"Como poderíamos conhecer os mistérios da salvação, que são
essencialmente sobrenaturais, sem a Fé na Revelação divina?"
Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.
A necessidade da Fé impõe-se absolutamente no fato de Deus
nos chamar a um fim sobrenatural — viver com Ele no Céu.
Para dirigirmo-nos ao Céu, ou orientar nossos atos para a
vida eterna, é preciso pelo menos conhecer, embora obscuramente, este fim e os
meios sobrenaturais, que são os únicos capazes de nos fazer consegui-lo.
Na verdade, não se quer se não o que se conhece.
Ora, sem a fé na Revelação divina, não podemos conhecer o
fim sobrenatural para o qual somos chamados. A Fé é pois absolutamente
necessária para nos salvar. "Ide e pregai", disse N. S. Jesus Cristo
aos seus apóstolos — aquele que crer será salvo, aquele que não crer, será
condenado.
Como poderíamos conhecer os mistérios da salvação, que são
essencialmente sobrenaturais, sem a Fé na Revelação divina?
Nunca ensinaríamos demais esta doutrina fundamental, e para
bem compreendê-la, é preciso considerar que há três ordens de conhecimento
essencialmente distintas e subordinadas.
1. — Há primeiramente a ordem sensível, a dos corpos, das
pedras, das plantas, dos animais, aquela onde se move o nosso corpo; conhecemos
a realidade desta ordem pelos nossos sentidos.
Ela tem a sua beleza: a das cores, a dos sons, a da
harmonia.
2. — Acima, há a ordem racional, a das verdades acessíveis à
razão. A esta ordem pertence a distinção do bem e do mal moral, que o animal
não saberá perceber. A esta ordem pertence ainda a nossa alma espiritual, com a
qual podemos conhecer sem revelação, a espiritualidade, a liberdade, a
imortalidade. A esta ordem pertencem as verdades naturais que a razão por suas
próprias forças pode descobrir sobre Deus, Criador do Universo, Providência
universal.
A visão do céu estrelado nos prova a existência de uma
inteligência divina que legislou todas as coisas. É ali o ponto culminante da
ordem da razão. Ela pode conhecer Deus pelo reflexo das suas perfeições nas
criaturas; ela porém não pode conhecer a vida íntima de Deus; as criaturas são
impotentes para no-la manifestar. Elas não têm com Deus senão uma semelhança
muito imperfeita. Aquele que não conhecesse o Soberano Pontífice senão por ter
visto seu palácio do Vaticano, seus empregados, por saber o lugar do seu
nascimento, a data de sua elevação ao pontificado, este não conheceria a vida
íntima do Soberano Pontífice.
Portanto, a razão abandonada a ela mesma não pode, apesar do
progresso das ciências ou da filosofia, chegar a conhecer a vida íntima de
Deus. Mesmo se este progresso continuasse por milhares de anos sem interrupção,
ela não atingiria o segredo das profundidades de Deus, ao lado do qual os
segredos do Oceano não são nada.
3. — Acima da ordem racional, há a ordem da verdade e da
vida sobrenatural, absolutamente inacessível aos sentidos e à razão. Os
segredos desta ordem, que são a profundidade mesma de Deus, sua vida íntima,
nos foram revelados por N. S. J. C.
Dizemos todas as manhãs, no fim da missa, no Evangelho de S.
João, "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era
Deus; n´Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens. Esta luz resplandece
nas trevas, e as trevas não a compreenderam". Ninguém jamais viu Deus.
O Filho Unigênito do Eterno Pai no-lo manifestou. "Mas
as trevas não o compreenderam". Os homens cegos pelo erro ou pela paixão,
não perceberam a luz sobrenatural que N.S. lhes trouxe, eles preferiram a luz
da sua razão, como alguém que preferisse miçangas a um diamante.
Há realmente três ordens, a dos corpos, a dos espíritos e a
da vida íntima de Deus e dos seus santos. Assim como há numa igreja o adro
exterior, a nave e o Santo dos santos ou tabernáculo de Deus vivo.
