsessão, como diz o amigo que ontem se queixava de
não me habituar eu ao “fenômeno” Alceu.
CÁ
me vejo, cavaleiro da Triste Figura, no fundo de minha caverna, mais
magro, mais velho, mais cansado. Lá fora o céu é azul, as árvores
são verdes e o vento passa devagar. Tudo no mundo parece afeito ao
que é, habituado, tranqüilo. O próprio mundo do homem daqui me
parece tranqüilo e afeito a seu mal-estar. Só eu me consumo a
ruminar o que fizeram — na Igreja da qual obstinadamente guardo uma
lembrança maravilhosa; mas começo a desconfiar da inutilidade total
deste ofício. “Quem? Quem, se eu gritar, me ouvirá entre as
hierarquias dos anjos?”
(O
GLOBO 28/03/74)
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