“É a perpétua esperança de um mundo melhor; o que atesta que o mundo
presente não é satisfatório, não é o que se desejava que ele fosse.”
A IGREJA CONCILIAR, O MUNDO E A
TRANSCENDÊNCIA
J. B. Pacheco Salles
Dialogo com o Mundo: eis a máxima de
nossos dias, a grande preocupação, a última descoberta para os difíceis
caminhos do Espírito. E tendo partido das alturas de onde veio, deve ser
recebida como um sinal dos tempos, pois é possível que logo já não haja mais
tempo, e tudo tenha de ser finalmente resolvido diretamente em face da
Eternidade e da Transcendência, afastadas as sombras, as figuras, os enigmas e
as astúcias.
Por isso cumpre, e é urgente, estudar
para esclarecer os termos postos em presença: Dialogo – Mundo. O primeiro se
apresenta hoje pejado de conteúdo emocional; é uma palavra mágica, com muito
maior encantamento do que significado. O segundo, desde os tempos dos
pré-socráticos é um mistério para o homem, com sua conotação ambígua e
denotação cambiante e sibilina. Que é Mundo? Que não é Mundo?
E agora surge uma primeira
dificuldade. Diálogo supõe, imediatamente, uma pluralidade de sujeitos
dialogantes; com um só sujeito, com efeito, não se poderá obter mais do que um
monólogo. Alem do mais, os sujeitos realmente distintos devem apresentar uma
certa diversidade de opiniões, ou, pelo menos, de informação. Do contrário,
teríamos apenas um monólogo ampliado, em que uns se limitariam a fazer eco aos
outros e reciprocamente. Portanto, para dialogar com o Mundo é preciso não ser
Mundo, ou ser coisa diferente do Mundo.
Mas ai surge a questão: é que o
dialogo, alem de supor a pluralidade de sujeitos, supõe também um terreno comum
entre eles que torne possível uma linguagem igual e perfeitamente acessível a todos.
Ora, qual o terreno comum entre o Mundo e o que não é Mundo? Mesmo porque um
dos sentidos legítimos da palavra “mundo” é o de ser precisamente o terreno
comum daquelas pessoas que podem entre si dialogar, e na medida em que o podem.
Num certo sentido até, e numa alta
generalização, pode-se conceber como sendo Mundo tudo aquilo que pode ser
articulado de modo coerente e sistemático, numa linguagem comum, empregada por
algum grupo social. Conforme parece evidente, não existe mundo de um só (a não
ser patologicamente, como na esquizofrenia, onde a mente se precipita no caos).
E ainda naqueles casos em que alguém possa estar em completo isolamento, o seu
sentimento do mundo continua a ser o da cultura a que pertence.
Mundo é pois algo de essencialmente
compartilhável entre muitos: dai a sua necessária correlação com a cultura e a
linguagem. Por outro lado, entende-se por “mundo” um sistema ordenado e estável
de referências, a criar uma perspetiva geral e uniforme, onde se pode inserir a
atividade humana. É assim, por exemplo, que se pode falar no Mundo da Física,
no Mundo da Matemática, no Mundo da Historia, no Mundo da Arte, no Mundo da
Religião, no Mundo da vida quotidiana e até no Mundo dos mundanos, sem contar
vários outros aqui não enumerados.
Haverá entre estes vários Mundos uma
tal solidariedade que os torne simples manifestações de um só e mesmo Mundo
básico e total? Descobrir a chave do Mundo Total tem sido a constante ambição
do raciocínio científico, e, muito especialmente, a meta de todos os
racionalismos. Que os vários Mundos acima enumerados não são compartimentos
estanques, mas admitem múltiplas comunicações e influências, e o que parece
óbvio. Mais ainda, não se pode negar a existência, até certo ponto, de uma
efetiva gradação hierárquica entre eles…
A esta altura poderia alguém sugerir
que o Mundo básico, do qual todos os outros seriam meras traduções, e ao qual
todos deveriam ser reduzidos em última instância, seria o Mundo da Filosofia,
posto que a Filosofia se aplica ao estudo dos princípios fundamentais de todo o
conhecimento. Contudo, se há uma coisa que jamais os filósofos conseguiram
estabelecer foi um mundo próprio.
