“O maior tormento de uma
alma do Purgatório é desejar ir para Deus, e não poder”
I. Acerbidade das penas do Purgatório
Ouvindo Santo Agostinho alguns de seu tempo dizer
que, se escapassem do Inferno, do Purgatório não tinham tanto medo, encheu-se
de zelo e lhes fez ver o grande erro em que estavam, pois as penas do
Purgatório superam tudo o que há de mais penoso neste mundo.
E com razão, porque o fogo que atormenta as almas
do Purgatório é o mesmo o fogo que atormenta os condenados no Inferno, somente
com exceção da eternidade. E assim é que a Santa Igreja não duvida chamar às
penas do Purgatório penas infernais [na Liturgia dos defuntos].
O fogo do Purgatório é aceso por um sopro infernal,
e é tão ativo que não se chama simplesmente fogo, mas espírito
de fogo (Is 4, 4), e derreteria num instante um monte de bronze, mais
facilmente que uma de nossas fornalhas devoraria uma palha seca.
Tem ainda este fogo, além da atividade
natural, uma potência superior, que lhe dá Deus, para servir de
instrumento ao Seu furor: (Is 15, 41).
Porém, diz o Senhor pelo profeta Zacarias, que Ele
mesmo, mais que o fogo, purgará e limpará a alma eleita, ativando com Seu
hálito as suas chamas: (Zac 3, 9).
E qual não será o tormento das almas benditas
naquele cárcere por meses e anos! Podemos fazer dele uma [longínqua] ideia,
considerando que:
a) A alma, assim como é mais nobre que o corpo, é
também mais capaz de sentir vivamente, seja a alegria, seja o sofrimento;
b) A alma unida ao corpo, se sente dor, sente-a
temperada pelo mesmo corpo, e como que dividida entre ambos, servindo-lhe o
corpo de escudo e anteparo da dor. Mas no Purgatório, estando longe do corpo,
recebe diretamente sobre si toda a força da dor;
c) A alma unida ao corpo, se sofre no pé ou na mão
ferida, não sofre na cabeça ou noutros membros sãos; mas no Purgatório, sendo
indivisível e estando separada do corpo, é toda atingida pelas chamas.
Além do fogo, é a alma, no Purgatório, atormentada
por si mesma, pensando:
a) Por quão ligeiras faltas está penando: por uma
palavra inútil, por um olhar curioso, por uma intenção menos reta, que tão
facilmente pudera evitar;
b) Que, podendo durante a vida tão facilmente
descontar a pena merecida por suas faltas com praticar algumas ações
meritórias, não o fez;
c) Que, deixando na terra filhos, amigos e
herdeiros, que a deviam aliviar [com Missas e orações] naquelas chamas, não o
fazem, e só pensam em desfrutar dos bens que lhes deixou (Sl 30,13). Com quanta
razão se lamentará de não ter descontado os seus pecados dando esmolas e
empregando em obras de caridade os bens que Deus lhe deu e que aumentou com
tantos suores?
Sobre tudo isto, acresce o maior tormento do
Purgatório, que é a privação da visão de Deus.
São João Crisóstomo disse (Hom. 24 in c. 7 Mat.) que
o Inferno do Inferno é estar o condenado privado para sempre
da visão de Deus. Assim também se pode dizer que o Purgatório do
Purgatório é estar uma alma por muito tempo longe da visão de Deus. As
almas são, pois, atormentadas por dois verdadeiros e profundíssimos
sentimentos: desejo e amor.
O
maior tormento de uma alma do Purgatório é desejar ir para Deus, e não poder. Esta
pena é tanto maior quanto maior é o conhecimento que lá a alma tem de Deus,
pois, separada do corpo, conhece mais claramente a suma bondade de Deus, e se
sente movida com maior força a ir para Ele, como a pedra para o seu centro.
Por isso, as suas maiores ânsias, no Purgatório,
são suspiros pela visão beatífica, de que já sente a aproximação, mas que ainda
não pode desfrutar. Clama ela, como o cego do Evangelho (Lc 18, 41): ‘Senhor,
que eu veja’ essa luz da glória; que meus olhos desfrutem já da presença
divina! Para chegar mais depressa à visão de Deus, esta alma
preferiria que se lhe duplicasse o tormento do fogo, contanto que findasse o
tormento do desejo de ver a Deus.
