Seja por sempre e em todas partes conhecido, adorado, bendito, amado, servido e glorificado o diviníssimo Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

Nota do blog Salve Regina: “Nós aderimos de todo o coração e com toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a manutenção dessa fé, à Roma eterna, mestra de sabedoria e de verdade. Pelo contrário, negamo-nos e sempre nos temos negado a seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II, e depois do Concílio em todas as reformas que dele surgiram.” Mons. Marcel Lefebvre

Pax Domini sit semper tecum

Item 4º do Juramento Anti-modernista São PIO X: "Eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos Padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve. Condeno também todo erro segundo o qual, no lugar do divino Depósito que foi confiado à esposa de Cristo para que ela o guardasse, há apenas uma invenção filosófica ou produto de consciência humana que foi gradualmente desenvolvida pelo esforço humano e continuará a se desenvolver indefinidamente" - JURAMENTO ANTI-MODERNISTA

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Eu conservo a MISSA TRADICIONAL, aquela que foi codificada, não fabricada, por São Pio V no século XVI, conforme um costume multissecular. Eu recuso, portanto, o ORDO MISSAE de Paulo VI”. - Declaração do Pe. Camel.

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Ao negar a celebração da Missa Tradicional ou ao obstruir e a discriminar, comportam-se como um administrador infiel e caprichoso que, contrariamente às instruções do pai da casa - tem a despensa trancada ou como uma madrasta má que dá às crianças uma dose deficiente. É possível que esses clérigos tenham medo do grande poder da verdade que irradia da celebração da Missa Tradicional. Pode comparar-se a Missa Tradicional a um leão: soltem-no e ele defender-se-á sozinho”. - D. Athanasius Schneider

"Os inimigos declarados de Deus e da Igreja devem ser difamados tanto quanto se possa (desde que não se falte à verdade), sendo obra de caridade gritar: Eis o lobo!, quando está entre o rebanho, ou em qualquer lugar onde seja encontrado".- São Francisco de Sales

“E eu lhes digo que o protestantismo não é cristianismo puro, nem cristianismo de espécie alguma; é pseudocristianismo, um cristianismo falso. Nem sequer tem os protestantes direito de se chamarem cristãos”. - Padre Amando Adriano Lochu

"MALDITOS os cristãos que suportam sem indignação que seu adorável SALVADOR seja posto lado a lado com Buda e Maomé em não sei que panteão de falsos deuses". - Padre Emmanuel

“O conteúdo das publicações são de inteira responsabilidade de seus autores indicados nas matérias ou nas citações das referidas fontes de origem, não significando, pelos administradores do blog, a inteira adesão das ideias expressas.”

18/09/2012

Santo Agostinho - Da justificação dos santos


Santo Agostinho (354-430).
Da justificação dos santos
Santo Agostinho

Capítulo I - A obra é resposta às cartas de Próspero e Hilário
§1. Sabemos que o Apóstolo disse na Carta aos Filipenses: Escrever-vos as mesmas coisas não me é penoso e é seguro para vós (3,1). Contudo, escrevendo aos gálatas, ao constatar que lhes transmitira pelo ministério da palavra o suficiente, o que considerava essencial, diz: Quanto ao mais ninguém me obrigue a mais trabalho, ou como se lê em muitos códices: Doravante ninguém mais me moleste (Gl 6,17). Embora confesse que me causa desagrado a falta de fé nas palavras divinas, tão numerosas e tão claras, que proclamam a graça de Deus — a qual não é graça, se nos é outorgada de acordo com nossos merecimentos - faltam-me palavras para mostrar minha estima por vós, filhos caríssimos Próspero e Hilário, à vista de vosso zelo e amor fraternos em não querer que continuem no erro os que pensam de modo contrário. Eis por que desejais que escreva mais ainda apesar de tantos livros e cartas publicados por mim sobre o assunto. E sendo tamanho meu apreço por vós à vista de tudo isto, não ouso dizer que seja o que mereceis. Assim, torno a escrever-vos, e o faço não porque tendes necessidade de mais esclarecimentos, mas apenas sirvo-me de vós como intermediários para expor o que julgava ter feito suficientemente.

§2. Havendo, pois, considerado vossas cartas, parece-me perceber que os irmãos, pelos quais manifestais tão piedosa solicitude, devem ser tratados como o Apóstolo tratou aqueles aos quais diz: Se em alguma coisa pensais diferentemente, Deus vos esclarecerá, evitando, por um lado, a sentença do poeta que afirmou: Confie cada um em si mesmo (Vírg. Eneida, 1, II, V 309), mas acatando por outro lado o que disse o profeta: Maldito o homem que confia no homem (Jr 17,5). Com efeito, ainda caminham às cegas na questão sobre a predestinação dos santos, mas se a este respeito pensam de outro modo, têm tudo para poder alcançar que Deus lhes revele a verdade, ou seja, se perseverarem no caminho ao qual chegaram. Por isso, o Apóstolo, após dizer: Se em alguma coisa pensais diferentemente, Deus vos esclarecerá, afirma em seguida: Entretanto, qualquer que seja o ponto a que cheguemos, conservemos o rumo (Fl 3,15-16). Esses nossos irmãos, alvos de vossa solicitude e piedosa caridade, chegaram ao ponto de crer com a Igreja de Cristo que o gênero humano nasce sujeito ao pecado do primeiro homem e que alguém se livra deste mal somente pela justiça do segundo homem. Chegaram também a confessar que a graça de Deus se antecipa às vontades humanas e que ninguém tem capacidade de começar ou terminar uma boa obra por suas próprias forças. Professando estas verdades, às quais chegaram, distam muito do erro dos pelagianos. E se nelas permanecerem e suplicarem àquele que concede o dom da inteligência e se pensarem diferentemente acerca da predestinação, ele lhes revelará a verdade. Mas nem por isso lhes neguemos o afeto de nossa caridade e o ministério da palavra, conforme no-lo conceder aquele a quem rogamos que lhes possamos dizer neste escrito o que lhes for conveniente e útil. Quem sabe se nosso Deus não quer fazer-lhes o bem mediante esta nossa disponibilidade, que nos leva a servi-los na livre caridade de Cristo?

Capítulo II - O princípio da fé é também dom de Deus
§3. Devemos demonstrar primeiramente que a fé, que nos faz cristãos, é dom de Deus, e o faremos, se possível, com mais brevidade do que empregamos em tantos e volumosos livros. Mas agora vejo que devo dar uma resposta aos que dizem que os testemunhos divinos, mencionados por nós e concernentes ao assunto, valem apenas para provar que podemos adquirir o dom da fé por nós mesmos, ficando para Deus só o seu crescimento em virtude do mérito com o qual ela começou por nossa iniciativa. Com esta crença não se desvia da sentença que Pelágio foi impelido a condenar no concílio da Palestina, como o atestam as próprias atas: “A graça de Deus é-nos concedida de acordo com nossos méritos”. Esta doutrina advoga que não se atribui à graça de Deus o começar a crer, mas ela nos é acrescentada para que acreditemos mais plena e perfeitamente. Assim, primeiramente oferecemos a Deus o começo de nossa fé para receber o acréscimo e qualquer outra coisa que lhe peçamos em nossa fé.

§4. Mas por que não ouvir as palavras do Apóstolo que contrariam esta doutrina: Quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém! (Rm 11,35-36). Portanto, o próprio início de nossa fé, de quem procede senão dele? E não se há de admitir que todas as coisas procedem dele exceto esta, mas, sim, tudo é dele, por ele e para ele. E quem dirá que aquele que já começou a crer, não tem merecimento junto àquele no qual crê? Daí se concluiria o poder dizer-se que as demais graças seriam acrescentadas como retribuição divina aos que já têm merecimento, o que seria afirmar que a graça de Deus nos é outorgada de acordo com nossos merecimentos. Evitando que esta proposição fosse condenada, ele mesmo a condenou. Conseqüentemente, quem pretender evitar esta sentença condenável, entenda a verdade contida nas palavras do Apóstolo, que diz: Pois vos foi concedido, em relação a Cri sto, a graça de não só crerdes nele, mas também depor ele sofrerdes (F1 1,29). O texto revela que ambas as coisas são dom de Deus, porque disse que ambas as coisas são concedidas. Não diz: “A fim de que nele acrediteis mais plena e perfeitamente”, mas de crerdes nele. E não disse também que alcançou a misericórdia para ser mais fiel, mas para ser fiel (l Cor. 7,25), porque sabia não ter oferecido a Deus o começo da fé por sua iniciativa e ter recebido dele posteriormente, como retribuição, o seu crescimento. Fê-lo apóstolo aquele que o fez crer. Estão consignados também na Escritura os começos de sua fé e são muito conhecidos através da leitura nas igrejas. Segundo estes dados, estando afastado da fé que combatia e da qual era acérrimo inimigo, converteu-se repentinamente para a mesma fé por uma graça especial. Converteu-o aquele a quem foi dito pelo profeta: Porventura não nos tornarás a dar a vida? (Sl 84,7), para que não apenas o que não queria crer, passasse a crer de livre vontade, mas também de perseguidor passasse a sofrer perseguição em defesa da fé, que ele perseguia. Foi-lhe concedido pelo Cristo não somente que nele acreditasse, mas também que por ele sofresse.

§5. E assim, mostrando o valor desta graça, que não é concedida de acordo com os méritos, mas é causa de todos os bons méritos, diz: Não como se fôssemos dotados de capacidade que pudéssemos atribuir a nós mesmos, mas é de Deus que vem a nossa capacidade (2Cor 3,5). Ouçam estas palavras, com atenção, e reflitam sobre elas os que pensam atribuir a nós o começo da fé e a Deus o seu crescimento. Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora certos pensamentos precedam de um modo instantâneo e rápido a vontade de crer, e esta vem em seguida e é quase simultânea ao pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida depois de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa, crê, havendo muitos que pensam, mas não crêem; mas todo aquele que crê, pensa, e pensando crê e crê pensando. Portanto, no tocante à religião e à piedade, do qual falava o Apóstolo, se não somos idôneos para pensar coisa alguma pela nossa capacidade, mas nossa capacidade vem de Deus, conseqüentemente não somos capazes de crer em alguma coisa pelas nossas forças, o que não é possível senão pelo pensamento, mas nossa capacidade, mesmo para o inicio da fé, vem de Deus. Do que se conclui, portanto, que ninguém é capaz por si mesmo de começar ou consumar qualquer boa obra, o que aqueles nossos irmãos aceitam como vossos escritos o manifestam, e que, para começar e consumar toda boa obra, nossa capacidade vem de Deus. Do mesmo modo, ninguém é capaz por si mesmo ou de começar a ter fé ou de nela crescer, mas nossa capacidade vem de Deus. Porque, se não existe fé se não há pensamento, também não somos capazes de pensar algo como de nós mesmos, mas nossa capacidade vem de Deus.

§6. Deve-se evitar, amados irmãos no Senhor, que o homem se engrandeça contra Deus ao dizer que é capaz de fazer o que ele prometeu. Não foi prometida a Abraão a fé dos pagãos e ele, glorificando a Deus, não acreditou plenamente porque tem o poder de cumprir o que prometeu? (Rm 4,20-2 1) Portanto, é autor da fé dos pagãos aquele que tem poder de cumprir o que prometeu. Assim, se Deus é autor de nossa fé, agindo de modo maravilhoso em nossos corações para que creiamos, haverá razão para temer que ele não seja o autor de toda a fé, de sorte que o homem atribua a si mesmo o começo da fé, para merecer apenas receber dele o seu aumento? Tende em conta que se o processo é diferente e assim a graça de Deus nos seja concedida em vista de nossos méritos, esta graça não é mais graça. Com efeito, neste caso é devolvida como paga e não é dada gratuitamente. Pois é devida ao crente para que sua fé cresça pelo auxílio do Senhor e a fé aumentada seja a recompensa da fé começada. Não se percebe, quando se diz isto, que esta recompensa é imputada aos crentes não como uma graça, mas como uma dívida. Se o homem pode criar para si o que não possuía antes e pode aumentar o que criou, não vejo outra razão para não se lhe atribuir todo o mérito da fé, a não ser o não poder se opor aos testemunhos mais que evidentes que provam ser dom de Deus a virtude da fé, de onde se origina a piedade. Entre outros, este: De acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada um (Rm 12,3), e este outro: Aos irmãos, paz, amor e fé da parte de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 6,23), e outros semelhantes. Não querendo opor-se a testemunhos tão evidentes, mas querendo atribuir a si o fato de crer, o homem quer fazer uma composição com Deus, arrogando-se uma parte da fé e deixando-lhe outra parte. E o que é mais insolente: arroga para si a primeira parte e atribui a Deus a seguinte, e no que diz ser de ambos, em primeiro lugar e a Deus em segundo plano.