Ninguém pode entrar no Santo dos Santos, no céu, se não
receber a revelação divina. Ela é absolutamente necessária para se salvar. Por
exceção, aquele que não recebeu o batismo pode salvar-se sem a Fé, com as
primeiras verdades da revelação. As almas que nunca ouviram a pregação do
Evangelho nas regiões mais afastadas da África ou Oceania podem, se não
resistirem a voz da sua consciência e à graça interior, chegar de fidelidade em
fidelidade, e de graça em graça, à Fé. Deus, do seu lado, fará o necessário para
lhes revelar as verdades necessárias à salvação, ainda mesmo que Ele tenha de
enviar um Anjo ou um Missionário, como mandou o Apóstolo S. Pedro ao Centurião
"Cornélio".
Quantas vezes, missionários desgarrados, encontraram pobres
selvagens que estavam morrendo e os esperavam antes de entregar suas almas a
Deus.
Relata-se nos Anais das Missões, que um Missionário muito
desejoso de ir para a China pediu por muito tempo aos seus superiores licença
de partir para lá, e finalmente alcançou a permissão; apenas tinha chegado no
território da Missão, encontrou uma velha mulher que o esperava para morrer.
Ele a batizou, e logo depois ficou possuído de uma tal nostalgia, que pediu
para voltar para a Europa e voltou.
Por aí pode-se ver que ele só foi à China para a salvação
desta alma. Uma alma é mais do que um mundo. Fora a Providência divina que lá o
enviara. Tal é a necessidade da fé.
Qual é a sua natureza íntima? Digamos antes o que ela não é,
para destruir as falsas noções que dela tem o mundo, e veremos então melhor o
que ela é.
A fé cristã não é um sentimento natural de confiança em
Deus, como hoje muitas vezes o pretendem os protestantes liberais, que negam
todo sobrenatural e que identificam de um modo sacrílego a fé divina a um vago
sentimento religioso todo natural, que se encontra em todas as religiões.
Ainda mais porque a confiança refere-se à esperança e não
diretamente à fé, é mesmo a esperança que é chamada confiança em Deus, quando
ela descansa sobre a Fé nas promessas de Deus. A Fé não é também uma opinião
que considera o catolicismo como a mais viva das religiões.
Esta opinião pode nascer facilmente da leitura da história;
é uma opinião histórica e filosófica infinitamente inferior à Fé sobrenatural.
A Fé também não é uma certeza racional da verdade do
catolicismo. Pode-se bem convencer-se racionalmente, pelo exame dos milagres
que confirmam a pregação de Jesus e a vida da Igreja, que as verdades propostas
pela Igreja foram reveladas por Deus, mas esta certeza racional que vem do exame
dos milagres ou das profecias ainda não é a Fé. Não se penetra ainda na
intimidade da palavra sobrenatural de Deus; não se concebe senão materialmente,
pelos sinais sensíveis que a confirmam.
O Padre Lacordaire pôs admiravelmente este ponto em
evidência na sua 17a. conferência em "Notre Dame". Ele tinha
experiência própria destas coisas, porque vira de perto várias conversões. Ele
escreveu: "Certo sábio que estuda a doutrina católica, que não a repele,
que quer crer mas não consegue, vê exteriormente a doutrina católica, admite os
fatos, sente a sua força, concorda que existiu um homem chamado Jesus Cristo,
que viveu e morreu duma maneira prodigiosa, se enternece com o sangue dos
mártires, com a vida da Igreja, dirá quase: é verdade, e no entanto, nada conclui.
Ele se sente sufocado pela verdade, como se fica num sonho onde se vê sem ver.
Oprimido sobrenaturalmente por esta verdade que ele não pode sustentar
naturalmente, um dia este sábio ajoelha-se, sente a miséria do homem, levanta a
mão para o céu e diz: — "Do fundo de minha miséria, Ó Deus, eu clamo por
vós". — De repente alguma coisa se passa nele, uma escama cai dos seus
olhos, efetua-se um mistério. Ei-lo mudado. É um homem doce e humilde de
coração, pode morrer, conquistou a verdade.
