As
mil lições que o gato proporciona ao homem simbolizam mil aspectos da
realidade, com seu lado ruim decorrente do pecado original, mas com seu lado
bom que tem fundamento em Deus
Plinio Corrêa
de Oliveira*
Os seres minerais, não tendo
sensibilidade, não têm nenhum conhecimento. A planta pode ter reações, mas não
tem conhecimento. O animal tem um grau de vida superior ao da planta, e tem conhecimento.
Por exemplo, quando um rato passa perto de um gato, este o reconhece como um
alimento e corre atrás dele, pois precisa se alimentar. Também o rato reconhece
o gato, sabe que o gato costuma ter fome, identifica-o como um perigo e foge. É
natural que o gato e o rato, tendo ambos o instinto de conservação, queiram
sobreviver, e o mais adequado a cada um é o gato comer e o rato fugir.
Essas
reações naturais dos animais existem em seres irracionais, portanto não se
devem a raciocínios, e sim ao conflito de instintos de conservação que ambos
têm. Trata-se de um mundo de operações admiravelmente razoáveis que os animais
possuem. Muitas vezes são operações de grande complexidade, cujo mecanismo os
cientistas levam gerações estudando para explicar, e nem sempre o conseguem.
Elas estão de acordo com a ordem e natureza das coisas, simplesmente por
associações de imagens, reflexos, instintos, mas não são frutos de raciocínios.
Quando o
gato dá um miado choroso, cujo tom lamuriante é infalível para comover corações
femininos, é porque sabe que a sua dona pode dar-lhe um pouco de leite. Ele não
faz um raciocínio como este: “Ela é dona do leite, e dá se quiser. Por isso, se
eu quero leite, devo manifestar a ela que estou precisando de leite. Quanto
mais lacrimejante for o meu miado, mais depressa ela vai dar. Logo, vou
caprichar no meu miado”. Mas o gato é totalmente incapaz disso, o que faz é
movido pelo instinto.
Não deixa
de ser verdade que, quando ele tem fome, acaricia a dona, levado por um
conjunto de instintos, reflexos, movimentos que decorrem do princípio vital
dele, daquilo que nós poderíamos chamar “alma”. Não uma alma espiritual como a
humana, mas um princípio vital do animal. Um mineral, como a pedra, não tem
nenhuma vida e não é capaz de nada disso que se passa no mundo animal.
O homem é
um ser muito mais complexo, possui uma razão que o leva a compreender as
coisas, e tem todos os movimentos voluntários no nível da razão. O raciocínio
funciona associado ao instinto, e muitas vezes o homem completa a ação do
instinto pensando, raciocinando. Algumas coisas podem ser feitas automaticamente,
por um reflexo, sem precisar de raciocínio, mas outras vezes é necessário um
raciocínio. Pode-se mesmo não saber, num caso concreto, se agimos racionalmente
ou apenas instintivamente. Nem sempre sabemos, em nossa ação, qual é o grau de
colaboração da natureza animal e qual é a colaboração da alma racional.
Um
exemplo é quando alguém entra depressa numa sala durante a noite, à procura de
um objeto. Para isso, instintivamente estende a mão para o lado e acende a luz.
O que se passou é uma mera associação de imagens e lembranças, e até um animal
seria capaz disso. Poderá também ser resultado de um raciocínio: “Eu preciso de
mais luz; para aumentar a luz, tenho que acionar este botão; portanto, vou
acionar o botão”.
Por mais
que o animal esteja abaixo do homem, há um ponto em que está acima dele: no
animal não há uma luta interior, que ora o leva para um lado, ora para outro.
Exemplo: uma das atitudes mais vis no reino animal, e por isso muito simbólica,
é uma galinha quando foge espavorida. Ela pode hesitar, mudando várias vezes o
seu rumo de corrida, pois de alguma forma o conhecimento dela indica que o
perigo mudou de lugar, ou então ela primeiro viu o perigo de um jeito, depois
viu de outro. Mas ela não tem uma divisão interna, uma incerteza, uma dúvida,
obedece ao instinto.
Já o ser
humano tem dúvidas. Em geral sentimos duas leis opostas. São Paulo chama isso
“a lei da carne e a lei do espírito”. Queremos algo pela apetência carnal, mas
pela apetência espiritual desejamos outra coisa. Há um combate interior, que
nos leva a contradições, e às vezes fazemos uma coisa, depois mudamos e fazemos
outra. O animal, nesse ponto, é superior ao homem.
