Todavia, o demônio não está desprovido de toda utilidade. Se, em relação
à Providência, os anjos e os demônios são regidos ao mesmo tempo em que os
homens, se, de outro modo, os espíritos celestes vêm em socorro aos homens
exilados sobre a terra, nos resta buscar as relações do diabo com os peregrinos
deste mundo; nela descobriremos a utilidade dos espíritos malignos.
Sobre os seres terrestres, o diabo possui certo poder; este espírito de
iniquidade o usa para tentar as almas, seja atormentando-as pela tribulação
temporal, seja ofuscando-as com ilusões miríficas.
Ora, este poder é recebido, e ele é recebido de Deus. Ele está, por
conseguinte, de acordo com o beneplácito divino, que permitiu ao demônio agir.
Os males que ele opera, Deus os reconduz em seu fim a si mesmo.
Em verdade, mesmo quando o mal acontece pela intervenção diabólica, seu
efeito é bem diferente entre os justos e os ímpios. Vimos quanto vigorosamente
a alma piedosa se forma na tentação. A alma depravada, em punição de sua
depravação, rola, por vezes, de pecado em pecado. Comentando o sexto pedido do
Pai Nosso, Agostinho conclui: "Satanás é, portanto, o autor das tentações,
não em virtude de seu poder natural, mas pela permissão divina. Deus quer
assim, ou punir os homens por seus pecados, ou prová-los e exercitá-los em sua
misericórdia."[1]
Os justos não têm nada a temer das sugestões do demônio. "O diabo
só tem permissão para vos tentar em uma certa medida... o tanto que vos seja
útil para exercitá-los, prová-los, desvendá-los a vós mesmos, vós que não vos
conheceis"[2]. Além do mais, é preciso ter em vista este outro princípio:
"O demônio pode, sem dúvida, vos sugerir um pensamento mau, mas somente
vosso consentimento pode torná-lo mestre de vossa alma; ele não pode entrar,
apesar de tudo, em vós"[3].
Não devemos julgar diferente em relação à tribulação: por ela, o demônio
não pode prejudicar além dos limites fixados pelo Senhor, pois ele não poderia,
mesmo por sua vontade, prejudicar os animais dos rebanhos[4]. Além do mais,
pelos abusos do espírito maligno, o ímpio é punido, o santo provado. É por isso
que sabemos que os demônios estão agrilhoados, como o santo Doutor notou,
comentando o livro de Jó: "É manifesto que sem a permissão de Cristo eles não
poderiam entrar nos corpos dos porcos; é preciso compreender da mesma forma que
eles não podem nada contra qualquer homem sem esta permissão. Ora, esta é dada
pela Justiça que governa todas as coisas, seja para provar os homens, seja por
um efeito da vingança de Deus que quer ou puni-los ou reconduzi-los ao
bem"[5].
Esse efeito bom não é menos obtido quando os demônios realizam seus
prodígios; sem o poder e a permissão dadas por Deus, eles não podem produzir
nada, porque da mesma forma que a malícia não vem do Senhor, não há, assim,
nenhum poder que não provenha de Deus. Desta forma, os magos do Faraó, com a
intervenção do demônio, puderam realizar prodígios admiráveis, mas eles não
puderam fazer tudo o que eles queriam[6]; Deus não concede a permissão de
nenhuma obra sem ter em vista a punição dos perversos e a instrução dos
infiéis.
"Pode-se compreender, por isso, que mesmo os anjos transgressores e
as potestades dos ares,... que dão aos magos o poder de produzirem todos seus
efeitos, não têm outro poder senão aquele que lhes é comunicado do alto. Ora,
este poder é-lhes dado, seja para enganar os enganadores - é por isso que ele
foi concedido aos egípcios e aos próprios magos - seja para advertir os fiéis a
não desejarem, como algo grandioso, operar semelhantes maravilhas, seja, enfim,
para exercitar, provar e manifestar a paciência dos justos."[7]
________________
Gérard Philips. La
raison d'être du mal, d'après saint Augustin. Louvain, Éditions du
Museum Lessianum, 1927.
[1] Fiunt igitur
tentationes per Satanam, non potestate eius, sed permissu Domini, ad homines
aut pro suis peccatis puniendos, aut pro Domini misericordia probandos et
exercendos (Serm. Dom. em Monte. II, 9, 34; P. L. 34, 1284).
[2] Ad mensuram enim permittitur tentare diabolus... Tantum permittitur
ille tentare, quantum tibi prodest ut exercearis, ut proberis, ut qui te
nesciebas a te ipso inveniaris. (Enarr. Ps. 61, 20; P.L. 36, 743, s).
[3] Et si diabolus aliquando aliquid suggerit, consentientem tenet, no
cogit invitum. (Serm. 32, II; P.L.38, 200).
[4] Mc 5, 11-13.
[5] et quemadmodum de porcis manifestum est, quod in eos non issent,
nisi permissi essent, sic intelligendum est nihil eos in quemquam posse, nisi
permissos: permitti autem justitia qua reguntur omnia, sive probationis causa,
sive vindictae, vel ad damnationem vel ad correctionem irrogatae. (Job 38,40; P.L. 34, 880). - Cf. C. Adv. Leg. II,
12, 39; P.L. 42, 663 - Enarr. Ps. 26, II, 5; P.L. 36, 201. - ib. 90, 2; P.L. 37,
1150 - ib. 96, 12; col. 1246, etc.)
[6] Ex 8, 18.
[7] Unde intelligi datur ne ipsos quidem transgressores angelos et
aereas potestates,... per quas magicae artes possunt quidquid possunt, valere
aliquid, nisi data desuper potestate. Datur autem vel ad fallendos fallaces,
sicut in Aegyptios et in ipsos etiam Magos data est;.. vel ad admonendos
fideles, ne tale aliquid facere pro magno desiderent;... vel ad exercendam,
probandam, manifestandamque justoru patientiam. (Trin. III, 7, 12; P.L. 42,
875).
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