Conta-se [por exemplo] de Rutília que, sabendo que
seu filho fôra condenado ao desterro para terras longínquas, se desterrou
também, para não padecer, longe dele, o tormento da saudade.
Mas muito maior que o desejo, é o tormento do amor.
Três são os amores que atormentam as almas do
Purgatório:
a) O
amor natural, pelo qual a alma, por uma inclinação inata, é atraída para
Deus como a Seu Criador, seu Princípio e último Fim, com maior ímpeto que a
pedra propende para o centro da terra ou a chama para o ar;
b) O
amor sobrenatural, pelo qual, [sob a ação da Graça,] é a alma vivissimamente
atraída para Deus como seu sumo, único e eterno Bem;
c) O
amor de ardentíssima caridade, por saber que é esposa do divino Cordeiro,
Jesus Cristo, destinada ao Reino Celestial, e, no entanto, vê que seu Esposo
Divino lhe fecha a porta, e que seu amor é assim frustado.
A todos estes tormentos se deve juntar a duração das penas, por meses, por anos
e, talvez, até o fim do mundo.
Quanto se amedronta e aterra um malfeitor ao ouvir
a sentença de ficar por algum tempo encerrado num cárcere escuro ou de por três
anos trabalhar nos porões das galés! Quanto se lamenta um enfermo a quem se
avisa de que terá de sofrer por um quarto de hora uma dolorosíssima operação! E
a quem não de gelar o sangue ao pensar que, por seus pecados, há de estar
sepultado nas chamas do Purgatório por anos inteiros, e talvez até o dia do
Juízo Final?!
Santo Agostinho diz que, no Purgatório, um
dia é como mil anos (In Ps 37).
Assim é que a esperança e o desejo de ver a Deus, e de passar de um excessivo
tormento a uma indizível alegria, fará parecer uma hora mais longa que um
século.
Conta Santo Antonino que um enfermo havia muito
tempo que sofria horríveis dores. Apareceu-lhe o seu Anjo da Guarda e lhe
propôs, por ordem de Deus, que escolhesse: ou sofrer aquelas dores por mais um
ano, ou passar meia hora no Purgatório. O enfermo respondeu que preferiria
estar meia hora no Purgatório, pois assim acabava mais depressa de sofrer.
Pouco depois expirou, e o Anjo foi visitá-lo no Purgatório. Ao ver o Anjo, a
pobre alma começou a soltar gemidos inconsoláveis, dizendo-lhe que a tinha
enganado, pois, tendo-lhe assegurado que estaria ali só meia hora, já eram
passados vinte anos que estava lá penando. Vinte anos? – replicou o Anjo – não
passaram mais que poucos minutos de tua morte, e teu cadáver ainda está quente
sobre o leito!
Tanto é verdade que as penas do Purgatório, em
certo modo – sapiunt naturam aeternitatis - têm um sabor de
eternidade, por parecer à imaginação do padecente que uma hora é como um
século.
II. Dificuldade em evitar o Purgatório
Um mal qualquer, por maior que seja, se facilmente
se pode evitar, não é grande mal; mas um mal grande, que dificilmente se pode
evitar, torna-se extremo.
Tal é o Purgatório; pois, como atesta o cardeal e
Doutor da Igreja São Roberto Belarmino (De amis. grat., c. 13), até dos homens
mais santos e perfeitos, pouquíssimos são os que vão direto ao Paraíso.
O mesmo Santo, estando próximo à morte, recebeu a
visita do Geral da Companhia de Jesus, que, sabendo como era santíssima a vida
de Belarmino, lhe disse que todos tinham firme esperança de que, depois da
morte, ele voaria logo para o Céu. – ‘Mas não a tenho eu, disse o
Santo; eu não tenho essa esperança’.
Santa Teresa d’Ávila conta que, lhe sendo revelado
o estado de muitas almas na outra vida, só de três sabia que tivessem ido para
o Céu sem passar pelo Purgatório [e uma destas almas era ninguém menos que um
São Pedro de Alcântara].
Nem isto nos deve maravilhar. São Bernardo diz
(Decl. sup. Ecce nos) que, assim como não há obra boa, por mais pequena
que seja, que Deus não remunere largamente, assim também não há mal, por mais
ligeiro que seja, que Deus não castigue severamente. Ora, sendo a alma mais
justa e santa sujeita a muitas imperfeições, naturalmente está exposta a ir
pagar por elas no Purgatório.