Capítulo III - O autor confessa seu antigo erro sobre a graça — Texto das “Retratações”
§7. Não pensava assim aquele piedoso e humilde Doutor - refiro-me ao bem-aventurado Cipriano -, que disse: “Não há razão para nos gloriarmos, quando nada é nosso” (A Quirino, 1,111, c.4). E para demonstrá-lo, apresentou como testemunha o Apóstolo, que diz: Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7). Servindo-me principalmente deste testemunho, convenci-me também do erro, quando nele laborava, julgando que a fé, que nos leva a crer em Deus, não era dom de Deus, mas se originava em nós por nossa iniciativa, e mediante ela implorávamos os dons de Deus para viver sóbria, justa e piedosamente neste mundo. Não julgava que a fé fosse precedida pela graça de Deus, de sorte que por ela recebêssemos o que pedíssemos convenientemente, mas pensava que não podíamos ter fé, se não a precedesse o anúncio da verdade. Porém, o acolhimento à fé era iniciativa nossa, uma vez recebido o anúncio do evangelho e julgava ser merecimento nosso. Alguns opúsculos de minha lavra, escritos antes de ser ordenado bispo, revelam com clareza este erro. Entre eles está o mencionado em vossas cartas, onde se encontra o comentário sobre algumas proposições da Carta aos Romanos. Finalmente, ao fazer a revisão de todas as minhas obras e ao consignar por escrito esta revisão, de cuja obra já terminara dois livros antes que tivesse recebido vossos escritos mais extensos, e tendo chegado à revisão do referido livro no primeiro volume, assim me expressei: “E discutindo também sobre o que Deus elegeu no não ainda nascido, ao qual disse que serviria o maior, e o que reprovou no mesmo mais idoso também ainda não nascido — aos quais, embora escrito muito mais tarde, faz referência o testemunho profético: Amei Jacó e aborreci Esaú (Rm 9,13; Ml 1,3)—, cheguei a este raciocínio e disse: “Deus não elegeu na sua presciência as obras de cada um, que ele mesmo haveria de realizar, mas elegeu a fé conforme à mesma presciência, de modo que, conhecendo previamente o que nele havia de crer, escolheu-o para dar-lhe o Espírito Santo, e assim pela prática das boas obras, obtivesse também a vida eterna. Ainda não pesquisara com toda diligência, nem ainda descobrira o que fosse a eleição da graça, da qual diz o mesmo Apóstolo: Constituiu-se um resto segundo a eleição da graça (Rm 11,5). Esta não é graça, se a precede qualquer mérito, e o que se concede não como graça, mas como dívida, concede-se como recompensa aos méritos e não é concessão. Por conseguinte, o que disse à continuação: “Pois diz o mesmo Apóstolo: E o mesmo Deus que realiza tudo em todos (1 Cor 12,6), nunca se disse que Deus crê todas as coisas em todos”. E acrescentei em seguida: “Porque cremos, é mérito nosso, mas fazer o bem pertence àquele que dá aos crentes o Espírito Santo”. No entanto, não o diria, se já soubesse que a própria fé se encontra entre os dons de Deus outorgados no mesmo Espírito. Portanto, ambas as coisas as realizamos pelo assentimento da liberdade, e ambas, no entanto, são concedidas pelo Espírito de fé e de caridade. Pois, não somente a caridade, mas como está escrito: Amor e fé da parte de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 6,23). E também o que afirmei um pouco depois: “Pertence a nós o querer e o crer, mas a ele conceder aos que querem e crêem a faculdade de praticar o bem pelo Espírito Santo, pelo qual a graça foi derramada em nossos corações”, é verdade, mas de acordo com o mesmo processo, ou sei a, ambas são dele, porque prepara a vontade, e ambas são nossas, porque não se realizam sem o nosso assentimento. E também o que disse depois: “Não podemos nem querer, se não somos chamados e, ao querermos após ser chamados, não bastam a nossa vontade e a nossa corrida, se Deus não der forças aos que correm e os leve aonde os chama. E o que acrescentei em seguida: Não depende, portanto, daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus, que faz misericórdia (Rm 9,16), para podermos praticar o bem, é verdade absoluta.” Mas dissertei com muita brevidade acerca da vocação que ocorre segundo o desígnio de Deus. Pois não é assim a vocação de todos, mas somente dos eleitos. Por isso, quando disse um pouco depois: “Assim como naqueles que Deus elege, a fé, e não as obras, dá início ao mérito a fim de que pelo dom de Deus se pratique o bem, assim naqueles que ele condena, a infidelidade e a impiedade são o princípio do demérito, a fim de que pelo mesmo castigo também se pratique o mal”, essas palavras são expressão da verdade absoluta. Mas não disse que o mérito da fé seja também um dom de Deus nem julguei que seria um assunto a averiguar. E afirmei em outro lugar: De modo que ele faz misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer (Rm 9,18) e deixa-o para que pratique o mal. Mas a misericórdia é outorgada ao mérito precedente da fé, e o endurecimento, à iniqüidade precedente. Isto é indubitavelmente certo, mas devia-se investigar ainda se o mérito da fé provém da misericórdia de Deus, isto é, se esta misericórdia favorece o homem porque crê ou favoreceu para que cresse. Pois lemos o que diz o Apóstolo: Como quem alcançou misericórdia para ser fiel (1 Cor 7,25). Não diz: porque era fiel. Portanto, a misericórdia é na verdade concedida ao que é fiel, mas foi concedida também para ser fiel. E assim, com toda verdade, afirmei em outro lugar do mesmo livro: “Porque se não é pelas obras, mas pela misericórdia de Deus que somos chamados para ser fiéis e, sendo fiéis, é concedida para praticarmos o bem, esta misericórdia não se há de negar aos pagãos”; se bem é certo que tratei ali com mais brevidade da vocação que se realiza segundo o desígnio de Deus” (Retratações, 1, cap. 23 nn. 3-4).

Capítulo IV - A revisão de sua doutrina pelas Retratações
§8. Assim tomais conhecimento sobre o que eu pensava então sobre a fé e as obras, embora me esforçasse em prestigiar a graça de Deus. Vejo agora que esses nossos irmãos abraçam esta opinião porque não cuidaram de progredir comigo do mesmo modo que se interessaram em ler os meus livros. Pois, se tivessem tido esta preocupação, teriam encontrado resolvida esta questão de acordo com a verdade das divinas Escrituras no primeiro dos dois livros que, no começo de meu episcopado, escrevi a Simpliciano, de feliz memória, bispo da Igreja de Milão, sucessor do bem-aventurado Ambrósio. A não ser que não os conheceram e, se assim for, fazei com que os conheçam. Deste primeiro dos dois livros falei primeiramente no segundo das Retratações, onde me expresso nos seguintes termos: “Dos livros que elaborei, sendo já bispo, que tratam de diversas questões, os dois primeiros são dedicados a Simpliciano, prelado da Igreja de Milão, que sucedeu ao bem-aventurado Ambrósio. Duas das questões, tomadas da carta de Paulo apóstolo aos romanos, reuni no primeiro livro. A primeira enfoca o que está escrito: Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo algum! até onde diz: Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cri sto Senhor nosso (Rm 7,7-25). Nesta questão, as palavras do Apóstolo: A lei é espiritual, mas eu sou carnal (Rm 14), e as demais onde se declara a luta da carne contra o espírito, de tal modo expus, como se o ser humano estivesse sob a lei e não libertado pela graça. Pois compreendi muito mais tarde que tais palavras podiam se referir também ao homem espiritual, o que é mais provável. A segunda questão neste primeiro livro abrange a passagem onde diz: E não é só. Também Rebeca, que conceberá de um só, de Isaac, nosso pai, até o trecho onde afirma: Se o Senhor Sabaot não nos tivesse preservado um germe, teríamos ficado como Sodoma, teríamos ficado como Gomorra (Rm 9,10-29). Na solução desta questão trabalhou-se certamente pelo triunfo do livre-arbítrio, mas a graça de Deus venceu. E não se podia chegar a esta conclusão, senão entendendo corretamente o que disse o Apóstolo: Pois quem é que te distingue? Que é que possuis, que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7). O que o mártir Cipriano pretendia demonstrar, define-o cabalmente com este título: “Em nada nos devemos gloriar, porque nada é nosso” (Retratações 1, c.1, n. 1). Eis a razão pela qual disse acima que me havia convencido desta questão principalmente por este testemunho apostólico, quando sobre ela pensava de modo diferente. Deus me inspirou a solução, quando, conforme disse, escrevia ao bispo Simpliciano. Portanto, este testemunho do Apóstolo, onde ele disse para se refrear o orgulho humano: O que possuis que não tenhas recebido, não permite a nenhum fiel dizer: “Tenho a fé que não recebi”. Toda tentativa de soberba fica assim reprimida com as palavras desta resposta. Mas o seguinte se pode dizer: “Ainda que não tenha a fé perfeita, tenho, contudo, seu começo, pela qual primeiramente acreditei em Cristo”. Isso porque então não se pode responder: O que possuis que não recebeste? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7).

Capítulo V - A gratuidade refere-se também à fé; não somente aos bens da natureza
§9. O que esses irmãos pensam, ou seja: “Quando se trata do começo da fé, não se pode dizer: O que possuis que não recebeste?, porque permaneceu na própria natureza, embora contaminada, o que lhe foi dado quando sã e perfeita” (Carta de Hilário, n. 4), não deve ser entendido para o que pretendem valorizar, se se pensa a razão pela qual o Apóstolo fez esta afirmação: Pois tratava ele de que ninguém se gloriasse no homem, já que haviam surgido dissensões entre os cristãos de Corinto a ponto de dizerem: “Eu sou de Paulo!' ou “Eu sou de Apolo!' ou “Eu sou de Cefas!” e por isso veio a dizer: O que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus. Nestas palavras percebe-se a intenção muito clara do Apóstolo contra a soberba humana, a fim de que ninguém se glorie no homem e, portanto, nem em si mesmo. Finalmente, depois de dizer: A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus, para mostrar em que o homem se deve gloriar, acrescentou imediatamente: E por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1Cor 1,12.27-31). Estas palavras foram o apoio para manifestar sua intenção para dizer em repreensão: Visto que ainda sois carnais. Com efeito, se há entre vós invejas e rixas, não sois carnais e não vos comportais de maneira meramente humana? Quando alguém declara: “Eu sou de Paulo”, e outro diz: “Eu sou de Apolo” não procedeis de maneira meramente humana? Quem é, portanto, Apolo? Quem é Paulo? Servidores, pelos quais fostes levados à fé; cada um deles aqui segundo os dons que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei, Apoio regou; mas era Deus quem fazia crescer. Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa somente Deus que dá o crescimento. Percebeis que o Apóstolo não pretende outra coisa, senão que o homem se humilhe e apenas Deus seja exaltado? Pois, ao se referir aos que são plantados ou regados, afirma que nada são o que planta ou que rega, mas o que dá o crescimento, ou seja, Deus. O mesmo diz se aquele planta e este rega; não devem atribuir a si mesmos, mas ao Senhor, ao afirmar: Cada um deles agiu segundo os dons que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei, Apoio regou. Persistindo no mesmo propósito, vem a dizer: Por conseguinte, ninguém procure nos homens motivo de orgulho (1Cor 5-6.2 1). Pois dissera antes: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor Depois destas e algumas outras palavras, que com estas se relacionam, sua intenção o leva a dizer: Nisso tudo, irmãos, eu me tomei como exemplo juntamente com Apolo por causa de vós, a fim de que aprendais a nosso respeito a máxima: “Não ir além do que está escrito” e ninguém se ensoberbeça, tomando o partido de um contra o outro. Pois quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,6-7).