Página admirável, na qual Lacordaire expõe o mais fielmente
possível a doutrina de Santo Agostinho e Santo Tomás e excede nisto a muitos
teólogos.
A fé é infinitamente superior a uma certeza racional, ela é
uma luz sobrenatural interior que só Deus nos pode dar. Fides est donum Dei,
diz São Paulo. E Nosso Senhor disse a São Pedro: "Tu és bem-aventurado,
Simão, filho de João, pois nem a carne nem o sangue te revelaram isto, mas meu
Pai que está nos Céus".
O Padre Lacordaire diz ainda muito bem. "O que se passa
em nós quando cremos é um fenômeno de luz íntima e sobrenatural. Eu não digo
que as coisas exteriores (principalmente os milagres) não operem em nós como
motivos racionais de credibilidade; mas a ação mesma desta certeza suprema, a
que eu me refiro, nos afeta diretamente como um fenômeno luminoso"; eu
digo mais, como um fenômeno transluminoso. Como se diz transatlântico, para
designar as regiões situadas do outro lado dos mares Atlânticos.
Se fosse de outro modo, como quereriam que houvesse
proporção entre nossa adesão (que seria natural), racional a um assunto que
excede ou a natureza ou a razão? Ora, aí não há proporção entre nossa
inteligência e o objeto que lhe é apresentado, e não poderá haver certeza.
Aqui nós temos que penetrar dentro de uma ordem nova, o
Infinito. — Acima da ordem sensível, da ordem racional, acima da ordem
angélica. A fé é pois uma certeza sobrenatural, fruto duma graça, de um dom de
Deus, duma iluminação e duma inspiração do Espírito Santo, como o diz o
Concílio do Vaticano I, que reproduz exatamente a doutrina do II Concílio de
Orange contra os semipelagianos.
É ao mesmo tempo uma certeza que pode ter um iletrado, isto
é, uma certeza que não vem do raciocínio, nem da história, nem da literatura,
nem da ciência; coisa admirável, é uma certeza que um pobre operário e uma
criança podem ter maior e melhor que os sábios: "revelasti ea
parvulis." É uma certeza transluminosa, apesar da obscuridade dos
mistérios que não parecem obscuros para nós senão porque luminosos demais em si
mesmos, como o sol, cujo esplendor ofusca o morcego; é uma certeza que exclui a
dúvida, toda dúvida deliberada.
Assim como uma intuição simpática põe num instante entre
dois homens o que a lógica não conseguiria em muitos anos, às vezes, uma
iluminação súbita esclarece o gênio.
Lacordaire diz ainda com muita razão, sobre esse assunto:
"Um convertido vos dirá: eu li, raciocinei, quis, e não consegui; mas um
dia, sem que eu possa dizer como, na esquisa de uma rua, ao pé da minha
lareira, eu não sei, mas já não era mais o mesmo, eu tinha fé; depois li de
novo, meditei, confirmei minha fé pela razão; mas o que se passou em mim no
momento da convicção final é de uma natureza absolutamente diferente de tudo
que havia precedido..."
Lembrai-vos dos dois discípulos que iam a Emaús. Poder-se-ia
para ilustrar esta doutrina, citar o exemplo de Ernesto Psichari, neto de
Renan. Ele tinha perdido a fé. Em Marrocos percebeu que os europeus, apesar da
sua civilização, não tinham mais prestígio junto aos muçulmanos, porque não
rezavam mais, porque não sabiam mais nada do Além. Os muçulmanos julgavam-se
superiores a eles. Pouco a pouco no deserto, Psichari reconstitui seu Credo,
não crendo ainda, mas pressentindo que ia receber a graça da fé.
É o caso ainda de Massis, que não tinha mais nenhuma objeção
e, não obstante, só recebeu a graça da fé no momento do batismo de sua filha.
