"Não podendo, nos limites de um pequeno artigo, abordar metodicamente esses grandes problemas e desenvolvê-los, proponho algumas reflexões sobre as duas vontades do homem."
Gustavo Corção
Esta semana, compelido à busca de alguns textos em vista de
um estudo que ainda sonho escrever, passei-a quase toda a ler os autores
antigos: o Pe.Garrigou Lagrange, o Pe. Gardeil, e a incomparável Doutora Santa
Teresa de Jesus em cujas páginas não encontrei o texto exato que procurava, mas
encontrei o que não procurava, e que mais me valeu do que se tivesse alcançado
aquilo que por deliberação própria procurava. Aproveito para recomendar, na
leitura das coisas sábias e santas, este método da falta de método. Creio que o
simples fato de nos dispormos a ouvir as palavras de sabedoria nos coloca em
posição favorável dentro da comunhão dos santos. Parece que corre no céu um
frêmito de alegria, não somente nos grandes momentos em que uma alma faz
penitência como também nos pequenos instantes em que um ouvido se inclina para
ouvir as palavras da Vida. No prolongamento desta idéia, leitor amigo e
companheiro de aflições, pensemos no tesouro imenso que a Igreja há vinte
séculos nos oferece. Nesta semana, o passado que não passa descansou-me do
exíguo e aflitivo presente que logo passa sem que a maior parte de suas
frivolidades ganhe nobreza e solidez de passado. A maior parte da atualidade
não passa, perde-se, evacua-se, niiliza-se.
Lendo o Caminho da Perfeição de Santa Teresa d’Ávila,
encontramos, desde os primeiros capítulos a lição mais insistente, mais
monótona, mais aparentemente convencional dos autores espirituais: a do
desprendimento ou espírito de pobreza, que foi também a primeira palavra de
Jesus no sermão das Bem-Aventuranças.
Ora, por acaso ou favor de Deus, encontrei no belo livro de
Garrigou Lagrange, La vie eternelle et les profondeurs de l’âme, a mesma
doutrina exposta, não na linguagem ardente, hiperbólica e poética dos místicos,
mas na pausada entonação dos teólogos que passam a vida a arrumar as idéias e a
logo depois desarrumá-las amorosamente na longa conversação com aqueles que nos
trazem notícias das conversações que tiveram no céu da contemplação.
No caso presente, a lição que complementou a de Santa Teresa
foi aquela que nos veio lembrar o desdobramento da natureza humana em duas
partes: a da natureza genérica que temos em comum com os animais, e da natureza
racional que é específica do homem, e cuja espiritualidade o aproxima dos
anjos, e o faz imagem e semelhança de Deus. A este desdobramento de nossa
natureza corresponde um desdobramento das faculdades que relacionam o ser vivo
com a realidade exterior: a faculdade do conhecimento, e a faculdade do querer.
Não podendo, nos limites de um pequeno artigo, abordar metodicamente esses
grandes problemas e desenvolvê-los, proponho algumas reflexões sobre as duas
vontades do homem. A vontade inferior, ou apetite sensível, que ele tem em
comum com os animais, é dirigida para os bens sensíveis de sua mantença e sua
reprodução. Nos animais, essa vontade sensível é peculiar a cada espécie e
muito simplificada, e principalmente é limitada pela sociedade. <PNo homem,
a vontade espiritual é, de início, ontologicamente superior a todo o universo
sensível; e como se não bastasse essa soberania para dar ao homem uma coroa de
realeza, dotou-a Deus de tal abertura que, não apenas nenhum ser sensível, mas
nenhum ser criado poderá saciá-la e determiná-la. Em relação a tudo, aos mais
altos bens criados a vontade permanece disponível, insatisfeita, livre. Como,
porém, Deus nos escondeu a sua face, e a tênue luz da fé não basta para
convencer invencivelmente a vontade convalescente do pecado original, ocorre o
que de certo modo retoma a tragédia do primeiro pecado: a sede de infinito e de
universalidade da vontade espiritual se volta para baixo e projeta na vontade
sensível uma força nova de pluralização e de insaciabilidade. E então, em
contraste com a frugalidade dos animais, o homem aparece no quadro visível do
universo com uma polivalência de apetites e uma pluralização de conhecimentos
que constituem uma prova irrefutável de sua natureza especificamente superior e
irredutível à dos animais. Mas essa mesma estonteante variedade de conhecimento
e de vontade sensíveis nos dá uma evidência da desordem em que se acha tão
admirável natureza. Observemos bem, leitor, o trágico contraste: uma natureza
tão bem ordenada pode chegar a um estado de tão deplorável desordem. Imaginemos
mais detidamente o quadro de tal desordem: enquanto nos porões da alma se
instalou o supermercado de todos os desejos inventados, inúteis, impróprios e
indigestos, lá no salão nobre da vontade espiritual, deserto e silencioso, ela
atesta que o homem, por sua vontade mais alta, não sabe querer. Trocou o
infinito integral de Deus pelo desintegrado infinito do pó. E por aí se começa
a compreender o imenso acerto dos mestres espirituais que nos ensinam que, no
caminho da perfeição, isto é, da restauração da ordem, temos de começar pela
sola dos pés, pelo desprendimento, pela santa temperança que traz à ilharga,
como filha dileta, a virtude primeira do primeiro passo para Deus: a humildade.
Para compreender mais profundamente a gravidade abismal da
pavorosa intemperança do homem moderno, é preciso compreender que seu irmão
gêmeo é o orgulho direta e especialmente voltado contra Deus, e debruçado
avidamente sobre as criaturas.
E aqui cabe uma reflexão sobre a crise atual da Igreja. O
mal maior que dela nos advém não está no torrencial palavrório do que dizem nas
Conferências e nas Epístolas para atiçar o orgulho e a intemperança. A
contribuição que trazem é medíocre demais para nos incomodar. A grande
calamidade não está na tagarelice dos levitas estonteados, está no eclipse da
Igreja, no Silêncio da Mestra, está no que não dizem os que deviam dizer
palavras de condenação amorosa, de proteção, de sabedoria inspirada ― e por
subserviência ao século calam-nas. Felizmente temos ao alcance das mãos a
Igreja de todos os tempos. Temos as santas Doutoras, os sábios Doutores, e os
santos pontífices. E temos a Igreja do Céu cuja diligente Rainha não se esquece
um só instante da doce terra que tanto amou. Ave Maria.
18-01-75
Permanência n°144 -145,
Novembro-Dezembro 1980
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