A República de Platão, governada
pelos filósofos, parece relegada definitivamente ao museu das utopias. O que,
no decurso da história, os filósofos têm feito, foi, sucessivamente, colocar
como sistema universal de coordenadas os princípios da Física, da Matemática,
da Lógica, da História, da Biologia, da Economia, da Estética, da Tecnologia,
quando não alguns princípios de nítida inspiração religiosa. (alias não seria
difícil descobrir uma teologia larvada em todo sistema filosófico). E por fim
veio o Existencialismo abalar a própria noção de mundo como algo coerente e
sistemático, transformando-o em simples correlatum de uma
consciência apavorada ou amalucada; ou ainda num enigma para ser decifrado;
exatamente para ser transcendido.
Estaria, por acaso, na Religião a
chave do problema, como pareceria decorrer das precedentes considerações? Mas a
Religião é caracterizada precisamente por ser extra-mundana: ela vem de
fora do mundo e aponta, e é um caminho para fora do mundo. É este o traço
essencial de uma religião autentica (pois existem as inautênticas, como se
verá). O Outro-mundo é um mundo inteiramente outro, de tal forma outro, que só
por uma analogia muito distendida, senão por mero espirito de simetria, pode
ser chamado “mundo”.
Em consequência, o dialogo de uma
autentica: religião com o Mundo acaba tendo o aspeto de uma altercação ou de um
testemunho contra esse mesmo Mundo, como é aliás fartamente documentado pela
Históoria. E o Mundo de uma religião autentica tem sempre o ar mortificado de
uma totalidade voluntariamente frustrada, de algo defetivo e incompleto
enquanto mundo, precisamente por e para estar aberto e voltado para a
Transcendência, para aquilo que não é Mundo, pois o Mundo da Religião
autêntica, em lugar de um centro absoluto de coordenadas referenciais, possui
um núcleo orgânico de Signos e Símbolos, de uma utilidade prática imediata
assaz reduzida e de uma eficácia bastante limitada para as tarefas
especificamente mundanas, mas cuja finalidade própria é projetar o homem, a
sociedade, a cultura, no espaço sideral da Transcendência, lembrando-lhe a todo
momento de que a sua habitação neste inundo é precária, transitória e
dececionante.
O Mundo da Religião autêntica é assim
apenas um pedestal sobre que se levanta majestosamente aquele núcleo de Signos
e Símbolos, dando-lhe consistência; e, tal como foi dito acerca do Outro-mundo,
do qual pretende ser um reflexo terreno, só por uma extremada analogia pode
chamar-se “mundo”. Assim era, por exemplo, o Mundo Gótico. Por
conseguinte, o verdadeiro diálogo da Religião com o Mundo consiste em
convence-lo a deixar de ser Mundo: “Não rogo pelo mundo, sinão por
aqueles que me destes, porque são vossos” (Jo 17,9); ao que
Bossuet acrescentou: “O mundo, ouve esta palavra que te condena. Deixa de ser o
que és para que Jesus ore por ti.”
O Mundo da religião inautêntica
Este é verdadeiramente um Mundo, com
a estrutura interna que lhe é própria, tendo ainda para mais consolida-lo a
aprovação de uma (qualquer) religião reconhecida, o que tranquiliza a
consciência dos homens. Ficam assim autorizados a fruir amplamente de todos os
bens do Mundo, e são mesmo impelidos a isso, desde que respeitados certos
limites morais. além disso, são até assegurados de um lugar pelo menos
confortável no Outro-mundo. Entretanto, mesmo quando tais
religiões admitem uma vida de alem-tumulo, contudo fica perdido o sentido da
Transcendência, pois o fulcro dos valores é posto neste Mundo, e o Outro- mundo
é concebido ao modo de um Mundo, ou de um sub-mundo, ou de apêndice deste
Mundo, ou até de um pis alter, como se vê tao claramente na
religião dos gregos da época clássica. (ou do prêmio em forma de sexo na fé
islâmica).