Assim como o Dr. Leseur, que tendo se casado com uma mulher
muito cristã, converte-se um dia vendo-a rezar, e hoje é: Padre Leseur,
dominicano.
Qual é o papel e a necessidade desta luz sobrenatural da fé?
Ela ainda não nos dá a evidência dos mistérios da salvação
que permanecem obscuros. A fé é livre. É preciso querer crer, sob a graça, para
crer efetivamente.
Ela confirma a credibilidade racional destes mistérios
garantidos por tantos sinais.
Mas sobretudo esta luz eleva nossa inteligência para nos
fazer aderir sobrenaturalmente e infalivelmente à palavra sobrenatural do Pai
Celeste.
De maneira que se pode aderir formalmente a uma verdade
sobrenatural, manifestada pela revelação sobrenatural de Deus, sem que nossa
inteligência seja sobrenaturalizada, sobrenaturalmente esclarecida,
proporcionada à verdade divina que ela deve admitir? Sem esta graça haveria uma
desproporção sem medida.
Enquanto o demônio que perdeu a fé infusa não adere senão
materialmente à palavra de Deus, por causa da evidência natural dos sinais
milagrosos que a confirmam, o fiel, este, esclarecido pela luz infusa da fé, compreende formalmente e
espiritualmente a palavra de Deus proposta pela Igreja, penetra-a, está disposto
a saboreá-la.
Ele tem como que um senso musical que lhe permite apreciar a
divina sinfonia da palavra de Deus, enquanto o demônio perdeu o senso superior
desta harmonia divina. Como disse Mons. Gay, a luz da fé é "a coroação
divina da nossa inteligência, um diadema de luz celeste, com que a mão terna de
Deus circunda nossa fronte invisível, numa imensa extensão de nossas fronteiras
espirituais... nossa proporção intelectual com a vida íntima de Deus."
"Ela é, acrescenta ele, como que um ouvido sobrenatural, e também um olho,
ou melhor ainda, ela é a aurora da visão sobrenatural, enquanto que a razão não
é a aurora da fé."
"Fides est sperandaraum substantia rerum argumentum non
apparentium" (Heb 11) "A fé é a substância das coisas que devemos
esperar, a certeza daquelas que não vemos".
Os bens futuros estão na nossa fé, como a árvore está na
semente, a flor na pivide, esperando o desabrochar.
A luz da fé não somente sobrenaturaliza nossa inteligência,
mas lhe dá uma certeza infalível dos mistérios da salvação. Esta certeza que
descansa sob a primeira verdade reveladora, sob a autoridade de Deus, Criador
da graça, é superior à dos sentidos, à da razão. Estamos mais certos do valor
infinito de uma Missa do que da existência da terra sobre a qual nós andamos,
ou da impossibilidade do círculo quadrado. É por esta certeza, toda divina, que
os mártires morreram. Mais vale perder a vida do que a fé.
Por que então, apesar desta luz sobrenatural, os mistérios
da salvação permanecem obscuros?
É porque nós não os vemos imediatamente neles mesmos, mas
somente na palavra divina que no-los revela. E não os podemos ver diretamente,
porque são luminosos demais para nossos olhos. Por causa de seu demasiado
esplendor nos parecem obscuros, como o sol deve parecer obscuro ao pássaro da
noite, que não pode suportar seu brilho.
Esta virtude da fé está tão profundamente impregnada na
alma, que só o pecado da infidelidade pode fazer perdê-la. Pode-se perder a
Caridade e a graça santificante, sem perder a fé; ela fica no pecador como a
raiz da árvore que foi cortada e quer nascer de novo. Por isso é que é tão
grave o pecado contra a fé, que rejeita a autoridade infalível de Deus. Mais
vale perder a vista que perder a fé, melhor ainda, mais vale perder a razão ou
a vida, que perder a fé.
Se é esta a necessidade e a natureza da fé, como viver no
espírito de fé?