*
* *
Quando eu
era pequeno, ia ao Jardim da Luz em São Paulo, onde havia um lago artificial
com cisnes, e gostava de vê-los nadando. A maioria eram cisnes brancos, e um ou
outro preto. Eu ficava encantado de ver a decisão suave, mas sem nenhuma forma
de hesitação, com que um cisne tomava rumo na água, aparentemente sem motivo.
Algumas vezes seguia em frente, outras vezes dava uma volta, nadava sem rumo
aparente pelo meio do lago, mas nunca tontamente. Seguro de si, olhando o lago
com aquele pescoção alto e a superioridade de cisne, flutuando como quem não se
molha, mas regozijando-se do contato com a água.
Eu não
conhecia ainda a doutrina do pecado original, e me perguntava: por que não sou
assim? Por que não tenho essa segurança que tem o cisne, essa lisura no viver?
Não seria melhor que eu tivesse nascido cisne?
Eu
percebia que o cisne não tinha luta interior. Mesmo quando fazia alguma coisa
sem razão aparente, a decisão era determinada por algo do seu instinto. Não
havia luta interior, e durante muito tempo ele tornou-se para mim o próprio
símbolo da falta de hesitação e da ausência de dúvida interior. Parecia haver
um acordo implícito do cisne com as águas — elas nunca tentavam contra ele, nem
ele contra elas. Deslizando sobre aquelas águas, ele parecia orná-las, e elas
nunca se moviam de modo a contrariá-lo. O cisne ficava seco, com a toalete
perfeita para o dia inteiro. Agradava-me enormemente contemplá-lo.
Essa
divisão — ora querendo uma coisa, ora outra — nos joga tão baixo que parece
representar uma vergonha. No entanto, isso nos coloca muito acima dos cisnes e
dos outros animais, representa de fato uma vantagem. Nós somos capazes de nos
conhecer a nós mesmos e de conhecer os outros. Somos capazes de conhecer o
mundo externo. Nosso intelecto nos torna capazes de conhecer a Deus. Nós
compreendemos. O simples fato de compreendermos a nossa alteridade — que cada
um de nós é eu, e não o outro — o fato de cada um poder dizer “sou eu” é uma
superioridade fabulosa. Somos inteligentes, conhecemos a Deus e o mundo
externo, conhecemo-nos, sabemos quem somos. Também por isso o homem é o rei da
criação. Um rei que cambaleia e que cai, se não abrir os olhos e se não rezar
muito. Rei cego, mas que tem em sua fronte um diadema, uma coroa.
O que
move o homem a agir nas várias situações? Move-o um modo de conhecimento animal
que há em si, em face da realidade exterior. Exemplifico com as
características deste nosso grupo de pessoas conhecidas. Meus olhos os veem, a
todos e a cada um, e essa função de meus olhos é puramente animal. No entanto,
a ela se somam imediatamente mil memórias, recordações sobre o nosso
relacionamento anterior: as razões pelas quais estamos juntos; as metas que
tenho, ao aceder em estar junto dos conhecidos; as facilidades e dificuldades
que tenho na obtenção dessas metas. Portanto, levam-me a avaliar o que devo
dizer e como devo dizer, para a obtenção dessas metas. Entra aí uma pirâmide de
dados que foram intermediados pelo corpo e estão na inteligência, são
armazenados na inteligência.
O corpo
tem seu papel, e bem maior do que muitos imaginam. Se meu corpo fosse outro —
se, por assim dizer, minha animalidade fosse outra — eu veria as pessoas como
estou vendo, mas ressaltaria algumas coisas e outras não, reagiria de modo
diferente em relação a umas coisas e outras. Portanto, o mesmo quadro que estou
vendo agora, para mim teria relevos e cores diferentes. Cada homem é assim, à
maneira de um tapete que, colocado junto à luz, toma reflexos variados. Nenhum
homem tem, em face das coisas que vê, uma atitude inteiramente idêntica à de
outro homem.
Embora
sendo do mundo animal, devido às nossas inteligências nós somos capazes de
julgar. Se algo não for conforme à Lei de Deus, conforme à verdade que minha
inteligência percebe, sou capaz de reprimir o que é ruim e aceitar o que é bom,
e até de desenvolver o que é bom. Portanto, minha alma continua a rainha, mesmo
em águas convulsas. A batalha e a dificuldade são diferentes de uma pessoa para
outra, e cada um pode também compreender a Deus de um modo ou de outro.
