Porque é que sou
católico
por Jean Guiraud, redator
Chefe de "La Croux" - 1930
Há momentos na vida em que nossa alma se sente desarvorada, como frágil
batel ao sabor das vagas tormentosas! Já passei por esses momentos, e tu
também, leitor amigo... Aquele pai não viveu senão para nós, labutando sem
descanso, privando-se de tudo por nossa causa. Fomos a sua preocupação
constante de todos os dias, de todas as horas. As rugas que lhe sulcam as
faces, cavaram-nas os cuidados e ansiedades que lhe demos. Bem cedo privado
daquela que compartilhava dos seus
trabalhos, esperanças e ideais, foi para nós
uma verdadeira mãe, aliando aos seus austeros exemplos ternura maternal. Para
manifestar-lhe o nosso reconhecimento, buscamos não somente realizar os
desígnios que sobre nós formava como acalentávamos ainda o doce sonho de
preparar-lhe para os velhos dias uma vida de paz, de intimidade familiar, de
cuidados afetuosos... Justamente quando julgamos pagar-lhe assim a nossa dívida
de gratidão, ei-lo que morre! Que tristeza, que amarga decepção! Que melancolia
sem remédio diante desse malogro repentino dos nossos mais caros projetos de
afeição!
Mas lá vem a nossa fé lembrar-nos que nada neste mundo atinge a perfeição e o
pleno desenvolvimento, mas que nada também se faz em pura perda e que todo bem
que aqui se põe em obra há de ter na outra vida a sua plena expansão! Os sonhos
que sonhamos e que se malograram é o próprio Deus quem há de realizá-los! Esse
pensamento sugerido pela fé, ao mesmo tempo que nos consola, transmudamos em
esperança cheia de conforto a decepção e o luto.
Tínhamos um filho, transbordante de generosidade, e que vibrava a todos os
sentimentos nobres. Rebenta a guerra e não se pode ele resignar à espera da
hora em que deverá partir. Alista-se, pede, como uma graça, os postos mais
perigosos, e tomba, ceifado na flor da juventude, no entusiasmo dos vinte anos!
Que consolo esperar dos homens e de uma filosofia puramente humana?
“Aí está um que cumpriu, diz-nos ela, o seu destino e foi um belo exemplar de
energia humana; guardar-lhe-emos a memória, plantando-lhe à beira da cova a
cruz de guerra." Ah! quão frio é tudo isso e vazio, ao lado dos
ensinamentos de nossa fé que nos mostra além campa aquele que choramos e nos
lembra, que quanto maiores forem os sacrifícios neste mundo, maior há de ser no
outro a recompensa. O dogma da comunhão dos santos nos ensina que aqueles que
se foram e já não podem ser vistos pelos nossos olhos mortais, não deixam por
isso de estar vivos, permanecem em comunicação conosco e, depois de curta
ausência, havemos de encontrá-los na outra vida que não acaba nunca!
Dias há em que tudo parece abandonar-nos; frustram-se os nossos mais caros
projetos, atraiçoam-nos os amigos mais íntimos, e em paga do bem que lhes
fazemos, não alcançamos outra coisa mais que a ingratidão. Deturpam-se-nos
odiosamente as mais retas intenções; incompreendidas e menosprezadas ficam as
nossas iniciativas; dir-se-ia que já neste mundo laço algum nos prende e que
desertar dele fôra uma libertação.
Em face dessas dores físicas e morais que nos conduzem à desesperação, a
atitude das mais nobres filosofias humanas não tem sido outra senão a fuga ou a
mentira.
A mentira! Dor, não és mais que uma palavra! - diziam os estoicos, acreditando
suprimir a dor com a negação dela. Bem sabiam, entretanto, que ela existia, que
era uma realidade demasiado verdadeira, mas reagiam contra o seu domínio, e,
sofrendo, atiravam-lhe um supremo desafio, renegando-a. Orgulho, forrado de
mentira!