As religiões inautênticas da
imanência tendem para o eudemonismo e para o humanitarismo, em que acabam
dissolvendo-se, restando ao final do processo, já uma vaga animação espiritual,
já um resíduo declaradamente mágico ou chamanista, pelo qual os adeptos
procuram obter vantagens puramente terrenas, nada porém que de longe se
assemelhe a um acesso a Transcendência. Deve-se observar aqui que as religiões
podem ser autênticas ou inautênticas de fato ou de direito, conforme o sejam
pelo seu próprio sentido espiritual intrínseco ou pelo eventual estado de
espírito dominante em seus adeptos numa determinada época.
É assim que vemos surgir gradualmente
um anseio de transcendência entre os gregos, no culto dos mistérios. Seja como
for, autêntica ou inautêntica, essa religião se revela, tanto quanto a
Filosofia, incapaz de resolver o problema. O Mundo continua sem a sua chave de
cúpula; em lugar dela, aparece uma incômoda multiplicidade de tentativas de
cúpulas particulares, que, embora até certo ponto se escorem e mesmo se
articulem, não entram no mesmo projeto e por isso não chegam a fundir-se numa
só cúpula global, que dê ampla e adequada proteção ao homem.
E a situação é de fato paradoxal,
pois, como vimos, a ideia de Mundo implica uma Totalidade final; mas com meros
totais parciais de quantidades alíquotas, uma vez que de estruturas diferentes,
totais estes que tendem a estender-se ilimitadamente e não a integrar-se num
total final, o Mundo será sempre uma tentativa inacabada ou um wishful
thinking, nunca uma realidade plena e atual. Será sempre algo dependurado
num futuro mais ou menos próximo ou remoto. É a perpétua esperança de um mundo
melhor; o que atesta que o mundo presente não é satisfatório, não é o que se
desejava que ele fosse. E, quando por qualquer motivo não há mais futuro,
também não há mais esse Mundo.
Parece até que sem alguma dose de
sonho não há mundo possível. Talvez isto explique a voga do uso de
estupefacientes, da Science-Fiction, a revivescência dos cultos
mágicos e esotéricos, e a moda do marxismo. Será que a chave será encontrada,
por ventura, no Mundo da vida quotidiana ou quiçá mesmo no da vida mundana? Na
falta de melhor, convêm não desprezar nenhuma hipótese! Ora, para o Mundo
da vida quotidiana vivemos todos solidamente assentados sobre a Terra, a qual
por sua vez se acha solidamente encastoada no Sistema Solar, sob a proteção
reconfortante de Leis e Princípios de uma inabalável validade, ainda que
extremamente complexos e de árdua compreensão, se é que não de todo herméticos.
Igualmente na Terra tudo esta
minuciosamente regido por outras Leis e Princípios que se revestem da mesma
seriedade dos primeiros. E isto tudo é universalmente verdadeiro para todos os
lugares e todos os tempos. Em consequência, o Sol nascerá sempre na hora
prevista e seus eclipses serao cronometricamente exatos; as estações se
sucederão na ordem e na época assinaladas; o pão será entregue todas as manhãs
e com igual regularidade serão pagos os ordenados e os rendimentos dos capitais
e dos bens; o Progresso continuara garantindo um sempre maior bem estar, graças
às descobertas milagrosas da Ciência, possibilitadas pelo aparecimento
constante de Gênios em todos os seus ramos; a inteligência e habilidade dos economistas
evitará o surto de novas crises; a ONU conjurará o perigo de uma nova guerra
mundial; nenhuma bomba nuclear será deflagrada; e, num plano mais doméstico, a
Polícia garantirá com eficiência os direitos dos cidadãos, que se verão também
ao abrigo das perseguições dos potentes, e nem correrão o risco de serem
esmagados por alguma engrenagem desregulada da Administração Pública; a Justiça
Social triunfará sempre mais completamente, cada vez mais eliminando e por
toda a parte as desigualdades, de maneira que em breve todos poderão possuir as
mesmas geladeiras elétricas, os mesmos rádios, televisores, automóveis,
verdadeiros portentos mecânicos, aptos a tornar felizes os homens.