§10. Conforme entendo, seria o maior absurdo supor que, nesta mais que evidente intenção do Apóstolo de falar contra a soberba humana para evitar que ninguém se glorie nos homens, mas em Deus, esteja ele se referindo aos dons naturais, seja os da natureza cabal e perfeita outorgada na primeira condição, seja quaisquer vestígios da natureza decaída. Porventura, mediante tais dons comuns a todos, os homens se distinguem uns dos outros? No referido texto, o Apóstolo disse primeiramente: Quem é que te distingue? e acrescentou à continuação: Que é que possuis que não tenhas recebido? Pois uma pessoa cheia de orgulho poderia dizer a outra: “Distinguem-me minha fé, minha justiça” ou coisa semelhante. Vindo ao encontro de tais pensamentos, o bom Doutor diz: “O que possuis que não recebeste? E de quem recebeste, senão daquele que te distingue do outro, ao qual não concedeu o que te concedeu?”. “E, se o recebeste, diz ele, por que te glorias como se não o tivesses recebido?” Pergunto eu: não insiste o Apóstolo em que alguém que se gloria, glorie-se no Senhor? Mas nada tão oposto a este sentido que o gloriar-se alguém de seus merecimentos, como se ele mesmo praticasse tais obras meritórias e não pela graça de Deus. Refiro-me à graça que distingue os bons dos maus, não à que é comum aos bons e aos maus. Portanto, se a graça representa os atributos da natureza, que nos faz animais racionais e nos distingue dos simples animais; se ela representa os atributos da natureza, que causa diferenças entre os homens normais e os disformes ou entre os inteligentes e os retardados, e assim outros atributos semelhantes, aquela pessoa, repreendida pelo Apóstolo, não se ensoberbecia contra um animal ou contra alguma pessoa no tocante a algum dote natural, ainda que fosse de ínfimo valor. Mas orgulhava-se de algum bem referente à vida de santidade, não atribuindo a Deus mas a si, e por isso mereceu ouvir: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido? Mesmo sendo dom natural o poder ter fé, acaso o é também possuí-la? Pois nem todos têm fé (2Ts 3,2), embora todos possam tê-la. O Apóstolo não diz: “O que podes ter que não recebeste para poder possuí-la?”. Mas diz: Que é que não possuis que não recebeste? Por conseguinte, o ser capaz de ter fé, assim como ser capaz de ter caridade, é próprio da natureza humana. Mas ter fé, assim como ter caridade, é próprio da graça nos que crêem. A natureza, que nos dá a possibilidade de ter fé, não distingue um ser humano do outro, mas a fé distingue um crente do não crente. Por isso, quando se diz: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não recebeste? quem ousa afirmar: “Tenho a fé por minha iniciativa; portanto, não a recebi”? Tal pessoa contradiz esta verdade evidente, não porque o crer ou não crer não dependa do livre-arbítrio humano, mas porque a vontade nos eleitos é preparada pelo Senhor (Pr 8, seg. LXX). Portanto, no campo da fé, que depende da vontade, procedem as palavras: Quem é que te distingue? Que é que possuis que não recebeste?

Capítulo VI - Os insondáveis juízos de Deus e a predestinação dos santos
§11. “São muitos os que ouvem a palavra da verdade, mas uns crêem, outros a contradizem. Os primeiros querem crer, ao passo que os segundos não o querem.” Quem ignora este fato? Mas como naqueles a vontade é preparada pelo Senhor, o que não acontece com os segundos, é preciso distinguir o que vem da sua misericórdia e o que vem de sua justiça. Diz o Apóstolo: Aquilo a que tanto aspira, Israel não conseguiu: conseguiram-no, porém, os escolhidos. E os demais ficaram endurecidos. Como está escrito: “Deu-lhes Deus um espírito de torpor, olhos para não verem, ouvidos para não ouvirem, até o dia de hoje”. Diz também Davi: Que sua mesa se transforme em cilada, em motivo de tropeço e justa paga. Que seus olhos fiquem escuros para não verem, e faze que eles tenham sempre seu dorso encurvado. Eis a misericórdia e o juízo; misericórdia para a eleição que alcançou a justiça de Deus; juízo para os demais que ficaram cegos. No entanto, os que quiseram, acreditaram; os que não quiseram, não acreditaram. Portanto, a misericórdia e a justiça verificaram-se nas próprias vontades. Pois esta eleição é obra da graça, não dos méritos. Um pouco antes o Apóstolo dissera: Assim também no tempo atual constituiu-se um resto segundo a eleição da graça. E se é por graça, não é pelas obras; do contrário a graça não é mais graça (Rm 11,5-10). Portanto, gratuitamente foi alcançada porque foi alcançada a eleição. Da parte deles não a precedeu nenhum mérito que pudesse ser apresentado antes e a eleição significasse uma retribuição. Salvou-os à custa de nada. Os outros ficaram cegos e receberam em retribuição, como o texto esclarece. Todas as veredas do Senhor são graça e fidelidade (Sl 24,10). Pois são impenetráveis seus caminhos (Rm 11,33). Por conseguinte, são impenetráveis a misericórdia pela qual liberta gratuitamente e a verdade pela qual julga com justiça.

Capítulo VII - A fé é o fundamento da vida espiritual
§12. É possível que alguém diga: “O Apóstolo faz distinção entre a fé e as obras, pois afirma que a graça não procede das obras, mas não diz que não procede da fé”. É verdade, mas Jesus assevera que a fé é obra de Deus e a exige para a prática das boas obras. Pois disseram-lhe os judeus: “Que faremos para trabalhar nas obras de Deus?”. Respondeu-lhes Jesus: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou” (Jo 6,28-29). Neste sentido, portanto, o Apóstolo faz distinção entre a fé e as obras, assim como nos dois remos hebreus se diferencia Judá de Israel, apesar de Judá ser Israel. O Apóstolo assegura que o homem se justifica pela fé, e não pelas obras (Gl 2,16), porque a primeira é concedida em primeiro lugar e, a partir dela, alcançamos o restante que é chamado propriamente de obras, mediante as quais se vive a justiça. São também palavras do Apóstolo: Pela graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus, ou seja, e o que disse: “pela fé que não vem de vós, mas é dom de Deus”. Não vem das obras, diz ele, para que ninguém se encha de orgulho (Ef 2,8-9). Costuma-se dizer: “Mereceu crer, porque era homem justo mesmo antes de crer”. Pode dizer isto a respeito de Cornélio, cujas esmolas foram aceitas e as orações ouvidas antes de crer em Cristo (At 10,4), mas ele não distribuía esmolas e orava privado totalmente de fé. Pois como podia invocar aquele no qual não acreditava? (Rm 10,14). E se pudesse obter a salvação sem a fé em Cristo, não lhe seria enviado o apóstolo Pedro como arquiteto para edificá-lo, já que se o Senhor não edificar a casa, é em vão que trabalham os que a edificam (51 126,1). E ainda dizem: “A fé é obra nossa, e do Senhor tudo o mais que diz respeito às obras da justiça”, como se a fé não fizesse parte do edifício, como se, digo eu, o edifício não incluísse o alicerce. Mas se antes de mais nada e principalmente o inclui, em vão trabalha pela pregação edificando a fé, se o Senhor não a edificar interiormente pela misericórdia. Por isso, todo o bem praticado por Cornélio, antes de crer em Cristo, quando acreditou e depois de crer, tudo se há de atribuir a Deus, a fim de que ninguém se encha de orgulho.

Capítulo VIII - Comentário sobre a sentença: “Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende, vem a mim” — Mistério dos desígnios de Deus
§13. Nosso único Mestre e Senhor, depois de ter proferido a sentença mencionada acima: A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou, disse depois no mesmo discurso: Eu, porém, afirmo: vós me vedes, mas não acreditais. Todo aquele que o Pai me der vem a mim. Quem é que virá a mim, senão o que há de acreditar em mim? Mas sua efetivação é concessão do Pai. É o que diz um pouco depois: Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos Profetas: “E todos serão ensinados por Deus. Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim (Jo 6,29.36.37.43-45). O que significa: Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim, senão: “Não há ninguém que escute o ensinamento do Pai e dele aprende que não venha a mim”. Pois, se todo aquele que escuta o Pai e dele aprende, vem, conseqüentemente todo aquele que não vem, não ouviu o Pai, nem dele aprendeu, pois se tivesse ouvido e aprendido, viria. E nenhum que escutou e aprendeu, deixou de vir: mas diz a Verdade: vem quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende. É muito estranha aos sentidos corporais esta escola, em que o Pai é ouvido e ensina para que se venha ao Filho. Ali está também o próprio Filho, porque ele é seu Verbo, por cujo intermédio ele ensina, e não o faz com os ouvidos carnais, mas com os do coração. Também está ali o Espírito do Pai e do Filho, pois ele não deixa de ensinar nem ensina separadamente, já que aprendemos que as obras da Trindade são inseparáveis. E ele é o Espírito Santo, do qual afirma o Apóstolo: Tendo o mesmo Espírito de fé (2Cor 4,13). Contudo, atribui-se principalmente ao Pai, porque o Unigênito é dele gerado e dele procede o Espírito Santo. Mas seria prolixo discorrer a esse respeito e, por outro lado, creio que chegou às vossas mãos o meu trabalho sobre a Trindade, que é Deus, constando de quinze livros. É muito estranha, repito, aos sentidos corporais esta escola em que Deus é ouvido e ensina. Vemos muitos vir ao Filho, porque vemos muitos crer em Cristo, mas não vemos como e onde ouviram isto do Pai e aprenderam. Esta graça é deveras secreta, mas quem duvida que seja uma graça? Com efeito, esta graça, conferida ocultamente aos corações humanos pela divina liberalidade, não é recusada por nenhum coração por mais endurecido que seja. Pois é conferida para, primeiramente, destruir a dureza do coração. Portanto, quando o Pai é ouvido interiormente e ensina para que se venha ao Filho, retira o coração de pedra e dá um coração de carne, como prometeu pela pregação do profeta (Ez 11,19). Assim ele forma os filhos da promessa e os vasos de misericórdia que preparou para a glória.

§14. Portanto, por que não ensina a todos para que venham a Cristo, senão porque todos os que ele ensina, ensina pela misericórdia, e os que não os ensina, não os ensina por sua justiça? Ele faz misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer. Mas se compadece conferindo bens e endurece retribuindo os pecados. Ou se estas palavras, como alguns preferiram entender, referem-se àquele a quem o Apóstolo diz: Dar-me-ás então, para que se entenda que foi ele que disse: Do modo que ele faz misericórdia a quem quer e endurece a quem ele quer, e as palavras que vêm à continuação, ou seja: Por que ele ainda se queixa? Quem, com efeito, pode resistir à sua vontade?, acaso a resposta do Apóstolo foi nestes termos: “O homem! é falso o que disseste?”. Não, mas foi nestes termos: Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Vai acaso a obra dizer ao artista: “Por que me fizeste assim? O oleiro não pode formar de sua massa..., e o restante que bem conheceis. Contudo, de certo modo o Pai ensina todos a vir a seu Filho. Não é sem razão que está escrito nos Profetas: E todos serão ensinados por Deus. Depois de aludir a este testemunho, então acrescenta: Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende, vem a mim. Assim como, ao nos referir a um único professor de letras da cidade, dizemos corretamente: “Ele ensina a todos a literatura”, não porque todos recebem dele o ensinamento, mas porque não aprende a não ser com ele quem em tal cidade aprende literatura, assim digamos também com exatidão: “Deus ensina todos a vir a Cristo”, não porque todos venham, mas porque ninguém vem de outro modo. A razão pela qual não ensina a todos, o Apóstolo declarou à medida que julgou suficiente, porque, querendo manifestar sua ira e tornar conhecido seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, prontos para a perdição, a fim de que fosse conhecida a riqueza de sua glória para os vasos de misericórdia, preparados para a glória (Rm 9, 18-23). Por isso, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus (1Cor 1,18). A estes todos Deus ensina a virem a Cristo, pois a todos estes quer que se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (lTm 2,4). Se quisesse ensinar também a vir a Cristo aqueles para os quais a linguagem da cruz é loucura, sem dúvida eles viriam. Pois não engana nem se engana aquele que diz: Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende, vem a mim. Longe de pensar que deixa de vir algum que ouviu o ensinamento e aprendeu.

