Pe. João Batista
de A. Prado Ferraz Costa
É natural que no transcurso do cinquentenário
do Vaticano II se tornem mais acaloradas as discussões sobre a
responsabilidade do concílio do “aggiornamento” pela terrível crise que
assola a Igreja nas últimas décadas.
Há diversas correntes de opinião que tentam dar uma
interpretação do significado e das consequências do Vaticano II para a vida da
Igreja e de toda a civilização ocidental. Compartilho da opinião daqueles
teólogos que dizem que o Vaticano II representa uma ruptura com o
magistério tradicional da Igreja, além de ter aberto um caminho para inovações
posteriores que trazem vários problemas.
De fato, sem dizer que o Vaticano II contenha
heresias – e creio que ninguém em são juízo o dirá -, cumpre reconhecer que a
magna assembleia dos anos sessenta, adotando uma anfibologia propositada,
causou uma catástrofe para Igreja. E tal anfibologia está justamente a indicar
a ruptura com a tradição, pois que a Igreja jamais, ao longo da sua história,
empregou semelhante estilo de linguagem na exposição de sua doutrina.
A meu ver, o que mais interessa na análise do
Vaticano II é ver se as conclusões dele extraídas pelos chamados progressistas
têm realmente um fundamento nas atas conciliares. E para tanto a leitura de uma
página da história da filosofia moderna será de grande utilidade como uma
comparação que ilustra muito bem o que ocorreu com o Vaticano II.
Quando se lê a história da evolução do pensamento
de René Descartes, fica-se pasmo ante as terríveis conclusões tiradas pelos
filósofos que meditaram a fundo sobre a sua obra e tiveram o mérito de ver
aonde as aporias do autor do Discurso sobre o método desaguariam.
Ninguém dirá, por exemplo, que Descartes defendia o panteísmo de Spinoza ou o
ocasionalismo de Malebranche. Mas ninguém tampouco negará que em germe esses
erros estavam encerrados em sua filosofia. Há bons autores que dizem que
Descartes percebeu que o seu novo conceito de substância (realidade que, para
existir, não necessita de nenhuma outra), acentuando o fundamento do ser da substância,
ao contrário do conceito tradicional de substância que expressa apenas um
modo de ser (realidade a cuja essência compete ser em si mesma e não em
outra), tinha graves implicações metafísicas e tentou encontrar uma solução,
mas foi em vão porque seu pensamento a respeito ficou contraditório. De maneira
que Spinoza, ao dizer que entendia por substância “aquilo que é em si e se
entende por si, isto é, aquilo cujo conceito não necessita do conceito de outra
coisa do qual se tenha de formar”e ao identificar Deus com tal substância, nada
mais fazia do que tirar uma conclusão lógica do pensamento de Descartes, o qual
não foi impedido de chegar a tanto apenas por sua formação religiosa
profundamente cristã. A propósito, discordo do juízo benévolo do douto
padre Leonel Franca sobre a relação entre o pensamento de Descartes e o
pensamento de Spinoza. Este nada mais fez do que explicitar o que latente em
Descartes.
Algo semelhante ocorreu com o pensamento de
Malebranche, o pensador do ocasionalismo que nega a realidade das causas
segundas, as quais reduz a meras ocasiões para o exercício da única causa que
seria Deus. Ele, certamente, tinha em vista o mecanicismo de Descartes. Hoje,
sabe-se que David Hume (o pensador que negou o princípio da causalidade dizendo
que o que se chama causa não passa de sucessão constante) deve muito a
Malebranche, o qual, é claro, não aprovaria sua doutrina da irracionalidade da
religião.
Essa página da história da filosofia mostra-nos que
as ideias têm uma dinâmica própria, desenvolvem-se à margem da realidade
e, depois, acabam tendo um enorme impacto sobre a cultura em geral,
influenciando as mentalidades, moldando os comportamentos.
