“O catolicismo de hoje não
se pode conciliar com a verdadeira ciência, a menos que se transforme num
cristianismo não dogmático, isto é, num protestantismo sábio e liberal”.
O Syllabus de Pio IX termina com esta proposição condenável e condenada:
“O Pontífice romano pode e deve se
reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização
moderna”.
A última proposição do decreto que se
chamou o Syllabus de Pio X, proposição igualmente condenável e condenada, está
concebida assim:
“O catolicismo de hoje não se pode
conciliar com a verdadeira ciência, a menos que se transforme num cristianismo
não dogmático, isto é, num protestantismo sábio e liberal”.
Sem dúvida não foi sem intenção que
essas duas proposições receberam, num e noutro Syllabus, este lugar, o último,
aparecendo aí como conclusão. Dá-se que, com efeito, essas proposições resumem
as precedentes e precisam-lhes o espírito.[1]
É necessário que a Igreja se
reconcilie com a civilização moderna. E a base proposta para essa reconciliação
é, não a aceitação dos dados da verdadeira ciência, que a Igreja jamais
repudiou, que Ela sempre favoreceu, cujos progressos Ela sempre aplaudiu e para
o qual contribuiu mais do que qualquer outra instituição; mas o abandono da
verdade revelada, abandono que transformaria o catolicismo num protestantismo
largo e liberal, no qual todos os homens pudessem se reencontrar, quaisquer que
fossem suas idéias a respeito de Deus, de Suas revelações e de Seus
mandamentos. Dizem os modernistas que é apenas através desse liberalismo que a
Igreja pode ver novos dias se abrirem diante dEla, obter a honra de entrar nas vias
da civilização moderna e marchar junto com o progresso.
Todos os erros assinalados num e
noutro Syllabus apresentam-se como as diversas cláusulas do tratado proposto à
assinatura da Igreja para essa reconciliação com o mundo, para sua admissão na
cidade moderna.
Civilização moderna. Existe, pois, civilização e civilização? Existiu,
portanto, antes da era dita moderna uma civilização diversa daquela que o mundo
de nossos dias usufrui, ou pelo menos, persegue?
Com efeito, existiu, e existe ainda na França e na Europa, uma civilização
chamada civilização cristã.
Que motivo faz com que essas duas civilizações se diferenciem?
Elas se diferenciam pela concepção que têm do fim último do homem, e dos
efeitos diversos e mesmo opostos que uma e outra concepção produzem assim na
ordem social como na ordem privada.
“O objetivo último do homem é ser
feliz”,[2] diz Bossuet. Isto não é exclusivo dele: é o fim para o qual tendem
todas as inteligências, sem exceção. O grande orador não falha em reconhecer
isso: “As naturezas inteligentes não têm vontade nem desejo senão para sua
felicidade”. E acrescenta: “Nada de mais razoável, porque o que há de melhor do
que desejar o bem, quer dizer, a felicidade?”[3 ] Assim, encontramos no coração
do homem um impulso invencível, que o impele a procurar a felicidade. Se
quisesse, não poderia se desfazer dele. É o fundo de todos os seus pensamentos,
o grande móvel de todas as suas ações; e mesmo quando ele se atira à morte, é
por estar persuadido de achar no nada uma sorte preferível àquela na qual ele
se vê.
O homem pode se enganar, e de fato ele se engana muito freqüentemente na busca
da felicidade, na escolha da via que deve levá-lo a ela. “Colocar a felicidade
onde ela está é a fonte de todo o bem, diz ainda Bossuet; e a fonte de todo o
mal consiste em colocá-la onde não é preciso”.[4] Isto é tão verdadeiro para a
sociedade como para o homem individual. O impulso em direção à felicidade vem
do Criador, e Deus nele acrescenta Sua luz para iluminar o caminho, diretamente
por Sua graça, indiretamente pelos ensinamentos de Sua Igreja. Mas pertence ao
homem, indivíduo ou sociedade, pertence ao livre arbítrio dirigir-se, ir buscar
sua felicidade ali onde lhe agrada colocá-la, no que é realmente bom, e, acima
de toda bondade, no Bem absoluto, Deus; ou naquilo que têm apenas as aparências
do bem, ou que não é senão um bem relativo.