Para viver humanamente e não como um animal, é preciso viver
à luz da razão, e não somente à luz dos sentidos: para viver cristãmente e não
como um pagão, é preciso viver à luz da fé e não somente à luz da razão. São
Paulo na Epistola aos Hebreus, cita os mais heróicos exemplos de espírito de
fé. (11, 8 ss). "É pela fé que Abraão, por ordem de Deus, deixa seu país,
parte sem saber para onde ia, para os países desconhecidos, que ele devia
receber como herança. É pela fé que o mesmo Abraão prontificou-se a imolar seu
filho único, Isaac, apesar de Deus lhe ter dito: 'É de Isaac que terás tua
posteridade.' Ele prontificou-se no entanto a imolá-lo por ordem do Altíssimo,
pensando que nada é impossível a Deus, mesmo ressuscitar os mortos. Foi pela fé
que Moisés deixou o Egito, sem temer a fúria do rei, e ficou inabalável como se
tivesse visto o Invisível. Foi pela fé que os Israelitas atravessaram o mar
Vermelho que engoliu os egípcios. Foi pela fé que os profetas venceram os reis,
efetuaram a justiça, obtiveram o efeito das promessas, fecharam a goela dos
leões. Foi pela fé que outros sofreram os ultrajes e os chicotes, as prisões e
as correntes, foram lapidados, esfolados e morreram pelo fio da espada. Eles
partiram errantes, pelas montanhas, na indigência, na aflição e angústia,
aqueles dos quais o mundo não era digno. "Todos, diz São Paulo (5, 14),
morreram na fé, não tendo ainda recebido o bem prometido, não tendo ainda visto
o Cristo, mas eles contemplavam-no e saudavam-no de longe, confessando que eles
eram estrangeiros e viajantes sobre a terra; pois homens que falam assim,
mostram bem que procuram uma Pátria.
Eis os exemplos que nos deram aqueles que vieram antes de
Jesus Cristo. Que faremos nós, que viemos depois de Jesus Cristo, beneficiados
pela sua luz e pela sua graça para viajar para o céu sob a conduta de sua
Igreja?
Para viver no espírito da fé, é preciso sempre considerar à
luz da fé: Deus, nós mesmos, o próximo e os acontecimentos.
1. — Deus. Haverá necessidade de dizer que é preciso
considerar Deus à luz da fé? Infelizmente é, e é muito necessário. Não
consideramos muitas vezes Deus através dos nossos preconceitos, à luz de nossos
sentimentos muito humanos, mesmo de nossas pequeninas paixões, contrariamente
ao testemunho que Ele dá de si mesmo na Sagrada Escritura? Não nos acontece
pensar, em nossa presunção, duma maneira mais ou menos consciente, que a
Misericórdia de Deus é para nós, e a Justiça para os outros? E ao contrário, em
certos momentos de desânimo, não nos acontece duvidar do Amor de Deus por nós,
de sua misericórdia sem limite?
Nós consideramos às vezes a infinita perfeição de Deus do
miserável ponto de vista de nosso egoísmo, de nosso amor-próprio, de nossas
suscetibilidades ressentidas, em vez de considerá-la no ponto de vista de nossa
salvação e do bem geral da Igreja. No ponto de vista da fé, Deus aparece, não
através de nosso egoísmo, mas através da vida e da morte de Jesus, através dos
mistérios da Igreja, da Eucaristia e da Comunhão dos Santos.
Oh, como o olhar dos santos era puro! E como desde este
mundo entreviam Deus pelos olhos da fé!
Santa Catarina de Sena, em seu admirável
"Diálogo", nos fala destes olhos da fé e das necessidades da
mortificação interior da vontade própria e do julgamento próprio. Somente esta
mortificação pode purificar nosso olhar e fazer cair esta venda de nosso
orgulho, este terrível "velamen", este véu do qual nos fala São
Paulo, que impede ver as coisas divinas, ou deixa ver apenas as sombras e as
dificuldades.