Se por um lado não quer Deus que nada impuro entre
no Céu, por outro não escapa a Seus olhos a mais ligeira mancha, que nós,
muitas vezes, nem chegamos a descobrir. Por isso diz a Escritura que até
nos Anjos encontra Deus o que repreender (Job 4, 18), e que os
mesmos céus não são puros na Sua presença (Job 15, 15), e que até
nas obras dos justos encontra que o emendar (Sl 74, 3).
O santo Jó, conhecendo esta minuciosa Justiça de
Deus, temia que as suas ações, ainda as mais santas, não Lhe fossem plenamente
agradáveis (Job 9, 28).
Oh! Como são terríveis os juízos de Deus, e como
são diversos dos d’Ele os juízos dos homens! O homem não vê senão o que aparece
por fora; Deus, porém, penetra o coração (1 Rs 16, 7).
O padre Baltasar Álvarez, da Companhia de Jesus,
confessor de Santa Teresa d’Ávila, era, por testemunho de sua Santa penitente,
um dos homens mais santos e piedosos de seu tempo. Um dia, ele pediu ao Senhor
que lhe revelasse quais eram as suas obras que mais O agradavam. Deus Nosso
Senhor ouviu a sua oração, e lhe fez ver as suas obras no símbolo de um cacho de uvas, em que umas
eram verdes, outras amargas, e só duas ou três estavam maduras, e estas ainda
não de todo doces ao paladar. ‘Tais são, disse-lhe o
Senhor, as tuas ações; delas só duas ou três são boas, e mesmo nestas,
se examinarem com rigor, não lhes faltará que repreender’.
Daqui se vê como é severa a Justiça Divina em
julgar as ações dos homens, e como é difícil, ao morrer, estar uma alma tão
purificada que não fique nada por que satisfazer no Purgatório.
Não faltam exemplos na vida dos Santos que
confirmam esta doutrina.
Na vida de São Severino se conta que, enquanto o
clérigo passava um rio, apareceu-lhe um sacerdote que, tomando-lhe a mão, a
queimou toda, dizendo: Isto sofro no Purgatório por não rezar as Horas
canônicas com atenção.
De São Martinho escreve São Gregório Turinense que,
orando no sepulcro de sua irmã e recomendando-se a ela como a uma santa, de
repente ela lhe apareceu, vestida do hábito de penitente, com o rosto triste e
pálido, e lhe disse que ainda estava no Purgatório, por ter penteado o
cabelo na Sexta-Feira Santa, não se lembrando que era o dia da Paixão do Senhor.
[Ah! Vaidade feminina!]
A irmã de São Pedro Damião, como ela mesma revelou
a uma santa alma, foi condenada a penar dezoito dias no
Purgatório por ter, de sua cela, ouvido curiosamente os
cantos e músicas que entoavam debaixo da janela.
São Severino, Arcebispo de Colônia, foi condenado a
um gravíssimo Purgatório, por ter recitado as Horas canônicas sem a devida
distinção de tempos, apesar de serem muitos os negócios de seu palácio, que
parece o desculpariam.
Entremos agora dentro de nós mesmos, e tiremos a
consequência, que tirou também Santo Antonino depois de contar a seus
religiosos semelhantes exemplos: ‘Tema, pois, cada um de vós, cometer
pecados veniais e não se purificar deles nesta vida’.
Se Deus é tão severo em punir no Purgatório as
menores faltas, e se é tão difícil, mesmo para as almas mais perfeitas,
evitá-lo, como é que me atrevo a acumular pecados veniais em minha
vida, sem fazer penitência deles?… E se aqui me parece insuportável uma
pequena agulha, o que será sofrer aquele fogo atrocíssimo?… Por que não procuro
depurar as minhas ações de toda impureza, e fazer penitência pelos pecados
cometidos?… Andemos sempre alumiados pelas chamas do Purgatório,
para evitarmos, com a perfeição de nossas obras, cair naqueles horríveis
tormentos (Is 40, 11).