Desde a criação do gênero humano o homem se desviou do bom caminho. Ao invés de
crer na palavra de Deus e de obedecer à Sua determinação, Adão deu ouvidos à
voz encantadora que lhe dizia para colocar seu fim nele mesmo, na satisfação de
sua sensualidade, nas ambições de seu orgulho. “Sereis como deuses”; “o fruto
da árvore era bom de comer, belo de ver, e de um aspecto que excitava o
desejo”. Tendo assim se desviado desde o primeiro passo, Adão arrastou sua
descendência na direção que ele acabava de tomar.
Nessa direção ela caminhou, nessa direção ela avançou, nessa direção ela
submergiu durante longos séculos. A história aí está para contar os males que
ela encontrou nesse longo extravio. Deus teve piedade dela. No Seu conselho de
infinita misericórdia e de infinita sabedoria, Ele resolveu recolocar o homem
sobre o caminho da felicidade. E a fim de tornar Sua intervenção mais eficaz,
Ele quis que uma Pessoa divina viesse sobre a terra mostrar o caminho por Sua
palavra, tocar os homens por Seu exemplo. O Verbo de Deus se encarnou e veio
passar trinta e três anos entre nós, para nos tirar da via da perdição e para
nos abrir a estrada de uma felicidade não enganosa.
Suas palavras e Seus atos derrubavam todas as idéias até então aceitas. Ele
dizia: Bem-aventurados os pobres! Bem-aventurados os mansos, os pacíficos, os
misericordiosos! Bem-aventurados os puros! Até a vinda dEle, dizia-se:
Bemaventurados os ricos! Bem-aventurados aqueles que dominam! Bem-aventurados
os que vivem sem nada recusar às suas paixões! Ele tinha nascido em um estábulo,
fizera-Se o servidor de todos, sofrera morte e paixão, a fim de que não se
considerassem suas palavras meras declamações, mas lições, as mais persuasivas
lições que possam ser concebidas, dadas que eram por um Deus, e um Deus que Se
aniquilou por amor a nós.
Ele quis perpetuar essas lições,
torná-las sempre expressivas e operantes aos olhos e nos ouvidos de todas as
gerações que deviam vir. Para isso Ele fundou a Santa Igreja. Estabelecida no
centro da humanidade, Ela não cessou, pelos ensinamentos de seus doutores e
pelos exemplos de seus santos, de dizer a todos os que Ela viu passar sob seus
olhos: “Procurais, ó mortais, a felicidade, e procurais uma coisa boa; ficai
atentos apenas para não procurardes onde ela não está. Vós a procurais na
terra, mas não é aí que ela está estabelecida, nem aí que se encontram esses
dias felizes dos quais nos falou o divino Salmista: Diligit dies videre
bonos... Aí estão os dias de miséria, os dias de suor e de trabalhos, os dias
de gemidos e de penitência, aos quais nós podemos aplicar as palavras do
profeta Isaías: “Meu povo. Os que te dizem feliz, abusam de ti e perturbam tua
conduta”. E ainda: “Os que fazem o povo acreditar que é feliz, são
enganadores”. Pois onde se encontra a felicidade e a verdadeira vida, senão na
terra dos vivos? Quem são os homens felizes, senão aqueles que estão com Deus?
Esses vêem dias bonitos, porque Deus é a luz que os ilumina. Esses vivem na
abundância, porque Deus é o tesouro que os enriquece. Esses, enfim, são
felizes, porque Deus é o bem que os contenta e que, somente Ele, é tudo para
todos”.[5]
Do século I ao século XIII, os povos
tornaram-se cada vez mais atentos a essa pregação, e o número dos que dela
fizeram luz e regra de vida foi cada vez maior. Sem dúvida, havia fraquezas,
fraquezas das nações e fraquezas das almas.