§15.Por que, perguntam eles, não ensina a todos? Se dissermos assim: aqueles que ele não ensina, não querem aprender, responder-nos-ão: E como entender o que está escrito: Porventura não nos tornarás a dar a vida? (Sl 84,7). Ou se Deus não faz querer os que não querem, por que a Igreja reza pelos perseguidores conforme o preceito do Senhor? (Mt 5,44). Pois neste sentido entendeu Cipriano as palavras que pronunciamos: Seja realizada a tua vontade na terra, como é realizada nos Céus (Mt 6,10), ou seja, como é realizada naqueles que já creram e são como o céu, assim também se realiza naqueles que não crêem, pelo qual são ainda terra. Portanto, por que pedimos em favor dos que não querem crer, a não ser para que Deus opere neles o querer? (Fl 2,13). O Apóstolo diz claramente a respeito dos judeus: Irmãos, o desejo do meu coração e a prece que faço a Deus em favor deles é que sejam salvos (Rm 10,1). O que pede pelos que não crêem, senão que creiam? De outro modo, não alcançariam a salvação. Pois, se a fé dos que crêem antecede a graça de Deus, acaso a fé daqueles pelos quais se pede que creiam antecede a graça de Deus? Responde-se: quando se pede por eles que não crêem, isto é, não têm fé, é para que lhes seja concedida a fé. Disse Cristo: Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair. Estas palavras ficam mais claras pelo que disse mais adiante. Pois, ao falar um pouco depois de sua carne a ser comida e de seu sangue a ser bebido”, e terem dito alguns discípulos: “Esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?' Compreendendo que seus discípulos murmuravam por causa disso, Jesus lhes disse: “Isto vos escandaliza?' E disse um pouco depois: “As palavras que vos disse são espírito e vida. Alguns de vós, porém, não crêem' E acrescenta o evangelista: Jesus sabia, com efeito, desde o princípio, quais os que não acreditavam e quem era o que o entregaria. E dizia: “Por isto vos afirmei que ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai” (Cf. Jo 6,44-65). Portanto, ser atraído pelo Pai a Cristo e ouvir o Pai e dele aprender para vir a Cristo, é o mesmo que receber do Pai o dom para crer em Cristo. Pois não distinguiu os que ouvem o evangelho dos que não o ouvem, mas os que crêem dos que não crêem aquele que dizia: Ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai.

§16. Assim, pois, tanto a fé inicial como a perfeita, são dons de Deus. E quem não quiser contradizer aos evidentes testemunhos das Letras Sagradas, não duvide que este dom seja concedido a uns e não concedidos a outros. O motivo pelo qual não é concedido a todos, não deve inquietar aquele que crê que todos incorremos na condenação por um só homem, uma condenação muito justa, de sorte que nenhuma reprovação contra Deus seria justa, mesmo que ninguém alcançasse a libertação. Assim, fica evidente que é uma grande graça o fato de muitos se libertarem; eles percebem nos que não são libertados o que lhes era devido. Conseqüentemente, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor, e não em seus merecimentos, que bem sabe serem iguais aos dos condenados. A razão pela qual este é libertado de preferência àquele, tenha-se em conta que insondáveis são seus juízos e impenetráveis seus caminhos (Rm 11,33). Melhor será ouvir e dizer a este respeito: Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? (Rm 9,20), do que ousar dizer, como se soubéssemos, por que quis que ficasse oculto aquele que não pode querer nenhuma injustiça.


Capítulo IX - O autor reassume ensinamentos desenvolvidos com brevidade em outro trabalho
§17. Deveis lembrar-vos do que eu disse na pequena obra escrita contra Porfírio sob o título: O tempo da religião cristã. Fiz aquelas afirmações com a finalidade de omitir uma dissertação mais diligente e mais trabalhosa, sem deixar, no entanto, de indicar o verdadeiro significado da graça, porque não queria explanar naquela obra o que podia ser explicado em outras circunstâncias ou por outros autores. Entre outras coisas, respondendo à pergunta que me foi formulada: “Por que Cristo veio ao mundo depois de tantos séculos?”, afirmei o seguinte: Como não se põem contra Cristo pelo fato de nem todos seguirem sua doutrina — pois eles mesmos percebem que não se pode argumentar legitimamente deste modo, seja contra a sabedoria dos filósofos, seja contra a divindade de seus deuses—, o que responderão se, salvaguardando a profundidade da sabedoria e da ciência de Deus, na qual talvez se oculte um desígnio divino mais secreto e sem prejuízo também de outros motivos que podem ser investigados pelos entendidos, nós lhes disséssemos apenas isto, devido à brevidade na discussão deste assunto: que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes a sua doutrina somente quando sabia existirem os que nele haveriam de crer? Pois, nos tempos e lugares, nos quais foi pregado seu evangelho, sabia por sua presciência que existiriam, com relação à sua pregação, tantos homens, como existiriam nos dias de sua presença corporal, embora nem todos, mas muitos deles não quiseram acreditar nele, apesar de ter ressuscitado muitos mortos. Agora também são muitos os que, apesar de se cumprirem com tanta evidência as predições dos profetas a seu respeito, não querem ainda crer e preferem resistir com astúcia humana em vez de se entregarem à autoridade divina tão clara, tão evidente, tão sublime e tão sublimemente manifestada, enquanto a inteligência humana se revela tão fraca e limitada para se conformar à verdade divina. Por que estranhar, se Cristo, que conhecia o estado do mundo nos tempos primitivos tão cheio de infiéis, não se lhes quisesse manifestar nem ser anunciado, já que sabia por sua presciência que não haveriam de acreditar pela pregação nem pelos milagres? E nem é incrível que todos fossem infiéis, quando vemos que, desde a sua vinda até os tempos de hoje, existiram e existem muitos também incrédulos. Contudo, desde o princípio do gênero humano, umas vezes de modo mais oculto e outras vezes mais às claras, conforme parecia a Deus acomodar-se aos tempos, nunca ele permitiu que faltassem profetas, nem faltassem os que nele acreditaram. E isso aconteceu antes de ele se encarnar no próprio povo de Israel, que por um singular mistério foi uma nação profética, e também nos outros povos. E como alguns são lembrados nos santos livros hebreus, mesmo desde o tempo de Abraão, mas não nascidos de sua linhagem nem do povo de Israel, que nem de algum grupo agregado ao povo de Israel, os quais, no entanto, participaram deste mistério da fé em Cristo, por que não acreditar que tenham existido outros crentes entre outros povos, aqui e acolá, embora não sejam mencionados nos referidos livros? Assim, o poder salvífico desta religião, a única verdadeira, pela qual se promete em verdade a verdadeira salvação, jamais faltou a alguém que dele fosse digno, e se a alguém faltou, é porque não foi digno. E ela é anunciada a alguns para recompensa, e a outros, para manifestação da justiça desde o começo das gerações humanas até o seu fim. Por isso, aqueles aos quais não foi absolutamente anunciada, ele sabia pela sua presciência que não haveriam de crer, e a quem foi anunciada, sabendo que não acreditariam, estes são revelados para exemplo dos outros. Porém, aqueles a quem é anunciada, pois hão de crer, são os que Deus prepara para o reino dos Céus e a companhia dos santos anjos” (Carta 102, nn. 14-15).

§18. Julgais que, sem prejuízo dos desígnios ocultos de Deus e de outras causas, quis dizer tudo isto sobre a presciência de Cristo, porque me parecia ser suficiente para convencer os incrédulos que me lançaram esta pergunta? O que há de mais verdade que o fato de Cristo ter sabido antecipadamente quais, quando e em que lugares existiriam os que nele haveriam de crer? Mas não considerei necessário investigar e discorrer naquele momento, se, depois de lhes ter sido anunciado o Cristo, teriam possuído a fé por si mesmos ou a teriam recebido de Deus como um dom, ou seja, se esta fé teria sido objeto apenas da presciência de Deus ou se Deus os teria predestinado. Portanto, o que afirmei: “Que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes sua doutrina somente quando sabia e onde sabia existirem os que nele haveriam de crer”, pode-se dizer também deste modo: “Que Cristo quis aparecer aos homens e anunciar-lhes sua doutrina, quando sabia e onde sabia existirem os que tinham sido escolhidos nele antes da criação do mundo” (Ef 1,4). Mas porque, se tivesse feito estas afirmações, despertaria a atenção do leitor para a investigação dos ensinamentos que agora é mister discutir com mais extensão e esmero devido à censura do erro pelagiano, pareceu-me que então devia fazer com brevidade o que era suficiente, salvaguardando, como disse, a profundidade da sabedoria e ciência de Deus e sem prejuízo de outras causas. Considerando estas causas, julguei que devia discorrer não naquele momento, mas em outra ocasião e mais oportunamente.

Capítulo X - A diferença entre graça e predestinação
§19. Sobre o que afirmei antes: “O poder salvífico desta religião jamais faltou a alguém que dela fosse digno e, se a alguém faltou, é porque não foi digno”, se se discute e investiga a razão pela qual alguém é digno, não faltam os que dizem que é pela vontade humana. Nós, porém, dizemos que é pela graça ou predestinação divinas. Todavia entre a graça e a predestinação há apenas esta diferença: a predestinação é a preparação para a graça, enquanto a graça é a doação efetiva da predestinação. Assim, o que diz o Apóstolo: “Não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho. Pois somos criaturas dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras,” significa a graça. O que se lê em continuação: “Que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos” (Ef 2,9-10), indica a predestinação, que não existe sem a presciência, ao passo que a presciência se pode dar sem a predestinação. Pela predestinação, Deus previu o que havia de fazer, pelo que foi dito: “Fez as coisas do futuro (Is 45, seg. LXX).” Ele tem o poder de prever mesmo o que não faz, como são quaisquer pecados, ainda que haja pecados que o são como castigo de pecados, como está escrito: Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não presta (Rm 1,28); nisto não há pecado de Deus, mas justiça de Deus. Portanto, a predestinação de Deus, que é prática do bem, é, como disse, preparação para a graça, mas a graça é efeito da própria predestinação. Por isso, quando Deus prometeu a Abraão em sua descendência a fé de muitos povos, dizendo: “E tu serás pai de muitas gentes” (Gn 17,4-5), o que levou o Apóstolo a dizer: “A herança vem da fé, para que seja gratuita e para que a promessa fique garantida a toda a descendência,” não fez a promessa em virtude do poder de nossa vontade, mas devido à sua predestinação. Prometeu, pois, não o que os homens, mas o que ele havia de realizar. Porque, embora os homens façam o bem relativo ao culto de Deus, ele faz com que eles façam o que ordenou, e não depende deles que ele faça o que prometeu. Em caso contrário, para o cumprimento da promessa de Deus, dependeria do poder dos homens e não do de Deus, e o que pelo Senhor foi prometido, retribuiriam a Abraão. Não foi neste sentido que Abraão acreditou, mas acreditou, dando glória a Deus, convencido de que ele é capaz de cumprir o que prometeu (Rm 4,16-2 1). Não diz: “Predizer”, mas “Saber pela presciência”. Pois é capaz de também predizer e prever as ações alheias a si, mas diz: é capaz de cumprir, o que quer dizer: não obras estranhas a si, mas as próprias.