Voltando
ao exemplo do gato. Volto de bom grado a ele, porque é um animal muito
interessante, muito sugestivo e muito velhaco. E tem a vantagem de seus estados
de animalidade serem muito matizados, ele muda continuamente en dégradé, sem saltos, como numa espécie de opala.
Inspira também um certo medo, porque pode ter mudanças muito súbitas e muito
variáveis.
Há gatos
que são a própria imagem do raffinement.
Sedosos, peludos, movem-se com elegância, fazem poses. Outros são a própria
imagem do carinho, brinquedinhos vivos, que brincam de modo encantador.
Gatinhos bebendo juntos de uma mesma tigela com leite, por exemplo, podem fazer
coisas encantadoras.
Uma
proeza felina que enraivece a dona, é quando ele consegue enfiar a pata pela
porta da gaiola, agarra o passarinho e se banqueteia com uma refeição
requintada. Cunharam até essa expressão bem achada, para a cara de fingido
arrependimento quando alguém é apanhado em flagrante delito: cara de gato que comeu passarinho. Quem nunca viu a
cena, pode facilmente imaginá-la.
Outra é a
do gato que sobe no aquário e fica observando os movimentos do peixinho. Quando
ele está numa posição conveniente, o gato mete rapidamente a pata e joga o
nadador para fora da água, depois dá um salto felino e o apanha. Há em Paris
uma Rue du Chat-qui-Pêche (Rua do gato que pesca), em
memória de um gato que sobressaiu-se nessa habilidade no rio Sena, e era
espetáculo gratuito para muitos, a ponto de merecer essa homenagem da
municipalidade.
Por que
Deus criou o gato com todas essas diversidades? Funcionaria igualmente bem o
mundo, se não houvesse gatos? Evidentemente, Deus criou o gato para os homens,
mas o que lucram os homens com a existência do gato? Ele distrai o homem, e
também lhe serve de exemplo. Ora o encanta, ora o frustra. Por mais mansinho e
apreciador de carinho, de repente lhe mete uma unhada.
O gato
deixa no homem certo pesar de não existir o gato ideal: interessante como o
gato ruim e encantador como o gato bom; vivo como o gato de goteira e sedoso
como o gato criado sobre a almofada vermelha de uma marquesa; gatinho de
brinquedo para distrair, mas nunca agredindo nem arranhando, nunca pregando má
surpresa; capaz de arranhar e pregar má surpresa aos inimigos do homem, que são
os ratos da casa. Na verdade o homem desejaria um gato duplo: tigrinho para o
rato e brinquedinho para ele, pressupondo-se também a condição de não incluir
peixinhos e passarinhos na sua dieta, nem derrubar louças frágeis.
Em todos
esses estados de espírito que o contato com o gato proporciona, não estaria o
homem sonhando com o Paraíso perdido? Não fica propenso a sentimentos de
bondade? De outro lado, não fica propenso a sentimentos de prudência? E junto
com a virtude da prudência, não exercita também a virtude da bondade, da
caridade, da mansidão? Mais ainda a virtude da fortaleza, quando o gato
atrapalha e o homem sai em sua perseguição? Não recebe do gato uma lição de
vigilância, quando o vê levantar as orelhas e começar a olhá-lo? Nessa
situação, o homem não se sente um bobo em face do gato? O reboliço que os gatos
fazem dentro de um “saco de gatos” pode lembrar muito bem a consciência
acusadora do pecador…
Essas mil
lições que o gato proporciona ao homem simbolizam mil aspectos da realidade,
com seu lado ruim decorrente do pecado original, mas com seu lado bom que tem
fundamento em Deus. O sedoso e macio do gato simbolizam de algum modo as
delícias do convívio divino. O interessante e o novo que há no gato simbolizam
de algum modo o que há de inesgotável e sempre surpreendente para nós em Deus:
sempre o mesmo, mas motor imóvel, causando todas as coisas e fazendo coisas que
nos deixam continuamente surpresos, encantados e tranquilamente habituados a
algo que não muda nunca. E assim, subindo até o mais alto ponto, elevamo-nos a
Deus.
*
Comentários feitos por Plinio Corrêa de Oliveira durante um almoço no dia
7-7-1983, extraídos de gravação em fita magnética. A fim de serem publicados,
alguns comentários foram ligeiramente adaptados. Essa transcrição não passou
pela revisão do autor.
Fonte:
Revista Catolicismo, Nº 810, Junho/2018.
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