Consideremos Deus à luz da fé e também a humanidade toda
santa de nosso doce Salvador Jesus Cristo, seu Coração Sagrado, sempre aberto
para nós; a Virgem Maria, a Igreja, corpo místico de Jesus Cristo. Consideremos
do ponto de vista da fé os Sacramentos, nossa comunhão quotidiana, a absolvição
de cada semana, nosso ofício, nossa leitura espiritual, a Sagrada Escritura,
palavra de Deus. Como tudo isto é prodigiosamente grande à luz da fé! E como
tudo isto empalidece à luz de nossos preconceitos e da rotina. Sob esta luz
apagada, as coisas mais sublimes tornam-se banais, a Santa Comunhão não é senão
uma cerimônia.
2. — Devemos nos ver, a nós mesmos, à luz da fé.
Se não nos virmos senão à luz natural, só vemos em nós as
nossas qualidades naturais e nos exaltamos; vemos também às vezes os nossos
defeitos e desanimamos.
Freqüentemente esquecemos de ver à luz da fé os tesouros
sobrenaturais que o Senhor depositou em nós, e os obstáculos que os impedem de
frutificar.
O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é a graça
recebida no Batismo e restituída na absolvição; não é a graça a vida divina,
germe da glória? O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é o fruto das
comunhões quotidianas. O tesouro sobrenatural que trazemos em nós é a
Santíssima Trindade que habita em nós. O tesouro sobrenatural que trazemos em
nós é a vocação que nos alcançará, se não resistirmos a ela, todos os socorros
necessários, para chegar à perfeição e finalmente ao céu.
Os obstáculos são falta de espírito sobrenatural, de
espírito de fé, a leviandade que nos faz falar e agir como pagãos, que nos tira
o recolhimento pelo qual se reconhece um discípulo de Jesus Cristo. Os
obstáculos são ainda o desejo de ser a cabeça, quando talvez devemos nos
contentar de ser a mão.
3. — Consideramos bastante o próximo à luz da fé?
Muitas vezes vivemos à luz natural da razão deformada pelos
nossos preconceitos, nossas paixões, nosso orgulho, nosso ciúme, e desde então
aprovamos no próximo aquilo que humanamente, naturalmente nos agrada. Aquilo
que é conforme aos nossos gostos naturais, aos nossos caprichos, aquilo que nos
é útil, aquilo que nos faz valer, aquilo que ele nos deve. Condenamos nele
aquilo que nos incomoda, muitas vezes o que o torna superior a nós, aquilo que
nele nos faz sombra. Quantos julgamentos temerários, julgamentos duros,
impiedosos provém do nosso olhar obscurecido pelo amor próprio e pelo orgulho.
Quantas maledicências e calúnias mais ou menos conscientes.
Se nós soubéssemos ver o próximo à luz da Fé, com o olhar
espiritual muito puro, então veríamos em nossos superiores, os representantes
de N. S. e nós lhe obedeceríamos sem os criticar, ao pé da letra e de todo
coração, como a Nosso Senhor Ele mesmo.
Nas pessoas, que naturalmente não nos são simpáticas, nós
veríamos antes de tudo, as almas resgatadas por Nosso Senhor, que fazem parte do
seu corpo místico e que talvez estejam mais perto do que nós do seu Coração
Sagrado.
Nosso olhar sobrenatural atravessaria este envelope opaco de
carne e de sangue que nos impede de ver as almas, e faz com que muitas vezes
vivamos longos anos ao lado de belas almas sem perceber.
É necessário merecer ver as almas, o que nos permitirá de
lhes dizer verdades salutares e de ouvi-las da parte delas.
Não é por acaso que duas almas se encontram. Assim como as
pessoas que naturalmente nos agradam, se nós as víssemos bem à luz da Fé,
descobriríamos nelas qualidades e virtudes sobrenaturais que elevariam muito
nossa afeição e a purificariam. Veríamos nelas também, com benevolência, os
obstáculos ao reino perfeito de Nosso Senhor, e nós poderíamos, com a verdade
caridade, dar-lhes um conselho amigo, aplicar o que Santo Agostinho diz em sua
regra sobre as delicadezas da correção fraternal, que deve proceder do amor de
Deus e o fazer crescer na alma de nosso próximo.