A Medicina marcará triunfos
espetaculares, conseguindo vencer males até agora incuráveis como o cancer; e,
enquanto isso não acontece, sempre se alimenta a esperança, fundada numa crença
secreta, de que, até lá, não se será atingido, bem como de que não haverá
terremotos, maremotos e demais cataclismas, sendo que a própria morte aparece
como algo recuado e confuso, possibilidade quase improvável para os cautelosos.
Para roborar essa crença, que consolida e da o toque final ao Mundo da vida
quotidiana, é de muito recurso a religião, isto é, a inautêntica.
E assim parece termos conseguido por
fim uma imagem global do Mundo, que articula num só sistema coerente de
referências a realidade natural juntamente com as atividades humanas. Contudo,
é de todo em todo patente a precariedade de suas suposições, a partir dos
postulados fisico-matemáticos até a crença totalmente irracional numa “boa
sorte”, que é o seu coroamento. Pode ser considerado um exemplo tipico de wishful
thinking, ingenuamente centrado num futuro para fugir ao presente, em que
(tal sorte e harmonia) é dolorosamente desmentido a cada momento.
Conclusão preliminar do Autor (por
AD)
O capítulo seguinte, – A
Transcendência, incia: «Poderia parecer, a vista das análises precedentes, ser
impossível escapar, quer ao perspectivismo, quer ao ceticismo; mas não é
verdade. Semelhante conclusão só seria procedente no caso de se identificar
Mundo com Realidade. Acontece, porém, que “Mundo” é o termo justamente
menos satisfatório de tomar consciência da realidade, como aliás, a esta
altura, já se podia prever. Evidentemente, não é aqui o lugar para se fazer um
levantamento completo dos vários modos e níveis da consciência. Para o fim que
nos interessa, ou seja, a caracterização do que seja – “Mundo”, basta lembrar
alguns princípios fundamentais. Antes de mais nada, deve-se ter em vista a sábia
advertência de Sto.Tomas de Aquino: “Quia vero rerum
essentiae sunt nobis ignotae, – virtutes autem earum innotescunt nobis per
actus, utimur frequenter nominibus virtutum vel potentiarum ad essentias
significandas” (De Veritate, Q. 1, a. 1 c). (Dado que a
essência das coisas não nos é conhecida, nem os seus poderes são revelados
pelos seus atos, frequentemente limitamo-nos ao uso de nomes para dar
significado a sua essência e potências, nomeando Realidade =Mundo).
Ora, o «Mundo» desconhecendo a
essência do homem, desconhece o ator central na realidade deste mundo, pode
conhecer suas ações, que são efeitos, mas não a sua causa que está “na essência
da alma, isto é, no que é mais intimo ao homem e onde mais, por conseguinte, se
pode esperar a possibilidade de uma visualização fenomenológica. Dado pois que,
se pela Religião revelada podemos conhecer o que Deus nos revela de Sua, de
nossa, e da essência do mesmo mundo, é através de Sua Transcendência e não da
imanente visão do mundo que podemos conhecer as realidades desta vida neste
mundo. A perda ou renúncia da noção de Transcendência e de absoluto pela
entidade conciliar, priva esta da capacidade de ensinar decentemente, como
deveria, a Realidade do mundo que se espelha na Palavra divina. Por isto tremem
diante até a verdade contida na Mensagem profética de Fátima.
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