A fuga! Em um dos seus tratados de filosofia, aconselha Seneca ao homem esquivar-se
às mordeduras da dor por meio do suicídio. Vai ao ponto de admitir que a nossa
superioridade sobre os animais está em podermos, quando nos apraz, fugir ao
sofrimento, abandonando voluntariamente a vida.
Sem chegar a esse extremo, certas filosofias planejam o homem em uma atitude
altaneira em face da dor. "Abstine, sustine" - diziam os
estoicos; refugiai-vos na abstenção! Se vos acometem males de toda a casta,
padecei-os sem pestanejar, suportai-os como as borrascas que não está em nosso
poder evitar!
Impossível negar quanto há de nobre em semelhante doutrina, mas, se é ela,
indubitavelmente, preferível à fuga pelo suicídio, nem por isso deixa de ser
passiva na sua rigidez e resignação fatalista.
Bem outra a norma que me propõe a minha fé católica. A dor, ela não pretende
negá-la, antes a explica e torna compreensível, descobrindo o papel
sobrenatural que em nossa vida moral está chamada a desempenhar.
Para o que valorosamente a suporta, é provação que tempera a alma como as
chamas o aço, é fogo que lhe despega todas as escorias para o reduzir a
limpidez perfeita e, destarte, o que a nossos olhos carnais se afigura um mal,
a fé no-lo apresenta como um dos mais eficazes meios de aperfeiçoamento
próprio.
Nem se contenta com ensinar-me essa doutrina bem mais precisa que a dos
estoicos e a de Kant. Torna-a uma realidade, apresentando-nos qual modelo de
infinita paciência um Deus a quem aprouve partilhar todas as misérias e que
quis ser chamado o "Homem das Dores."
Aí está, aos nossos olhos, traído, abandonado, cuspido, flagelado, coroado de
espinhos, crucificado em presença dos seres que Lhe são mais caros e para os
quais representa a Sua morte o máximo dos suplícios.
Nem se contenta ainda a Igreja de no-lo descobrir assim nos crucifixos das
igrejas, das praças públicas, das encruzilhadas e dos lares: ela conduz-nos a
ele: "Vós todos que sofreis vinde àquele que sofre!" Recorda-nos as
Suas palavras: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
Felizes os que sofrem perseguição pela justiça, pois deles é o reino dos
céus." Comentando a doutrina do Mestre, eleva-nos então o apóstolo São
Paulo até o divino Crucificado, apresenta-nos a Ele como colaboradores seus,
mediante a contribuição dos nossos próprios sofrimentos para a obra sublime da
Paixão redentora.
Sua liturgia afinal outra coisa não é senão um canto de confiança em Deus, cujo
amparo se estende tanto mais sobre nós quanto nos sabe na provação e no sofrimento:
"Vós sois, Senhor, a minha força e o meu refúgio... Aquele que habita à
sombra do Altíssimo, ficará sempre sob a proteção do Deus do Céu. Assim fala ao
Senhor: "Sois o meu protetor e o meu refúgio, Deus meu, esperarei sempre
em vós... Sois a minha esperança e ao abrigo de qualquer ataque pusestes o
refúgio que me dais... Ordenou a Seus Anjos te guardassem nos caminhos, eles te
levarão nas suas mãos, para que teus pés se não magoem em pedra alguma."
Não há ofício da liturgia católica que não celebre a proteção divina e a
confiança que nela devemos ter em nossas desgraças.
Em circunstância sobremaneira dolorosa de minha vida, tive disso a prova
consoladora. Achava-me à cabeceira de meu pai morto, e, diante da imagem do
Crucificado e dos círios acessos, lia eu o ofício dos defuntos. Senão quando,
entram-me pela porta dentro aqueles que vinham metê-lo no esquife, para a
última separação. Neste mesmo instante, lia eu no salmo este versículo: Pater
meus et mater mea dereliquerunt me. Dominus autem assumpsit me (Ps.26).
Que palavras mais consoladoras me poderiam ser dadas numa hora dessas? Era a
minha fé que m’as vinha trazer, lembrando-me que dora avante viria o próprio
Deus substituir junto a mim a pobre mãe que eu mal chegara a conhecer e esse
pai bem querido que levavam agora à sua ultima morada.
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