III. Como devemos evitar o Purgatório
É verdade de Fé que ninguém entra no Céu
sem estar de todo purificado (Apoc 21, 17), e sem primeiro ter
satisfeito todas as suas dívidas à divina Justiça(Mt 5, 26). Deste modo, ou
havemos de punir em nós mesmos, nesta vida, os nossos pecados, ou então Deus se
encarregará de os castigar depois da nossa morte. Não há como escapar,
diz Santo Agostinho (Conc. 1 in Ps 58).
Quem, na vida, não apaga os pecados com as lágrimas
da penitência, depois da morte se purificará deles com as chamas do
Purgatório. Ora, não é melhor lavar os pecados com água do que com
fogo?
Na
vida, com um dia de penitência, e até com uma hora, podemos satisfazer por
nossos pecados o que no Purgatório nem por um ano expiaríamos.
Ora, não é melhor padecer por um pouco, neste mundo, que padecer no outro por
longo tempo, que pode ser até o dia do Juízo?
Ajuntemos que a penitência feita em vida é
meritória, e depois da morte nada merece. Ainda que penemos
por mil anos no Purgatório, não adquiriremos um novo grau de graça, nem um novo
grau de glória no Céu.
E não é mais sensato sofrer pouco
e por pouco tempo, e com mérito, do que sofrer muito e por muito tempo, e sem
mérito nenhum?
Finalmente, a Divina Justiça fica mais satisfeita
com a penitência, ainda que pequena, feita nesta vida, do que com a pena, ainda
que maior, tolerada depois da morte; porque a primeira é um sacrifício
voluntário e uma pena tomada espontaneamente, ou
espontaneamente aceita, ao passo que a segunda é um sacrifício forçado,
e uma pena tolerada por necessidade e contra vontade.
Por todas estas razões se vê claramente quanto
importa descontar, nesta vida, as penas que devemos a Deus por nossos pecados,
pela enorme vantagem de nos livrarmos, desta maneira, dos males do Purgatório.
Frutos
Consideremos os frutos que devemos tirar desta
doutrina, para nos resolvermos a evitar o Purgatório, usando de todos os meios
que a isto nos possam ajudar.
O
primeiro é fazermos agora, por nós mesmos, penitência dos
nossos pecados, e praticar boas obras o mais que pudermos, e
não pôr a nossa esperança em sufrágios futuros. E isto devemos
fazer sem demora, antes que sejamos assaltados por algum acidente (Gál
6, 10).
O
segundo é pôr todo o cuidado em ganhar as santas
indulgências, com as quais satisfaremos por nossos pecados com a
satisfação e méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O
terceiro, finalmente, é usar de piedade com as
almas do Purgatório, ajudando-as com os nossos sufrágios, obras e
orações, porque Deus disporá que aquela caridade que usamos com os
outros seja também usada conosco (Mt 7, 2). Depois, essas almas,
quando estiverem no Céu, serão gratíssimas para conosco, obtendo-nos muitas
graças de Deus. Feliz de quem salvou uma alma do Purgatório com seus sufrágios,
porque terá diante de Deus quem interceda por ele, quando também estiver
penando naquele lugar.
Conta Bernardino de Bustis que morreu um pai, e com
seus bens deixou um filho riquíssimo. Este ingrato filho não pensou mais em
quem tanto o tinha beneficiado, pois nunca mandou sufragar a alma de seu pai,
que ardia no Purgatório. Ora, o que aconteceu? Ainda que os seus capitais
fossem avultadíssimos, contudo estava sempre em penúria. Contínuas tempestades
lhe destruíam as plantações, males imprevistos dizimavam-lhe os rebanhos,
incêndios e desastres arruinavam-lhe a casa. Já os pleitos, já o fisco, já os inimigos
o obrigavam a gastos desmedidos. Um dia, encontrando-se com um servo de Deus,
pediu-lhe que o recomendasse em suas orações. Fê-lo o santo varão, a quem foi revelado que aquele filho ingrato não
podia desfrutar dos bens herdados porque tinha o pai no Purgatório que o
amaldiçoava, e as suas maldições eram aceitas da Divina Justiça pela sua
perversa ingratidão.
Façamos bem aos nossos defuntos, que o mesmo farão
conosco (Ecli 12, 2).
Imaginemos que Jesus Cristo diz a cada um de nós a
respeito dos nossos defuntos, o que disse a respeito de Lázaro: ‘Desatai-o
e deixai-o ir’ (Jo 11, 44).
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