Ademais, é preciso ter presente que os modernistas,
partindo da premissa da evolução do dogma e recusando o princípio de não
contradição, têm sempre o afã de adaptar a religião ao dinamismo da vida. Dizem
que a religião não pode ser estática mas deve evoluir ao sabor da experiência
mística do povo de Deus. Dizem também que da leitura dos autores eclesiásticos
mais antigos, anteriores ao Concílio de Nicéia, resulta irretorquível que a
“verdade” evolui. Antes de Nicéia, o dogma trinitário não se entendia como depois
do concílio, quer dizer, o Pai era considerado superior em dignidade ao Filho e
ao Espírito Santo. De modo que os modernistas vão sempre fazer uma leitura do
Vaticano II nesta perspectiva, vendo nele uma evolução em relação ao passado e
um estágio a ser superado com o tempo por uma doutrina diferente.
Pois bem, assim como Descartes tentou conciliar o
inconciliável e evitar as consequências lógicas de suas premissas, assim também
o Vaticano II. Descartes, como se sabe, desprezava a tradição escolástica e
queria reformar a filosofia por meio de um novo método. Sua reforma da
filosofia foi, na verdade, uma revolução. Descartes não poderia negar sua
responsabilidade se não tivesse morrido tão cedo e visto os desdobramentos de
sua filosofia.
Ora, o Vaticano II quis promover um “aggiornamento”
da Igreja inspirado principalmente nos teólogos da “nova teologia” condenada
por Pio XII. Como Descartes, esses teólogos desprezavam a “esclerosada”
escolástica e queriam um “retorno às origens”. O Vaticano II quis conciliar a
Igreja com os falsos princípios do mundo liberal moderno sem ao mesmo tempo
acolher as consequências de tais princípios. Quis adotar uma linguagem ambígua
para favorecer uma conciliação de posições antagônicas dentro da Igreja. Quis
afirmar o dogma católico e ao mesmo tempo agradar ao herege protestante. Quis
afirmar que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo mas quis também dizer que
esta não está constituída apenas pela Igreja Católica. Logo será impossível
impedir que os defensores da tese da ruptura doutrinária digam com razão que
apenas tiram as consequências do concilio. Com efeito, não assiste razão aos
modernistas quando dizem que a Humanae vitae representou um
retrocesso, visto que o Vaticano II silenciara quanto à doutrina da hierarquia
dos fins do matrimônio? Não está na lógica dos fatos a secularização da
sociedade após o fim dos Estados confessionais desejado pelo Vaticano II? Além
disso, o Vaticano II, ao designar a Igreja como Povo de Deus (um conceito em si
legítimo mas insuficiente para expressar tão bem o mistério da Igreja como a
imagem de corpo místico de Cristo) induz a identificar a Igreja com a
humanidade, e isto fica cada vez mais patente com os inomináveis
encontros inter-religiosos e edições ecumênicas da Bíblia. Como conciliar
tudo isto com o magistério precedente que condena tais ideias e práticas? Paulo
VI quis fazer uma missa polivalente que fosse palatável tanto aos
protestantes quanto aos católicos, conforme o testemunho de seu amigo Jean
Guiton. Como conciliar isto com o axioma teológico Lex orandi, Lex
credendi?
Conta-se que o cardeal Tisserant, que foi um dos
corifeus do progressismo durante o Vaticano II, disse, angustiado, à beira da
morte: “Humanamente a Igreja está morta”. É bem provável que o ilustre prelado
reconhecesse nos estertores da morte os tristes desdobramentos das ideias
avançadas que defendera durante o concílio.
Não é necessário dizer que a crise da Igreja nos
últimos anos seja resultado lógico dos documentos do Vaticano II. Não é
necessário tampouco dizer que há um rigoroso nexo causal entre o que diz o
Vaticano II e a desolação que vivemos. Mesmo porque estabelecer com precisão as
causas históricas de um fato, de uma época, é tarefa quase impossível. Basta
dizer que um beijo do Corão, a recepção de um “sacramental” da deusa Shiva, as
flores colocadas sobre a campa de Lutero em nome do papa, as corriqueiras “communicatio
in sacris”, os deletérios casamentos mistos, hoje vistos como meios de
“enriquecimento espiritual mútuo” e tantas outras misérias do nosso tempo estão
na linha histórica do concílio e acham nele sua melhor explicação.
Anápolis, 28 de
agosto de 2012.
Santo Agostinho, bispo e doutor.
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