§20. Porventura Deus prometeu a Abraão na sua descendência as boas obras dos gentios, prometendo, portanto, o que ele mesmo faz? Não lhe prometeu a fé dos gentios, que é obra dos homens, mas, para prometer o que ele faz, não teve presciência da fé que seria obra dos homens? Não é este o pensamento do Apóstolo, pois Deus prometeu a Abraão filhos que seguissem suas pegadas na fé; é o que diz com toda a clareza. Mas se prometeu as obras dos gentios e não a fé, sem dúvida foi porque não existem boas obras a não ser pela fé, como está escrito: “O justo viverá da fé” (Hab 2,4), e: “Tudo o que não procede da boa fé é pecado” (Rm 14,23), e: “Sem a fé é impossível ser-lhe agradável” (Hb 11,6); contudo, o cumprimento do prometido por Deus depende do poder humano. Isso porque, se o homem não faz sem a graça de Deus o que depende de seu poder, Deus não fará por seu dom, ou seja, se o homem não tiver fé por si mesmo, Deus não cumpre o que prometeu, a fim de que as obras da justiça sejam obras de Deus. Por isso, o fato de Deus cumprir suas promessas não depende de Deus, mas do homem. Mas se a verdade e a piedade não impedem a fé, creiamos com Abraão que Deus é capaz de cumprir o que prometeu. Mas Deus prometeu a Abraão filhos, os quais não poderão sê-lo, se não tiverem fé. Portanto, Deus outorga também a fé.

Capítulo XI - A fé e a salvação são dons de Deus como o são a mortificação da carne e a vida eterna
§21. Se o Apóstolo diz: A herança vem da fé, para que seja gratuita e para que a promessa fique garantida, muito me admiro que os homens prefiram confiar na sua fraqueza a confiar na firmeza da promessa de Deus. Mas alguém dirá: “Não estou certo sobre a vontade de Deus a meu respeito”. O que dizer? Não estás certo nem sequer de tua vontade sobre ti mesmo e não temes o que está escrito: Aquele que julga estar em pé, tome cuidado para não cair (lCor 10,12). Se ambas as vontades são incertas, por que o homem não apóia sua fé, esperança e caridade no mais firme e não no mais fraco?

§22.Replicarão: “Mas quando se diz: Se creres, serás salvo (Rm 10,9), uma das duas coisas é exigência, a outra é oferecida. O que se exige, depende do homem, o que é oferecido, está no poder de Deus”. Por que não dizer que ambas estão no poder de Deus, o que se exige e o que se oferece? Pois pede-se que conceda o que manda. Os que têm fé rogam para que lhes aumente a fé, rogam pelos que não crêem, para que lhes seja concedida a fé. Portanto, tanto em seu crescimento como em seu princípio, a fé é dom de Deus. Está escrito: Se creres, serás salvo, do mesmo modo que se diz: Se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis. Nesta passagem, também uma das duas coisas é exigida e a outra é oferecida. Diz o texto: “Se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis”. Portanto, exige-se a mortificação das obras da carne e nos é oferecida a vida. Acaso parece bem dizer que mortificar as obras da carne não seja dom de Deus e que não confessemos ser dom de Deus porque sabemos ser uma exigência em troca da recompensa oferecida da vida eterna, se as fizermos? Não permita Deus que esta opinião agrade aos que participam da verdadeira doutrina da graça e a defendem. E este um erro condenável dos pelagianos, os quais o Apóstolo faz calar, quando diz: “Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus (Rm 8,13-14),” o que evita acreditar que a mortificação de nossa carne não seja um dom de Deus, mas capacidade de nosso espírito. Ao mesmo Espírito de Deus se referia ao dizer: “Mas isso tudo é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz (lCor 12,11).” No conteúdo desse “isso tudo”, mencionou também a fé, como sabeis. Portanto, assim como, embora seja de Deus, o mortificar as obras da carne é exigência para a consecução do prêmio da vida eterna prometida, assim também a fé, embora seja condição indispensável para alcançar a recompensa da salvação prometida, quando se diz: Se creres, serás salvo. Por conseguinte, ambas as coisas são preceitos e dons de Deus, para entendermos que as fazemos e Deus faz com que as façamos, como diz claramente pelo profeta Ezequiel. Pois nada mais claro do que a sentença: E farei com que as (minhas leis) pratiqueis (Ez 36,27). Prestai atenção a esta passagem da Escritura e percebereis que Deus promete fazer o que ele manda cumprir. E faz certamente aí menção dos méritos e não dos deméritos daqueles a quem revela retribuir bens por males, pois ele faz com que pratiquem depois boas obras, fazendo com que cumpram os seus mandamentos.

Capítulo XII - Não há justificação pelos méritos futuros
§23. Toda a argumentação, da qual nos servimos para defender que a graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor é de fato graça, ou seja, não nos é concedida em vista de nossos merecimentos, embora se confirme claramente pelos testemunhos das divinas Escrituras, contudo apresenta dificuldades para aqueles situados na maioridade e em uso da razão. Estes, se não atribuem algo a si mesmos que ofereçam a Deus primeiramente para receber a retribuição, julgam ser limitados em todo o exercício da piedade. Mas quando se trata de crianças e do Mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus (lTm 2,5), é improcedente toda afirmação sobre méritos prévios à graça de Deus. Pois as crianças não se distinguem umas das outras no tocante a méritos prévios para pertencerem ao Libertador dos homens, nem este se tornou libertador dos homens por algum merecimento humano, sendo ele também ser humano.

§24. Portanto, quem terá ouvidos para tolerar a afirmação segundo a qual as crianças deixam esta vida já batizadas na idade infantil em virtude de seus méritos futuros, e as crianças morrem na referida idade sem serem batizadas devido a seus deméritos futuros, quando não há lugar à recompensa ou à condenação por parte de Deus não havendo ainda uma vida de virtudes ou de pecados? (Carta a Próspero, n. 5, col. 951-952). O Apóstolo fixou um limite, o qual — expressando-me mais delicadamente — a temerária conjetura humana não pode ultrapassar. Ele diz: Todos nós teremos de comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal (2Cor 5,10). Ele diz: ter feito, e não acrescentou: “ou haveriam de fazer”. Mas ignoro como tais homens puderam pensar em méritos futuros por parte de crianças, méritos que não hão de existir, e que mereçam castigo ou recompensa. E por que está escrito que o homem será julgado por aquilo que praticar pelo corpo, se muitas vezes as ações são feitas só pela alma e não pelo corpo ou qualquer de seus membros, e freqüentemente são ações de tamanha importância que apenas em pensamento são dignas de um castigo muito justo, como é, para não mencionar outras, o que o insensato diz em seu coração: “Não há Deus”? (Sl 13,1). O que significa então do que tiver feito durante a sua vida no corpo, senão “do que tiver feito durante o tempo em que viveu no corpo”, de modo que “no corpo” queria dizer o tempo do corpo? Depois da morte do corpo, ninguém estará no corpo, a não ser pela última ressurreição, não mais para alcançar merecimentos, mas para receber a recompensa pelos merecimentos e penas expiatórias pelos deméritos. No intervalo entre a deposição e a recepção do corpo, as almas ou são atormentadas ou descansam, de acordo com o que fizeram durante a morada no corpo. A este tempo da permanência no corpo diz respeito também o que os pelagianos negam, mas a Igreja de Cristo confessa, ou seja, o pecado original. Remido pela graça de Deus este pecado ou não remido por um juízo de Deus, quando morrem as crianças, ou passam dos males para os bens pelo mérito da regeneração ou passam dos males desta vida para os males da outra pelo merecimento de origem. É o que ensina a fé católica e o que alguns hereges aceitam sem nenhuma oposição. Mas que alguém seja julgado não conforme os merecimentos adquiridos durante a vida no corpo, mas de acordo com os merecimentos que teria, se tivesse uma vida longa, tomado de admiração e espanto, não consigo descobrir onde se apóia esta opinião de pessoas que, como vossas cartas revelam, são dotadas de inteligência não comum. Não me atreveria a acreditar em tal opinião, se não considerasse ser maior ousadia não acreditar em vossa informação. Mas confio que o Senhor os assistirá para que, admoestados, percebam logo que os chamados futuros pecados, se pelo juízo de Deus podem ser punidos com relação aos não batizados, também podem ser perdoados pela graça de Deus com respeito aos batizados. Pois todo aquele que diz que pelo juízo de Deus somente podem ser punidos os pecados futuros, mas não podem ser perdoados pela misericórdia de Deus, devem considerar a grave ofensa que faz a Deus e à sua graça. Isto supõe que Deus pode ter presciência de um pecado futuro, mas não pode perdoa-lo. Se isto é absurdo, maior ainda será dizer que Deus deveria socorrer pelo batismo, que apaga os pecados, os pecadores futuros, que morrem na infância, se tivessem uma vida longa.

Capítulo XIII - A remissão dos pecados pelo batismo não é efeito da previsão de méritos futuros
§25. É possível que eles digam que os pecados são perdoados aos que fazem penitência. Portanto, os que morrem em idade infantil sem o batismo não são perdoados porque Deus prevê que, se vivessem, não fariam penitência, ao passo que são perdoados os que deixam esta vida já batizados, porque Deus sabe em sua presciência que fariam penitência, se vivessem. Que eles considerem e percebam que, se fosse assim, Deus castigaria nos não batizados não apenas o pecado original, mas também seus pecados pessoais, se vivessem, e, com relação aos batizados, ficaria remido não somente o pecado original, mas perdoados também os pecados pessoais futuros, se vivessem. Isso porque não poderiam pecar a não ser quando atingissem a idade da compreensão, mas haveria previsão de que uns fariam penitência e outros, não, e, portanto, de que uns deixariam esta vida batizados e outros sem o batismo. Se os pelagianos chegassem a dizer isto, como negam o pecado original, não se empenhariam em buscar para as crianças não sei que lugar de felicidade fora do Reino de Deus, principalmente porque devem ter a convicção de que não podem obter a vida eterna pelo fato de não terem comido a carne e bebido o sangue de Cristo (Jo 6,54). Além disso, carece de validez o batismo conferido aos que não têm nenhum pecado. Diriam talvez que não há pecado original, mas que são batizadas ou não batizadas as crianças que morrem na infância de acordo com seus merecimentos futuros, se vivessem, e, de acordo com os mesmos merecimentos, recebem ou não o corpo e o sangue de Cristo, sem o que não podem obter a vida eterna. Além disso, diriam que são batizadas com real remissão dos pecados, embora não tenham pecado algum por herança de Adão, pois são-lhes perdoados os pecados dos quais Deus prevê que fariam penitência. Assim, facilmente levariam avante e provariam sua tese pela qual negam o pecado original e afirmam a concessão da graça de Deus em virtude de nossos merecimentos. Mas como os méritos humanos futuros, que nunca existirão, sem dúvida alguma são nulos, e isto é facílimo perceber, e, por isso, nem mesmo os pelagianos chegaram a dizê-lo, muito menos deviam tê-lo dito esses irmãos nossos. Não é fácil descrever o desagrado que me causa o ver que os pelagianos consideram falsidade e absurdo uma doutrina, enquanto não o consideram esses irmãos, que, pela autoridade católica, condenam conosco o erro dos hereges.

Capítulo XIV - Não há julgamento para merecimentos futuros: Comentário do texto da Sabedoria 4,11
§26. São Cipriano escreveu um livro intitulado “A mortalidade”, elogiado por quase todos os que se dedicam às ciências eclesiásticas, no qual afirma que a morte não só não é inútil, mas deveras útil para os fiéis, pois livra o homem do perigo de pecar e lhe dá a segurança de não pecar. Mas de que valeria esta segurança, se lhe fossem punidos os pecados futuros que não cometeu? O Santo, porém, prova com ótima e farta argumentação que neste mundo não faltam os perigos de pecar, mas não subsistirão depois desta vida. E aduz como testemunho as palavras do livro da Sabedoria: Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar (Sb 4,11). Este argumento aduzido também por mim, nossos irmãos não aceitaram, conforme dissestes, por ter sido tomado de um livro não canônico, como se, à parte a autoridade deste livro, a doutrina que quisemos ensinar não fosse bastante clara. Qual o cristão que se atreve a negar que o justo estará em descanso (Sb 4,7), quando for arrebatado pela morte? Que pessoa de fé ortodoxa pensaria o contrário de quem isto afirmasse? Do mesmo modo, se alguém disser que um justo, violando a santidade na qual perseverou por longo tempo e falecendo na impiedade, na qual viveu não digo um ano, mas um dia, não incorreria nas penas devidas aos réprobos, de nada lhe aproveitando os méritos passados (Ez 18,24), qual o fiel que se oporia a esta verdade tão evidente? Além disso, se nos perguntassem se este justo falecesse enquanto praticava a justiça, se incorreria nas penas devidas aos condenados ou encontraria o descanso, não responderíamos sem hesitação que estaria no descanso? Esta é a razão que levou alguém a dizer, seja quem for: Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar. Alguém o disse referindo-se aos perigos desta vida e não de acordo com a presciência de Deus, que previra o que aconteceria e não o que não aconteceria. Quis dizer: que Deus lhe concederia morte prematura para evitar-lhe a insegurança das tentações e não porque haveria de pecar aquele que não permaneceria sujeito à tentação. A respeito desta vida lê-se no livro de Jó: A vida do homem sobre a terra é uma guerra (Jó 7,1). Mas, por que a alguns concede serem libertados dos perigos desta vida, quando estão no caminho da justiça, e outros justos são mantidos nos mesmos perigos com idade mais avançada até caírem do estado de justiça? Quem conheceu o pensamento do Senhor? (Rm 11,34). Contudo, por aí se pode entender o referente àqueles justos que, vivendo com piedade e bons costumes até a maturidade da velhice e até o último dia de vida, devem-se glorificar não em seus méritos, mas no Senhor. Isso porque, aquele que arrebatou o justo na sua mocidade, a fim de que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar, ele mesmo o protege em qualquer fase da vida, para que a maldade não perverta o seu coração. Mas a razão pela qual tenha mantido com vida o justo que haveria de cair e o qual poderia ter arrebatado desta vida antes de cair, obedece aos justíssimos, mas impenetráveis desígnios de Deus.

