"A Igreja está
neste mundo para guardar e distribuir o Preciosíssimo Sangue; está para
preparar uma constelação de almas escolhidas que brilhem pelo exemplo da
piedade, que ardam pelo calor da santidade. Assim, estrela de Belém seguindo
agora não o curso que trouxe os magos ao berço do Menino-Deus, mas seguindo o
itinerário que leva àquele outro formidável berço de Jesus erguido no Calvário
ao longo dos séculos e séculos, já que Ele nos prometeu: estarei convosco todos
os dias até a consumação dos séculos - O esvaziamento católico - GC"
Gustavo Corção
Um leitor que
se diz assíduo, numa longa conversa telefônica, estranhou o pós-conciliar. O
leitor entende o termo como se significasse a mesma Igreja Católica, na era
pós-conciliar. Bem sei que nesse período conturbado continua a existir, na
terra, a Igreja Católica dita militante. Ora, minha sofrida e firme convicção,
tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a Religião
Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a religião
ostensivamente apresentada como "nova",
"progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou
diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e
servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra. E note
bem, leitor: quando acaso der a essa outra o nome de Igreja pós-conciliar não
quero de modo algum insinuar a infeliz idéia de que, após o Concílio, a Igreja
de Cristo se teria transformado a ponto de tornar-se irreconhecível, devendo os
fiéis de bem formada doutrina católica acreditar nessa nova forma visível da
Igreja, por pura disciplina, ainda que a maioria das pregações e dos novos
ensinamentos sejam ostensivamente diversos e as vezes opostos à doutrina
católica. Não! A Igreja Católica e Apostólica continua a existir na era
pós-conciliar, submetida a duras provações, mas sempre permanente e fiel
guardiã do depósito sagrado.
Se o leitor me perguntasse agora quais são as
essenciais diferenças que separam as duas religiões, eu responderia: diferença
de espírito, diferença de doutrina, diferença de culto e diferença moral. Como
terei chegado a tão assustadora convicção? Com muito sofrimento e muito
trabalho, são milhares os católicos que chegaram à mesma convicção.
Começamos por confrontar os novos textos, as novas
alocuções, as novas publicações pastorais com a doutrina ensinada até
anteontem. A começar pelos textos emanados dos mais altos escalões, citemos
alguns daqueles que mais dolorosamente e mais irresistivelmente nos levaram à
conclusão de que se inspiram em outro espírito e se firmam em outra doutrina.
Entre os textos conciliares, citamos os seguintes: Constituição Pastoral sobre
a Igreja e o Mundo Atual (Gaudium et Spes); Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis
Redintegratio); Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis
Humanae); Discurso de Encerramento do Concílio, 7 de Dezembro de
1965; Institutio Generalis do Novus Ordo Missae:
Ponto 7 (na primeira redação, de 1967, e principalmente a segunda redação de
1970). Além desses documentos dos mais altos escalões, poderíamos encher as
páginas deste jornal com obras e pronunciamentos de cardeais, arcebispos,
bispos e padres que eram bisonhos, retraídos e discretos quando tinham vaga
consciência de suas deficiências filosóficas e teológicas e que subitamente
descobrem que na "nova Igreja" podem dizer tudo o que lhes vem à boca
que fala ou à mão que escreve. O que menos se conhece é a Teologia, mas o que
mais abunda na Nova Igreja são os "teólogos da libertação".
Devemos dar especial atenção aos pronunciamentos
das Conferências Episcopais que rarissimamente dizem coisa parecida com a Santa
Religião ensinada por Jesus Cristo. Basta prestar atenção, ler, e comparar toda
a prodigiosa logorréia dos reformadores com o que já lemos dos santos doutores,
dos santos Papas, e de toda a Tradição católica. Eles não falam a mesma língua
de nossa Mãe Igreja, não usam o mesmo léxico, não seguem o mesmo espírito.
Evidencia-se com brutalidade dolorosa o fato de ter sido a Igreja invadida, ou
de ter se deixado seduzir pelos mesmos inimigos que combatia. Uma das notas
mais características do novo espírito é a da tolerância erigida em máxima
virtude, e o correlato horror por qualquer espécie de luta ou combate. Os novos
levitas corrompem a juventude, destroem as famílias, mas quando alguém ergue a
voz pedindo punição severíssima para os seqüestradores e para os traficantes de
drogas, logo começam a esganiçar gritinhos: Violência, não! Violência, não!
E aqui encerro a concisa resposta que dou ao leitor
escandalizado: foi a atenta observação desses fatos, foi a paciente leitura de
himalaias de mediocridade e foi a comparação gritante entre o que ensinam e o
que ensinaram os santos, e creio que foi principalmente a graça de Deus certamente
pedida cada dia, cada hora, nessa especial e gravíssima intenção, que nos
levaram a essas conclusões. Se é preciso usar o recurso dos gritos que tanto
usam hoje, gritarei eu também, e não esconderei a reação que tive em 1965 após
a primeira leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia: corri ao telefone
do amigo mais próximo já chorando, já engasgado de soluços que me sacudiam o
corpo todo. E gritei: eles estão loucos! Eles estão loucos! E mais não digo.