4. — São os acontecimentos que precisaríamos ver à luz da
Fé, para viver verdadeiramente no espírito da Fé. Os acontecimentos felizes,
para que eles não nos exaltem e os acontecimentos infelizes, para que eles não
nos desanimem.
Digamos que tudo, mandado ou permitido por Deus, e que tudo,
mesmo o mal, deve finalmente, queira ou não queira, concorrer para sua glória.
Em todo acontecimento podemos encontrar um aspecto sensível,
acessível aos sentidos, um aspecto racional, acessível à razão, à história
profana; são as leis naturais que governam os fatos — depois há um aspecto
sobrenatural, acessível à Fé. E o lado pelo qual este acontecimento concorre à
Glória de Deus é o dos eleitos.
Vede, à luz da Fé, a expulsão dos religiosos e das
religiosas, ou das atrocidades cometidas ultimamente pelos Comunistas na
Espanha.
Existe nestes acontecimentos qualquer coisas que escapa à
razão, mesmo à perspicácia maligna dos perseguidores. Os sentidos vêm nesses
acontecimentos um manancial de dores, a razão, uma obra iníqua. Em face da Fé,
existe neles muito mais. Existe aí um castigo para muitos. Existe aí uma
provação para todos, provação que não nos deve lançar no abatimento, mas que é
a condição dum bem superior.
A Igreja é perseguida. Nosso Senhor está ao seu lado; Ele
parece dormir como dormia na barca durante a tempestade no Lago de Genesareth;
mas uma só palavra foi suficiente para apaziguar os ventos e as vagas.
Se vemos este acontecimento à Luz da Fé, não ficaremos muito
surpreendidos. Nosso Senhor o anunciou no seu Evangelho. Não ficaremos
irritados nem desanimados. Rezaremos pelos perseguidores, pelos perseguidores
os mais aguerridos, e pensaremos que nossa vida religiosa deve ser mais fervorosa
que no passado. Vede as guerras à luz da Fé, as divisões dum país, as
rivalidades mesmo entre os católicos. Vede todos esses acontecimentos à luz da
Fé, os acontecimentos felizes não nos exaltarão, os infelizes não nos abaterão.
Mesmo as injúrias, depois do primeiro sobressalto da
natureza, nos parecerão como permitidas
por Deus para o progresso de nossa alma, como quando Davi foi insultado por
Semei.
Nossa Mãe do céu viveu plenamente do espírito de Fé,
sobretudo aos pés da Cruz. Quando Jesus parecia definitivamente vencido, ela
não cessou de crer que Ele era o Filho de Deus vivo e que dentro de três dias
ressuscitaria como Ele havia predito.
Para entrar na profundidade ou nas atitudes de Deus, é
preciso que a Fé se torne penetrante e saborosa; é preciso que, esclarecida
pelo dom da inteligência e da sabedoria, ela se torne contemplativa. Para isto,
é preciso saber sacrificar certas exigências injustificáveis da razão
raciocinadora; é preciso lembrar-se que acima da evidência racional, existe o
mundo infinitamente superior dos mistérios sobrenaturais. Da mesma maneira, diz
Santo Tomás, é preciso que o sol se esconda para que se vejam as estrelas e as
profundidades insondáveis do firmamento, aquele que não quer ver senão à luz da
razão e não se deixa conduzir mais alto, pela luz da Fé, assemelha-se àquele
que não quis contemplar o esplendor do céu estrelado porque não o podia ver à
luz do sol. Se, ao contrário, o sol desaparecesse, é um número imenso de
estrelas, outros sóis, que nos aparecem na beleza da noite: é o símbolo
esplêndido das verdades da Fé e de sua harmonia na obscuridade, superior à
noite do espírito.
(A Ordem, Janeiro de 1939. Digitação e atualização
ortográfica: PERMANÊNCIA)
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