§27. Sendo verdade tudo isto, não se deveria rechaçar a sentença do livro da Sabedoria, cujas palavras têm merecido ser proclamadas na Igreja de Cristo há tantos anos com aprovação dos que, na mesma Igreja, o têm lido, e serem ouvidos com a veneração devida à autoridade divina tanto por bispos como pelos fiéis leigos considerados inferiores, como são os penitentes e os catecúmenos. Baseando-me nos tratadistas das divinas Escrituras que nos precederam, se eu empreendesse a defesa desta sentença que com extraordinária diligência e extensão somos obrigados a defender contra o novo erro dos pelagianos, ou seja, que a graça de Deus nos é concedida não de acordo com nossos merecimentos, mas é concedida gratuitamente a quem é concedida — pois não depende de quem quer ou corre, mas de Deus, que tem misericórdia, e não é concedida a quem não é concedida por um justo juízo divino, pois não há injustiça por parte de Deus - se eu empreendesse, repito, a defesa desta doutrina, sem dúvida esses irmãos, em consideração aos quais estamos escrevendo, teriam ficado satisfeitos, conforme o indicastes em vossas cartas. Mas por que consultar os escritos daqueles que, antes do aparecimento desta heresia, não tiveram necessidade de se enfronhar nesta difícil questão na procura de solução? Tê-lo-iam feito, se fossem obrigados a responder a tais dificuldades. Daí o terem tocado brevemente, de passagem, e em algumas partes de seus escritos o que pensavam sobre a graça de Deus. Estenderam-se mais nos assuntos que discutiam contra os inimigos da Igreja e em exortações à prática de algumas virtudes, mediante as quais se presta serviço a Deus vivo e verdadeiro em ordem a alcançar a vida eterna e a verdadeira felicidade. Pela abundância de orações depreende-se o valor que davam à graça de Deus, pois não pediriam a Deus o cumprimento do que ele manda, se por ele não lhes fosse concedido o poder cumprir.

§28. Mas o que desejam instruir-se com as afirmações dos tratadistas, convém que anteponham a todos os autores este mesmo livro, onde se lê: Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar. Isso porque deram-lhe preferência egrégios escritores próximos aos tempos dos apóstolos, os quais, apresentando-o como testemunho, acreditaram estar aduzindo um testemunho divino. Consta com certeza que o mui bem-aventurado Cipriano, exaltando a vantagem da morte prematura, sustenta que ficam livres do perigo de pecar aqueles que terminaram esta vida na qual se pode pecar. No livro antes citado, diz entre outras coisas: ‘Por que não te apraz estar com Cristo, seguro das promessas do Senhor ao seres chamado para Cristo? Por que não regozijas em te ver livre do demônio?”. E diz em outro lugar: “As crianças livram-se dos perigos da idade lasciva”. E em outro: “Por que não nos apressamos e corremos para contemplar nossa pátria e saudar nossos familiares? Um grande número de pais, irmãos, filhos queridos lá nos esperam; uma multidão numerosa nos deseja, já tranqüila acerca de sua imortalidade e ainda solícita de nossa salvação”. Com estas e outras semelhantes sentenças, ditadas pela esplendorosa luz da fé católica, aquele doutor atesta com clareza que se deve temer até o momento de abandonar este corpo os perigos de pecado e as tentações; depois, ninguém passará por estas dificuldades. E mesmo que ele não atestasse, algum cristão teria alguma dúvida sobre esta verdade? Portanto, por que razão a um homem caído que termina miseravelmente esta vida ainda pecador e destinado ao castigo devido aos pecados, por que razão, pergunto eu, não lhe seria deveras vantajoso, se deste lugar de tentações fosse arrebatado pela morte antes de sucumbir ao pecado?

§29. Se não se trata de um temerário empenho, pode-se dar por terminada a questão a respeito do que foi arrebatado, para que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar. E mais. O livro da Sabedoria, que mereceu ser lido na Igreja de Cristo há tantos anos e no qual se encontra esta sentença, não deve ser desprezado porque contraria aqueles que se enganam no tocante aos méritos humanos e se colocam contra a manifesta graça de Deus. Percebe-se esta graça principalmente nas crianças, as quais, como umas chegam ao fim da vida já batizadas e outras, não, revelam claramente a misericórdia e o juízo, a misericórdia certamente gratuita e o juízo, sem dúvida, justo. Pois, se os homens fossem julgados de acordo com os merecimentos de sua vida, que não tiveram por terem sido surpreendidos pela morte, mas teriam, se vivessem, de nada aproveitaria ao que foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o coração e nenhuma vantagem teriam os que morrem após terem caído, se tivessem morrido antes. Mas nenhum cristão pode alimentar esta opinião. Por conseguinte, nossos irmãos, que conosco combatem o pernicioso erro pelagiano em favor da fé católica, não devem favorecer esta opinião dos hereges, que os leva a opinar que a graça de Deus nos é outorgada de acordo com nossos méritos, a tal ponto que intentam — o que não lhes é lícito — demolir a sentença dotada de plena veracidade e há muito tempo é cristã: Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o modo de pensar. Não devem, por outro lado, construir o que julgaríamos não digo ser merecedor de ser crido, mas nem sequer imaginado por alguém, ou seja, que todo aquele que morre é julgado de acordo com o que faria, se tivesse mais tempo de vida. Assim fica evidente ser irretorquível o que dizemos: que a graça de Deus não nos é concedida de acordo com nossos merecimentos, para que os homens talentosos, que contradigam esta verdade, sejam obrigados a dizer que aqueles erros devem ser repudiados por todos os ouvidos e inteligências.

Capítulo XV - Jesus Cristo, exemplar perfeito da predestinação
§30. O mais preclaro exemplar da predestinação e da graça é o próprio Salvador, o próprio Mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus. Para que o fosse, com que méritos anteriores pela fé ou boas obras sua natureza humana adquiriu tal missão? Peço que me respondam: esta natureza humana, assumida pelo Verbo co-eterno ao Pai na unidade de pessoa, como mereceu ser Filho unigênito de Deus? Algum merecimento precedeu esta união? O que fez antes, em quem creu, o que pediu para chegar a esta inefável superioridade? Não foi pela ação e assunção do Verbo que a mesma humanidade, da qual teve origem sua existência, começou a ser Filho único de Deus? Aquela mulher, cheia de graça, não concebeu o Filho único de Deus? O Filho único de Deus não nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria não pela concupiscência da carne, mas por uma singular graça de Deus? Houve qualquer possibilidade de este homem, pelo uso do livre-arbítrio, chegar a pecar no transcorrer do tempo? Não era livre sua vontade e tanto mais livre quanto mais impossível de que fosse dominado pelo pecado? Assim, pois, a natureza humana, portanto a nossa, recebeu nele estes dotes singularmente admiráveis e outros, se se pode dizer que são seus, sem que houvesse nenhum merecimento precedente. Responda agora o homem a seu Deus, se assim se atrever, e diga: “Por que não eu?”. E se ouvir: Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? (Rm 9,20), não fique coibido, mas aumente sua presunção e diga: “O que ouço: Quem és tu, ó homem? Sendo o que ouço, ou seja, homem, o que é aquele de quem se trata, por que não sou o que ele é?”. Pela graça ele é o que é e tão perfeito; por que é diferente a graça, se a natureza é comum a ele e a mim? Em Deus não há certamente acepção de pessoas (Cl 3,25). Qual é o homem, não digo cristão, mas louco, que poderia proferir palavras tão insensatas?

§31. Manifeste-se, pois, a nós naquele que é nossa Cabeça a própria fonte da graça, da qual se difunde por todos os membros de acordo com a medida de cada um. Com esta graça qualquer homem se torna cristão a partir do momento de sua fé; com ela aquele homem tornou-se Cristo desde o seu princípio. O homem renasce do mesmo Espírito do qual ele nasceu; recebemos a remissão dos pecados pelo mesmo Espírito pelo qual ele foi isento de todo pecado. Não há dúvida que Deus previu na sua presciência a existência destas maravilhosas obras. Nisto consiste, portanto, a predestinação dos santos, que resplandeceu com intenso fulgor no santo dos santos. E quem a pode negar entre os que deveras compreendem as palavras da Verdade? Pois, aprendemos que o próprio Senhor da glória, ao se fazer homem o Filho de Deus, foi predestinado. O Doutor dos Gentios proclama no começo de suas cartas: Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, escolhido para o evangelho de Deus, que ele já tinha escolhido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus por sua ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade (Rm 1,1-4). Portanto, Jesus foi predestinado, a fim de que ele, que seria filho de Davi pela carne, fosse contudo Filho de Deus em poder pelo Espírito de santificação, pois nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria. Esta é a singular assunção da natureza humana realizada de modo inefável pelo Verbo de Deus, para que Jesus Cristo fosse chamado em verdade e com propriedade Filho de Deus e filho do homem ao mesmo tempo; filho do homem pela natureza humana assumida e Filho de Deus devido ao Deus unigênito que a assumiu. Assim o objeto de nossa fé repousa na trindade e não na quartenidade divina. Foi predestinada esta tão excelsa e mais elevada assunção da natureza humana de modo que não fosse possível existir outra que a elevasse tão alto, assim como a divindade não encontrou outro modo mais humilde de se despojar que este de assumir a natureza humana com todas as conseqüências da fraqueza da carne e até da morte de cruz. Portanto, assim como ele, o único, foi predestinado para ser nossa cabeça, muitos somos predestinados para ser membros de seu corpo. Perante isso, emudeçam os merecimentos humanos que deixaram de existir em Adão e reine a graça de Deus que reina por Jesus Cristo, nosso Senhor, Filho único de Deus, o único Senhor. Quem encontrar em nossa cabeça merecimentos prévios à sua singular geração, investigue em nós, seus membros, os merecimentos precedentes para a regeneração tantas vezes iterada. Pois a geração na natureza humana não lhe foi retribuída, mas concedida, a fim de que, isento de toda sujeição ao pecado, nascesse do Espírito e da Virgem. O nosso renascimento da água e do Espírito não é também retribuição por algum mérito, mas concedido gratuitamente. E se foi a fé que nos levou ao banho da regeneração, nem por isso devemos pensar que demos algo a Deus e recebemos a regeneração salutar como retribuição. Pois fez-nos crer em Cristo aquele que fez para nós o Cristo no qual acreditamos, e é autor do princípio e da perfeição da fé em Cristo na mente dos homens aquele que constituiu o homem-Cristo príncipe e realizador da fé. Assim, ele é chamado, como sabeis, na carta aos Hebreus (Hb 12,2).

