"O mundo se perderá se os homens quiserem avidamente salvá-lo e se deixarem prender no visgo temporal."
Gustavo Corção
Na semana em que estavam reunidos bispos e frades, e até no mesmo dia em que foi publicado um “documento base” a ser debatido na II Conferência geral do episcopado da América Latina em Bogotá, saiu publicado num canto de jornal, sem nenhum destaque, um pequeno tópico de faits-divers a que quase ninguém deu atenção, embora também envolvesse um padre, que, como ninguém ignora, é hoje o mais jornalístico dos personagens, como já o previra o Apóstolo Paulo: “somos dados em espetáculo ao mundo”.
No episódio a que me refiro, o padre não dirigia nenhuma passeata nem conscientizava os camponeses. Passava pela praia quando viu ao longe no mar uma menina a se debater. Atirou-se na água e, nadando em direção à menina, conseguiu segurá-la quando já se afogava, e levou-a até um barquinho pequeno que remava em sua direção.
Ergueu a menina, colocou-a no barco pequeno demais para três e tentou voltar a nado para a praia. Faltando-lhe as forças, foi levado pelas ondas do mar. E assim morreu para salvar a menina o padre jesuíta que se chamava Flodualdo, nome tão liricamente brasileiro que me lembra a Vila Isabel de antigamente. E assim morreu o padre, realizando uma tarefa de seu ofício, morreu salvando ...
É a tal coisa, dizia eu outro dia a outro bom padre que me falava das dores da Igreja, é a tal coisa, basta aparecer um padre assim, um padre salvador, um padre padre, e logo se revolvem em nós as entranhas de ternura e respeito. Como gostaríamos de beijar aquelas mãos docemente ungidas para o ofício de salvar!
Depois de ouvir a história, cheia de lacunas e imprecisões, fixei-me na cena que vejo e torno a ver com obsessiva admiração: duas mãos que erguem uma hóstia viva por sobre as ondas do mar. “O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. O bom padre Flodualdo deu a sua vida moça e plena para salvar a menina desconhecida que se afogava. E não terá sido por mera coincidência que isso aconteceu na mesma semana do “documento base”, com que seus redatores pretendem salvar abstratas estruturas sócio-econômicas à custa de uma conivência com a revolução mundial que virá tirar definitivamente do altíssimo valor que ainda hoje damos a uma vida de menina.
Uma menina não é uma molécula social, uma parte, uma unidade numérica: uma menina é uma pessoa inteira, maior do que o mundo e diretamente ordenada a Deus, através de todas as comunidades e estruturas. É uma pequena coisa imensa que só um coração cristão pode entender ou adivinhar, porque o cristianismo consistiu e sempre consistirá essencialmente nesse jogo de Deus, em que as coisas grandes se tornam pequenas para que as coisas pequenas se tornem grandes.
Jesus-menino, em sua terrível e humílima encarnação, é o Deus recém-nascido que veio salvar os homens um por um.
A figura do padre que salvou a menina, e assim cumpriu bem uma tarefa de seu ofício, evocou-me logo outra figura de padre que, dias atrás, vi no batistério da paróquia a salvar outra menina. Os personagens principais são os mesmos, o padre e a menina, e mesmíssimo é o elemento, a água; mas agora, em torno da pia, o rito tem a majestosa tranqüilidade da liturgia: “Liturgy is passion recollected in tranquility”.
A cena que temos diante dos olhos é assaz conhecida e completamente destituída de qualquer suspense. Basta porém uma fresta de imaginação vivificada pela fé para vermos de repente, atrás do rito monótono, um relâmpago de eternidade. E então, sem perder sua mansa pequenez de rés-do-chão, a cerimônia ganha um destaque novo, e o padre nos aparece, quando estende a mão sobre a cabeça escura da criança, humilde como um escravo, majestoso como um rei, poderoso como Deus.
Quem pode perdoar os pecados? Haverá no mundo inteiro coisa mais bela do que a mão ungida que pode apagar os pecados? E logo me voltam à lembrança as mãos do padre Flodualdo a elevarem uma hóstia viva por sobre as ondas do mar.
Não esperem do padre serviços sociais portentosos, nem queiram que ele batize as “estruturas”, e muito menos que dê a comunhão à “realidade brasileira”. Nestas coisas eles poderão trazer os grandes princípios morais que a Igreja elaborou através dos séculos. Mais do que isto não saberão fazer melhor do que os outros homens. Ao contrário, se se empenharem demais só poderão trazer desordem e confusão.
Parece pouco o que lhes fica e todavia é imenso: pregar o Evangelho e batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Posso ainda acrescentar um serviço que o padre pode trazer ao mundo: o de desprendimento do mundo.
O mundo se perderá se os homens quiserem avidamente salvá-lo e se deixarem prender no visgo temporal; o mundo se salvará na medida em que os homens aprenderem a viver mais de leve, vivendo como quem não faz muito empenho, possuindo como se nada tivessem.
Creio na comunhão dos santos, na interligação de todos os atos humanos, na única e verdadeira socialização dos méritos e deméritos. Por isso creio no valor da oração, na transcendental utilidade da contemplação, e no imenso valor de tantos atos escondidos.
Dentro deste dogma infinitamente espaçoso, creio na fecundidade ramificada e sobrenatural do gesto daquelas duas mãos consagradas que arrancaram a menina das ondas do mar.
Haverá assim, em Bogotá, vinda do Brasil, alguma coisa a contrapor ao “documento base”.
(01/08/1968, A Tempo e Contratempo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Antes de postar seu comentário sobre a postagem leia: Todo comentário é moderado e deverá ter o nome do comentador. Caso não tenha a identificação do autor (anônimo) ou sua origem via link não seja identificada e mesmo que não tenha o nome do emitente no corpo do texto, bem como qualquer tipo de identificação, poderá ser publicado se julgarmos pertinente ou interessante ao assunto, como também poderá não ser publicado, mesmo com as devidas identificações do autor se julgarmos o assunto impertinente ou irrelevante. Todo e qualquer comentário só será publicado se não ferir nenhuma das diretrizes do blog, o qual reservamos o direito de publicar ou não, bem como de excluí-los futuramente. Comentários ofensivos contra a Santa Madre Igreja não serão aceitos; de hereges, de pessoas que se dizem ateus, infiéis, de comunistas só serão aceitos se estiverem buscando a conversão e a fuga do erro. De indivíduos que defendem doutrinas contra a Verdade revelada, contra a moral católica, de apoio a grupos ou ideias que, contrários aos ensinamentos da Igreja, ao catecismo do Concílio de Trento, ferem, denigrem, agridem, cometem sacrilégios a Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, a Mãe de Deus, seus Anjos, Santos, ao Papa, ao clero, as instituições católicas, a Tradição da Igreja, também não serão aceitos. Apoio a indivíduos contrários a tudo isso, incluindo ao clero modernista, só será publicado se tiver uma coerência e não for qualificado como ofensivo, propagador do modernismo, do sedevacantismo, do protestantismo, das ideologias socialistas, comunistas e modernistas, da maçonaria e do maçonismo, bem como qualquer outro tópico julgado impróprio, inoportuno, imoral, etc. Alguns comentários podem ser respondidos via e-mail, postagem de resposta no blog, resposta no próprio comentário ou simplesmente não respondido. Reservo o direito de publicar, não publicar e excluir os comentários que julgar pertinente. Para mensagens particulares, dúvidas, sugestões, inclusive de publicações, elogios e reclamações, pode ser usado o quadro CONTATO no corpo superior do blog versão web. Obrigado! Adm do blog.