Mas a nova concepção da vida
permanecia lei para todos, lei que os desvios não faziam perder de vista e à
qual todos sabiam, todos sentiam que era preciso retornar uma vez que se
tivessem afastado. Nosso Senhor Jesus Cristo, com Seu Novo Testamento, era o
doutor escutado, o guia seguido, o rei obedecido. Sua realeza era a tal ponto
reconhecida pelos príncipes e pelos povos, que eles a proclamavam até em suas
moedas. Em todas estava gravada a cruz, o signo augusto da idéia que o
cristianismo tinha introduzido no mundo, que era o princípio da nova
civilização, da civilização cristã, que devia regê-lo, o espírito de sacrifício
oposto à idéia pagã, ao espírito de gozo que tinha construído a civilização
antiga, a civilização pagã.
À medida que o espírito cristão penetrava as almas e os povos, almas e povos
cresciam na luz e no bem, se elevavam pelo só fato de verem a felicidade no
alto e de a carregarem consigo. Os corações tornavam-se mais puros, os
espíritos mais inteligentes. Os inteligentes e os puros introduziam na
sociedade uma ordem mais harmoniosa, aquela que Bossuet nos descreveu no sermão
sobre a eminente dignidade dos pobres. A ordem mais perfeita tornava a paz mais
geral e mais profunda; a paz e a ordem engendravam a prosperidade, e todas
essas coisas davam ensejo às artes e às ciências, esses reflexos da luz e da
beleza dos céus. De sorte que, como observou Montesquieu: “A religião cristã,
que parece não ter outro objetivo além da felicidade da outra vida, ainda
constrói nossa felicidade nesta”.[6] É, ademais, o que São Paulo tinha
anunciado, quando disse: “Pietas ad omnia utilis est, promissiones habens vitae
quae nunc est et futuraep. A piedade é útil para tudo, possuindo as promessas
da vida presente e aquelas da vida futura”.[7] Não havia o próprio Nosso Senhor
dito: “Procurai primeiro o reino de Deus e Sua Justiça, que o resto vos será
dado de acréscimo”?[8] Não há aí uma promessa de ordem sobrenatural, mas o
anúncio das conseqüências que deviam sair logicamente da nova orientação dada
ao gênero humano.
De fato, vemos que o espírito de pobreza e a pureza de coração dominam as
paixões, fontes de todas as torturas da alma e de todas as desordens sociais. A
mansidão, a pacificação e a misericórdia produzem a concórdia, fazem reinar a
paz entre os cidadãos e na cidade. O amor da justiça, mesmo contrariado pela
perseguição e pelo sofrimento, eleva a alma, enobrece o coração e lhe
proporciona os mais sãos prazeres; ao mesmo tempo eleva o nível moral da
sociedade.
Que sociedade, aquela em que as bem-aventuranças evangélicas fossem colocadas
sob os olhos de todos, como objetivo a conquistar, e na qual seriam oferecidos
a todos os meios de alcançar a perfeição e a bem-aventurança assinaladas no
sermão da montanha:
Felizes os que têm espírito de pobreza!
Felizes os mansos!
Felizes os que choram!
Felizes os que têm fome e sede de justiça!
Felizes os que são misericordiosos!
Felizes os que têm o coração puro!
Felizes os pacíficos!
Felizes os que sofrem perseguição por amor da justiça!
A ascensão, não direi das almas
santas, mas das nações, teve seu ponto culminante no século XIII. São Francisco
de Assis e São Domingos, com seus discípulos São Luís de França e Santa
Elisabete da Hungria, acompanhados e seguidos por tantos outros, mantiveram por
algum tempo o nível que havia sido atingido pela emulação que tinham excitado
nas almas os exemplos de desapego das coisas deste mundo, de caridade em
relação ao próximo e de amor a Deus, que tantos outros santos tinham dado. Mas
enquanto essas almas nobres atingiam os mais altos cumes da santidade, muitas
outras esfriavam no seu entusiasmo por Deus; e por volta do fim do século XIV,
manifestou-se abertamente o movimento de retrocesso que arrebatou a sociedade e
que a conduziu à situação atual, quer dizer, o triunfo próximo, o reino iminente
do socialismo, fim obrigatório da civilização moderna. Porque enquanto a
civilização cristã elevava as almas e tendia a dar aos povos a paz social e a
prosperidade mesmo temporal, o fermento da civilização pagã tende a produzir
seus últimos efeitos: a procura, por todos, de todos os prazeres; a guerra,
para consegui-los, de homem contra homem, de classe contra classe, de povo
contra povo; guerra que não poderia terminar senão com o aniquilamento do
gênero humano.