Capítulo XVI - Entre os judeus, uns foram chamados e eleitos, outros, apenas chamados
§32. Deus chama a muitos filhos seus como predestinados para torná-los membros do seu único Filho predestinado, não mediante a vocação com que foram chamados os que não quiseram vir para o banquete nupcial (Lc 14,16-20), nem com a vocação com que foram chamados os judeus, para os quais Cristo crucificado é escândalo, nem com a vocação dirigida aos pagãos, para os quais o Crucificado é loucura, mas chama os predestinados com a vocação que o Apóstolo distinguiu ao dizer que pregava aos judeus e gregos que Cristo é o poder e a sabedoria de Deus. Diz expressamente: Para aqueles que são chamados (lCor 1,23-24), para distingui-los dos não chamados, tendo em conta que há a vocação segura daqueles que são chamados conforme o seu desígnio, os quais conheceu de antemão e também predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho (Rm 8,28-29). Precisando esta vocação, diz: Dependendo não das obras, mas daquele que chama, foi-lhe dito: “O maior servirá ao menor” (Rm 9,12-13). Por acaso disse: “não das obras, mas do que crê?”. Pelo contrário, negou-o totalmente ao homem, para dá-lo completamente a Deus. Pois disse: mas daquele que chama, não com qualquer vocação, mas com a vocação que leva alguém a crer.

§33. O Apóstolo considerava também esta vocação, quando dizia: Os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. Vede por um momento do que se tratava neste texto. Depois de haver dito: Não quero que ignoreis, irmãos, este mistério, para que não “vos tenhais em conta de sábios” - o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios e assim todo Israel será salvo, conforme está escrito: “De Sião virá o libertador e afastará as impiedades de Jacó, e esta será minha aliança com eles, quando eu tirar seus pecados' acrescentou imediatamente estas palavras que necessitam de compreensão atenciosa: Quanto ao evangelho, eles são inimigos por vossa causa; mas quanto à eleição, eles são amados por causa de seus pais (Rm 11,25-29). O que significa: Quanto ao evangelho, eles são inimigos por vossa causa, senão que a sua inimizade, que os levou a matar o Cristo, sem dúvida favoreceu o evangelho, como é do nosso conhecimento? E demonstra que isto acontece por disposição de Deus, que sabe usar dos maus para o bem, não porque lhe sejam vantajosos os vasos de ira, mas porque, usando deles para o bem, favoreçam os vasos de misericórdia. Não quis dizer isto claramente quando afirmou: Quanto ao evangelho, eles são inimigos por vossa causa? Portanto, está no poder dos maus o pecar, mas, ao pecar, que façam isto ou aquilo pela sua maldade não está no seu poder, mas de Deus, que divide as trevas e as dispõe de modo que fazem a sua vontade com o que fazem contra a sua vontade. Lemos nos Atos dos Apóstolos que os apóstolos, após terem sido libertados pelos judeus, juntaram-se aos seus e, tendo-lhes revelado o que lhes disseram os sacerdotes e anciãos, todos clamaram a uma só voz ao Senhor, dizendo: Mestre, tu fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm; tu falaste pelo Espírito Santo através da boca do nosso pai Davi, teu servo: “Por que esta arrogância entre as nações, estes vãos projetos entre os povos? Os reis da terra alinharam-se em campanha e os magistrados se coligaram de comum acordo contra o Senhor e contra o seu Ungido” - Sim, verdadeiramente, “coligaram-se” nesta cidade contra o teu santo servo Jesus, “que ungiste” Herodes e Pôncio Pilatos com “as nações pagãs” e “os povos” de Israel, para executarem tudo o que, em teu poder e em tua sabedoria, havias predeterminado (At 4,24-28). Eis a razão pela qual o Apóstolo afirmou: Quanto ao evangelho, eles são inimigos por vossa causa. Com efeito, o que a mão e o desígnio de Deus predeterminaram que os inimigos judeus realizassem foi proporção do necessário ao evangelho em atenção a nós. E o que significa o que vem em seguida: Quanto à eleição, eles são amados por causa de seus pais? Significa que aqueles inimigos, que pereceram em seu ódio e que, pertencendo ao mesmo povo e sendo adversários de Cristo ainda perecem, são eles eleitos e amados? De forma alguma. Quem é tão demente a ponto de fazer esta afirmação? Mas se ambas as coisas são contrárias, ou seja, ser inimigos e ser amados de Deus, embora não possam coexistir nas mesmas pessoas, contudo podem coexistir no mesmo povo judeu e na mesma raça de Israel, para uns israelitas como perdição, para outros como bênção. Esclareceu este sentido quando disse antes: Aquilo a que tanto aspira, Israel não conseguiu: conseguiram-no, porém, os escolhidos. E os demais ficaram endurecidos (Rm 11,7). Em ambos os casos trata-se do mesmo povo de Israel. Portanto, ao ouvirmos: “Israel não conseguiu”, ou “ficaram endurecidos”, refere-se aos “inimigos por vossa causa”; mas ao ouvirmos: conseguiram-no, porém, os escolhidos”, compreendem-se “os escolhidos por causa de seus pais”. Estes pais foram beneficiados com estas promessas: As promessas foram asseguradas a Abraão e à sua descendência (GI 3,16). Desse modo, nesta oliveira está enxertado o zambujeiro dos pagãos (Rm 11,17). Mas a eleição, a que se refere, verifica-se segundo a graça e não segundo a dívida, porque constituiu-se um resto segundo a eleição da graça (Rm 11,51). Esta eleição foi alcançada, ficando os demais endurecidos. Segundo esta eleição, os israelitas foram amados por causa de seus pais. Não foram chamados mediante a vocação à qual o evangelho se refere: Muitos são os chamados (Mt 20,16), mas mediante àquela pela qual são chamados os eleitos. Por isso também aqui, depois de dizer: Quanto à eleição, eles são amados por causa de seus pais, acrescenta em seguida: Os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento, ou seja, são irrevogáveis. Os incluídos nesta vocação são todos ensinados por Deus e nenhum deles pode dizer: “Cri para ser chamado”, pois a misericórdia de Deus se lhe antecipa, sendo chamado para que cresse. Todos os ensinados por Deus vêm ao Filho, o qual disse claramente: Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim (Jo 6,45). Nenhum deles perece, porque de tudo o que lhe deu o Pai nenhum se perderá (Jo 6,39). Portanto, quem quer que venha do Pai não perece de forma alguma, de modo que não viria do Pai aquele que perece. Por isso está escrito: Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco (l Jo 2,19).

Capítulo XVII - A vocação dos eleitos
§34. Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15,16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me escolhestes. Não há dúvida que eles também o escolheram, quando nele acreditaram. Daí o ter ele dito: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi, não porque não o escolheram para ser escolhidos, mas para que o escolhessem, ele os escolheu. Isso porque a misericórdia se lhes antecipou (Sl 53,11) segundo a graça, não segundo uma dívida. Portanto, retirou-os do mundo quando ele vivia no mundo, mas já eram eleitos em si mesmos antes da criação do mundo. Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo? (Ef 1,4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Conseqüentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, os que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros, justificou os que assim chamou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8,30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. Diz o apóstolo Tiago: Não escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam? (Tg 2,5). Portanto, ao escolher, fá-los ricos na fé, assim como herdeiros do Reino. Pois, com razão, se diz que Deus escolheu nos que crêem aquilo pelo qual os escolheu para neles realizá-lo. Pergunto: quem ouvir o Senhor, que diz: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi, terá atrevimento de dizer que os homens têm fé para ser escolhidos, quando a verdade é que são escolhidos para crer? A não ser que se ponham contra a sentença da Verdade e digam que escolheram antes a Cristo aqueles aos quais ele disse: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi.

Capítulo XVIII - A eleição é meio para a santidade e não efeito da santidade
§35. O Apóstolo diz: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante dele no amor. Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo, conforme a decisão de sua vontade, para louvor e glória de sua graça com a qual ele nos agraciou no Amado. E é pelo sangue deste que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça que ele derramou profusamente sobre nós, infundindo-nos toda sabedoria e prudência, dando-nos a conhecer o mistério de sua vontade, conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar para levar o tempo à sua plenitude: a de em Cristo recapitular todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra. Nele, predestinados pela decisão daquele que tudo opera segundo o conselho de sua vontade, fomos feitos sua herança, a fim de servirmos para o seu louvor e glória (Ef 1,3-12). Quem, pergunto eu, ao ouvir com atenção e compreensão este testemunho, atrever-se-á a duvidar da verdade tão evidente que defendemos? Deus escolheu em Cristo os seus membros antes da criação do mundo; mas como os escolheria, se não existiam, a não ser predestinando-os? Portanto, escolheu-nos o que predestina. Acaso escolheria os ímpios e manchados? Pois, se se pergunta a quem escolheu, se a estes ou os santos e imaculados, aquele que investiga sobre a resposta a dar não se decidirá imediatamente em favor do santos e imaculados?

§36. Os pelagianos argumentam: “Deus sabia de antemão os que se santificariam e permaneceriam sem pecado pelo uso de sua liberdade. Por isso escolheu-os antes da criação do mundo em sua presciência, mediante a qual previu que seriam santos. Portanto, escolheu-os antes que o fossem, predestinando como seus filhos aqueles que sabia em sua presciência que seriam santos e irrepreensíveis. Mas não foi ele que os fez santos e irrepreensíveis, e nem os faria, mas apenas previu que seriam”. Consideremos as palavras do Apóstolo e vejamos se nos escolheu antes da criação do mundo porque haveríamos de ser santos e irrepreensíveis ou para que o fôssemos. Diz ele: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis. Portanto, não porque seríamos, mas para sermos. Assim, pois, isto é certo e evidente: seríamos santos e irrepreensíveis pelo fato de nos escolher, predestinando-nos para o sermos pela sua graça. Por isso, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor - Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo. Prestai atenção ao que acrescenta em seguida: conforme a decisão de sua vontade, para que em tão sublime dom da graça, não nos gloriássemos como se fosse obra de nossa vontade. E continua: com a qual nos agraciou no Amado, ou seja, agraciou-nos por sua vontade. Assim como disse agraciou pela graça, do mesmo modo se diz: justificou pela justiça. E prossegue: E é pelo sangue deste que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça, que ele derramou profusamente em nós, infundindo-nos toda sabedoria e prudência, dando-nos a conhecer o mistério de sua vontade, conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar. Neste mistério de sua vontade depositou as riquezas de sua graça segundo seu beneplácito e não segundo a nossa vontade, a qual não poderia ser boa, se ele não a socorresse segundo seu beneplácito para ser boa. Pois, depois de ter dito: conforme decisão prévia, acrescentou: que lhe aprouve tomar no Filho amado, para levar o tempo à sua plenitude: a de em Cristo recapitular todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra. Nele, predestinados pela decisão daquele que tudo opera segundo o conselho de sua vontade, fomos feitos sua herança, a fim de servirmos para o seu louvor e glória.

§37. Seria prolixo discorrer sobre cada palavra. Mas percebeis, sem ter nenhuma dúvida, com quanta evidência do testemunho apostólico a graça de Deus é defendida, esta graça contra a qual se levantam os merecimentos humanos, como se o homem desse algo primeiramente para algo receber em retribuição. Portanto, Deus nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, predestinando-nos para sermos seus filhos adotivos, não porque seríamos santos e irrepreensíveis por nossos méritos, mas escolheu-nos e predestinou-nos para o sermos. Assim agiu segundo o seu beneplácito para que ninguém se glorie em sua vontade, mas na de Deus; agiu assim segundo as riquezas de sua graça, conforme o seu beneplácito, que se propôs realizar em seu Filho amado, no qual fomos feitos seus herdeiros, predestinados segundo o beneplácito, e não o nosso, daquele que tudo opera a ponto de operar em nós mesmos o querer (Fl 2,13). Mas opera segundo o conselho de sua vontade, a fim de servir - mas para o seu louvor e glória. Esta é a razão pela qual afirmamos que ninguém procure nos homens motivo de orgulho (lCor 3,21), e, portanto, nem em si mesmo, mas aquele que se gloria, se glorie no Senhor (lCor 1,31), para servirmos para seu louvor e glória. Ele opera conforme a decisão de sua vontade para servirmos para seu louvor e glória, como santos e irrepreensíveis, motivo pelo qual nos chamou, predestinando-nos antes da fundação do mundo. Conforme esta decisão de sua vontade efetua-se a vocação dos eleitos, para os quais tudo coopera para o bem, porque foram chamados segundo o seu desígnio, e os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento.