Vejo em seguida nos meios católicos um dilúvio de
calamidades pavorosas. Nas melhores famílias católicas, tradicionalmente
católicas, os jovens, pervertidos pelos professores de colégios católicos, se
transformam em anormais, comunistas, criminosos seqüestradores, ou em
inutilizados toxicômanos. Meu Deus! Como pode? Como pode? Como Pode? O mistério
da permissão divina nos traz vertigens quando pensamos em tantos bons pais tão
terrivelmente atingidos.
Mas quando pensamos que a crise de costumes que
dissolve todos os valores morais de uma civilização é principalmente gerada
pela impiedade e pelo orgulho dos homens, que reivindicam todas as liberdades e
todos os direitos; e principalmente quando pensamos que é exatamente nessa hora
sombria que os homens de Igreja julgam ter feito uma descoberta muito
inteligente, e muito oportuna – a de se abrir para o mundo e até a de nele
procurar inspirações para o novo humanismo que apregoam – então, com temor e
terror, pensamos que a misteriosa permissão divina, já nos foi profeticamente
revelada na Sagrada Escritura, e durará até o dia em que os homens descobrirem
apavorados que desprezaram Deus, que contrariaram Deus, que se riram de Deus.
E, nesse dia de espantosa desolação descobrirão "que não passam de
homens" e que só Deus é o Senhor.
Neste ponto da entrevista, o leitor me faz uma
pergunta muito séria e de importância capital:
— Qual é, na sua convicção, o traço principal,
o conteúdo essencial dessa Outra religião que o senhor vê nos recintos da
Igreja Católica?
— Mais uma vez insistido neste ponto: a
desordem que se observa nos meios eclesiásticos e que produz tais malefícios,
não pode ser apenas uma pura desordem. A desfiguração da Igreja do
Verbo Encarnado, isto é, da religião do Deus que se fez homem, tem uma figura:
a da religião do homem que se faz Deus. Essa é a figura da desfiguração.
— Não foi o próprio Papa Paulo VI quem disse
no discurso de encerramento do Concílio que "a Igreja de Deus que se fez
homem encontrou-se no Concílio com a religião do
homem que se faz Deus"?
— Exatamente. E se o amigo continuar a atenta
leitura desse documento, se convencerá de que não exagero nem me perco em
fantasias se lhe disser que a figura essencial da Outra é a de um humanismo que
se torna uma nova religião que difere do cristianismo por seu desolado
naturalismo, isto é, pela ausência da mais bela de todas as obras de Deus – a
ordem da graça e da salvação.
Eles tentam disfarçar a chatice e a tristeza
sinistra e feia, com retalhos de cristianismo sem vida mas a anemia
profunda do corpo sem sangue está na visibilidade da Outra que só serve para
eclipsar a Santa Visibilidade da Igreja de Cristo.
— E como poderá a Igreja Católica
desembaraçar-se desses equívocos e voltar a ser visível, dourada, um
pouco mais hoje, um pouco menos amanhã, mas sempre anunciando aos homens,
aprisionados no efêmero, um Reino que não é deste mundo?
— O senhor espera ainda ver neste mundo a
Igreja Militante em todo o seu esplendor?
— Não. A desordem é profunda demais e chegou
aos vasos capilares dos membros da Igreja. Se ela não fosse obra sobrenatural
de Deus eu diria, em termos usados pelos físicos, que a desordem é sempre
prodigiosamente irreversível.
E, no caso, a improbabilidade de tal recuperação
seria expressa por números espantosos como dez elevado a menos mil (10-1000)
que, na verdade, não exprimem nada. Não são números concretos nem entes de
razão; quando muito diríamos que só são entes de giz no quadro negro. Emile Borel
dizia francamente que, diante de tais improbabilidades, é melhor dizer
simplesmente que são impossíveis. Mas nós aqui estamos falando da
mais maravilhosa das obras de Deus:
"Deus qui humanae substantiae dignitatem
mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti"
E o que a nós parece impossível, é possível para
Deus. Mas nossa esperança teologal não nos obriga a esperar acontecimentos
neste mundo. No ponto da vida em que me acho, só posso esperar, pela
misericórdia de Deus e pelo Sangue de Cristo, a felicidade de ver brevemente a
Igreja do Céu em toda a sua beleza eterna e fora do alcance dos flagelos
humanos.
E é a alegria dessa esperança teologal que, nestes
dias de transição desejo aos meus leitores e companheiros de trabalho.
(O Globo, 29/12/1977)
Fonte: http://permanencia.org.br/drupal/node/519
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