___________________________________
1 Por ocasião da deliberação da
lei sobre a liberdade do ensino superior, Challemel-Lacourt disse: “As
universidades católicas quererão preparar nos futuros médicos, advogados e
magistrados, auxiliares do espírito católico que procurarão sustentar e aplicar
os princípios do Syllabus. Ora, a França, na sua grande maioria, considera as
proposições condenadas pelo Syllabus como os próprios fundamentos da nossa
sociedade”.
2 Meditações sobre o Evangelho.
3 Oeuvres oratoires de Bossuet.
Edição crítica e completa, pelo abade J. Lebarq. Sermão para a Festa de Todos
os Santos, v. 325.
4 Meditações sobre o Evangelho.
5 Oeuvres oratoires de Bossuet. Sermão para a
Festa de Todos os Santos, v. 325.
6 Esprit des Lois,
livro XXIV, cap. III.
Tocqueville deu para esse fato uma razão que não é a única nem mesmo a
principal, mas que convém assinalar.
“Nos séculos de fé, coloca-se o
objetivo final da vida após a vida. Os homens daqueles tempos acostumaram-se,
pois, naturalmente, e, por assim dizer, sem querer, a considerar, durante uma
longa seqüência de anos, um objetivo fixo em direção ao qual eles caminham sem
cessar, e aprendem, mediante progressos insensíveis, a reprimir mil pequenos
desejos passageiros para melhor chegarem a satisfazer esse grande e permanente
desejo que os aflige. Quando esses mesmos homens querem se ocupar das coisas da
terra, reencontram esses hábitos. Eles fixam para suas ações daqui de baixo de
preferência um objetivo geral e certo, em direção ao qual dirigem todos os
esforços. Não se os vê aplicarem-se cada dia a novas tentativas; mas eles têm
desejos não satisfeitos que não se cansam de perseguir.
“Isto explica por que os povos
religiosos têm freqüentemente conseguido coisas tão duráveis. Sucedia que,
ocupando-se do outro mundo, tinham reencontrado o grande segredo de obter êxito
neste. As religiões fornecem o hábito geral de se comportarem com vistas ao
futuro. Nisto elas não são menos úteis à felicidade desta vida do que à
felicidade da outra. É um de seus maiores aspectos políticos. Mas à medida que
as luzes da fé se obscurecem, a vista dos homens se aperta, e dir-se-ia que a
cada dia o objetivo das ações humanas parece-lhes mais próximo.
“Uma vez que se acostumam a não mais
se ocupar do que deve acontecer após a vida, vê-se-os recaírem facilmente nessa
indiferença completa e brutal do futuro, que é por demais conforme a certos
instintos da espécie humana. Tão logo perdem a prática de colocar suas
principais esperanças a longo prazo, são naturalmente levados a realizar sem
tardança seus menores desejos, e parece que a partir do momento em que
desesperam de viver uma eternidade, ficam dispostos a agir como se não devessem
existir senão um só dia.
“Nos séculos de incredulidade, é, pois, sempre de recear que os homens se
entreguem sem cessar aos azares diários de seus desejos, e que, renunciando
inteiramente a obter o que não se pode adquirir senão sem longos esforços, não
fundem nada de grande, de pacífico e de durável”.
7 I Tim., IV, 8.
8 Mat., VI, 33.
Fonte:
DELASSUS, Monsenhor Henri. A Conjuração Anticristã - O Templo Maçônico que quer
se erguer sobre as ruínas da I g r e j a C a t ó l i c a. Tomo I,
Capítulo I – As Duas Civilizações, p.12-15.
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