Capítulo XIX - Refuta objeções e reafirma que mesmo a fé inicial é dom de Deus
§38. Mas esses nossos irmãos, dos quais aqui tratamos e em favor dos quais escrevemos, talvez digam que os pelagianos ficam refutados por este testemunho apostólico que afirma nossa eleição em Cristo antes da criação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença no amor. Eles, porém, têm este raciocínio: ‘Tendo aceitado pelo uso da liberdade os preceitos que nos tornam santos e imaculados em sua presença no amor, como Deus sabia de antemão este futuro, escolheu-nos em Cristo antes da criação do mundo”. Mas o Apóstolo não diz que nos escolheu e predestinou porque sabia de antemão que seríamos santos e irrepreensíveis, mas para que o fôssemos pela eleição de sua graça, com a qual ele nos agraciou no Amado. Portanto, ao predestinar-nos, conhecia pela presciência a sua obra, pela qual nos torna santos e irrepreensíveis. Conseqüentemente, com este testemunho fica refutado legitimamente o erro pelagiano. Eles, porém, replicam: “Mas nós afirmamos que Deus teve conhecimento prévio de nossa fé inicial, e por isso escolheu-nos e predestinou-nos antes da fundação do mundo para sermos também santos e irrepreensíveis por sua graça e obra”. Mas escutem o que afirma neste testemunho: Nele, predestinados pela decisão daquele que tudo opera. Aquele que tudo opera também em nós o início da fé. Nem a própria fé precede a vocação da qual está escrito: Os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento (Rm 11,29), e da qual se afirmou: Dependendo não das obras, mas daquele que chama (Rm 9,12), visto que poderia dizer: “Mas do que crê”; e nem precede a eleição anunciada pelo Senhor ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Não cremos porque nos escolheu, mas escolheu-nos para crermos, para que não digamos que o escolhemos antes e sejam falhas — o que não é lícito dizer — as palavras: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15,16). Somos chamados para crermos e não porque cremos, e com a vocação, que é irrevogável, realiza-se e se aperfeiçoa o que é mister para crermos. Não há necessidade de repetir o muito que dissemos sobre esta questão.

§39. Finalmente, à continuação do referido testemunho, o Apóstolo dá graças a Deus por aqueles que acreditaram, não porque lhes foi anunciado o evangelho, mas porque acreditaram. Diz assim: nele também vós, tendo ouvido a palavra da Verdade — o evangelho da vossa salvação — e nela tendo crido, fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo, que é o penhor de nossa herança, para a redenção do povo que ele adquiriu para o seu louvor e glória. Por isso também eu, tendo ouvido a respeito de vossa fé no Senhor Jesus e do vosso amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus a vosso respeito (Ef 1,13-16). Era nova e recente a fé dos efésios após ter-lhes sido pregado o evangelho, e, tendo ouvido a respeito dessa fé, o Apóstolo dá graças a Deus por eles. Se desse graças a um homem por um favor, julgando que o favor não foi concedido ou reconhecido, dir-se-ia mais uma ironia do que um agradecimento. Não vos iludaís; de Deus não se zomba (Gl 6,7), pois a fé inicial é também dom de Deus, do contrário considerar-se-ia com razão falsa e falaz a ação de graças do Apóstolo. Por que afirmamos isto? Não é claramente um começo de fé nos tessalonicenses o que merece do Apóstolo uma ação de graças, quando diz: Por esta razão e sem cessar agradecemos a Deus por terdes acolhido a sua palavra que vos pregamos não como palavra humana, mas como na verdade é a palavra de Deus que está produzindo efeito em vós, os fiéis? (lTs 2,13). Por que dá graças a Deus? Pois é vão e inútil agradecer a alguém, se não fez nenhum favor. Mas porque neste caso não é vão e inútil, Deus sem dúvida fez a obra, a qual agradece, ou seja, tendo os ouvidos escutado do Apóstolo a palavra de Deus, receberam-na não como palavra humana, mas como na verdade é palavra divina. Portanto, Deus atua nos corações humanos com a vocação conforme o seu desígnio, da qual falamos tanto, a fim de que não ouçam debalde o evangelho, mas, tendo-o escutado, convertam-se e creiam, recebendo-o não como palavra humana, mas como na verdade é: palavra de Deus.

Capítulo XX - Deus é o Senhor das vontades humanas
§40. O Apóstolo adverte que o início da fé é também dom de Deus, pelo que quis dizer na carta aos colossenses: Perseverai na oração, vigilantes, com ação de graças, orando por nós também ao mesmo tempo, para que Deus nos abra uma porta à Palavra, para falarmos do mistério de Cristo, pelo qual estou prisioneiro, a fim de que eu dele fale como devo (Cl 4,2-4). E como se abre a porta à Palavra, se não é abrindo-se o sentido do ouvinte para crer e, dado o início da fé, acolha o que é anunciado e exposto para edificar a doutrina da salvação, e não aconteça que, fechado o coração pela infidelidade, desaprove ou rechace o que se prega. No mesmo sentido são as palavras que dirige aos coríntios: Entrementes permanecerei em Éfeso, pois que se abriu uma porta larga, cheia de perspectivas, e os adversários são muitos (lCor 16,8-9). Que outra interpretação se pode dar, senão que, após ter ele pregado ali primeiramente o evangelho, muitos creram, mas muitos passaram a se opor à mesma fé, conforme as palavras do Senhor: Ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido por meu Pai (Jo 6,65), e: A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não? (Mt 13,11). A porta abriu-se para aqueles aos quais foi concedido, mas são muitos os adversários, aos quais não foi concedido.

§41. Do mesmo modo, dirigindo-se aos mesmos, na segunda carta, diz: Cheguei então a Trôade para lá pregar o evangelho de Cristo, e, embora o Senhor me tivesse aberto uma porta grande, não tive repouso de espírito, pois não encontrei Tito, meu irmão. Por conseguinte, despedi-me deles e parti para a Macedônia. De quem se despediu, senão dos que creram, em cujos corações abrira-se uma porta ao evangelizador? Considerai o que acrescentou: Graças sejam dadas a Deus, que por Cristo nos carrega sempre em seu triunfo e, por nós, expande em toda parte o perfume do seu conhecimento. Em verdade, somos por Deus o bom odor de Cri sto, entre aqueles que se salvam e aqueles que se perdem; para uns, odor que da morte leva à morte; para outros, odor que da vida leva à vida. Eis a razão por que dá graças o acérrimo e invicto defensor da graça; eis por que dá graças: porque os apóstolos são por Deus o bom odor de Cristo tanto para os que se salvam pela graça, como para os que perecem pelo juízo de Deus. Mas, evitando que se indignem com esta afirmação os que pouco entendem deste assunto, ele mesmo os adverte ao prosseguir, dizendo: E quem estaria à altura de tal missão? (2Cor 2,12-16). Mas voltemos à abertura da porta, símbolo do início da fé nos ouvintes. O que significa: Orando também por nós ao mesmo tempo para que Deus nos abra uma porta à Palavra, senão uma demonstração claríssima de que o próprio início da fé é dom de Deus? Pois, não se suplicaria a Deus pela oração, se não se acreditasse vir dele a concessão. Este dom da graça celeste descera sobre a negociante de púrpura, à qual, como diz a Escritura nos Atos dos Apóstolos: O Senhor lhe abriu o coração, de sorte que ela aderiu às palavras de Paulo (At 16,14). Era assim chamada para que tivesse fé, pois Deus atua como quer nos corações humanos ou ajudando ou julgando, com a finalidade de executar por meio deles o que em seu poder e em sua sabedoria havia predestinado realizar (At 4,28).

§42. Afirmaram também, em vão, que não diz respeito ao assunto em pauta o que provamos pelo testemunho da Escritura nos livros dos Reis e das Crônicas, ou seja, que, quando Deus quer realizar o que é mister tenha a colaboração voluntária dos homens, inclina seus corações para que anuam à sua vontade, inclinando-os ele que em nós opera também o querer de um modo admirável e inefável (Supra, na Carta de Hilário, n. 7). O que significa esta afirmação senão nada dizer e, contudo, contradizer?A não ser que, ao emitir este parecer, apresentaram-vos algum motivo que preferistes calar em vossas cartas. Mas ignoro qual possa ser este motivo. Será talvez porque demonstramos que Deus agiu nos corações dos homens e guiou as vontades de quem lhe aprouve para chegarem a constituir rei a Saul ou a Davi? Julgam por isso que estes exemplos nada têm que ver com o assunto porque reinar temporariamente neste mundo não é o mesmo que reinar eternamente com Deus? Pensam nesse caso que Deus inclina os corações no tocante aos remos terrenos, mas não inclina as vontades de quem ele quer quando se trata de alcançar o reino eterno? Mas eu opino que as palavras que seguem foram ditas com referência ao reino dos Céus e não a um reino terreno: Inclina meu coração para os teus preceitos (Sl 118,36); ou: Os passos do homem são formados pelo Senhor e é-lhe grato o seu caminho (Sl 36,23); ou: O Senhor é quem dispõe as vontades (Pr 8 seg. LXX); ou: O Senhor nosso Deus seja conosco, como foi com nossos pais, não nos desamparando, nem nos afastando de si. Mas incline os nossos corações, para andarmos em todos os seus caminhos (lRs 8,57-58); ou: Dar-lhes-ei um (novo) coração e entenderão; ouvidos, e ouvirão (Br 2,31); ou: E eu lhes darei um mesmo coração, e derramarei nas suas entranhas um novo espírito (Ez 11,19). Ouçam também: E porei o meu coração no meio de vós, e farei que andeis nos meus preceitos, e que guardeis as minhas leis, e que as pratiqueis (Ez 36,27). Ouçam ainda: Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor; mas que homem pode compreender seu próprio destino? (Pr 20,24). Continuem ouvindo: Todo o caminho do homem lhe parece a ele próprio direito; e o Senhor, porém, pesa os corações (Pr 21,2); e também: E todos aqueles que eram destinados à vida eterna, abraçaram a fé (At 13,48). Ouçam estes testemunhos e outros que não mencionei, os quais demonstram que Deus prepara e converte as vontades dos homens também para o reino dos Céus e a vida eterna. Percebei quão absurdo é acreditar que Deus atua nas vontades humanas para estabelecer remos temporais e que os próprios homens governam suas vontades quando se trata de conquistar o reino dos Céus.

Capítulo XXI - Conclusão
§43. Discorremos longanimente e talvez já há tempo conseguimos convencer sobre o que queríamos; falamos tanto às inteligências esclarecidas como às rudes, para as quais mesmo o que é demasiado não é suficiente. Mas perdoem-me, pois esta nova questão obrigou-nos a isso. Como provamos em opúsculos anteriores com testemunhos assaz idôneos que mesmo a fé é dom de Deus, deu-se o caso de encontrar opositores a este ensinamento, os quais afirmam que os testemunhos têm força para provar ser dom de Deus o crescimento na fé. O início da fé, porém, dizem eles, pelo qual se chega a crer em Cristo, depende do ser humano e não é dom de Deus. Deus o exige previamente para que com seu merecimento alcancem as demais coisas que são dons de Deus. Nenhuma delas é concessão gratuita, embora admitam nelas a existência da graça de Deus, que é sempre gratuita. Percebeis o absurdo desta doutrina e por isso insistimos, conforme nos foi possível, em mostrar que o próprio começo da fé é dom de Deus. Se o fizemos com mais extensão que a desejada por aqueles para os quais escrevemos, resignamo-nos a ser repreendidos por eles contanto que confessem que alcançamos nosso objetivo, embora tenhamos sido mais prolixos do que desejávamos, motivando aborrecimento e tédio aos inteligentes. Isto quer dizer que reconheçam que ensinamos ser também dom divino o início da fé, assim como o são a continência, a paciência, a justiça, a piedade e demais virtudes, sobre as quais não há discussão com eles. Dou por terminado este livro, evitando agravar os leitores com um tratado tão difuso sobre um único assunto.



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